Ramos
Publicado em: 3 de outubro de 2013
A princesinha do mar vai à outra praia e a garota de Ipanema naquela mais longe ainda, depois da curva do forte. Na praia de Ramos vão outros padrões de beleza, curvas femininas desenhadas não exatamente com o compasso da moda, mas curvas fartas, suculentas, pedindo para serem apertadas, e exibidas com orgulho pela mulher que olha a câmera e parece estar dizendo “tem quem goste”. Aqui não há hierarquia deflagrada entre o que é bacana e o que é cafona, todos os conceitos misturados numa única vontade de viver a vida e levar um caldo para espantar o calor. Aqui é o vale-tudo, a cornucópia adoidada dos prazeres ainda não normatizados pelo choque de ordem e pela caretice longínqua dos que vivem sob os olhares da prefeitura e dos turistas de todos os quadrantes. Aqui só vêm os nativos e todos falam a mesma língua, os mesmos sinais de que, preto ou branco, gordo ou magro, o importante não é sair bem na foto, mas sentir o sol na pele, beber uns gorós, tentar a sorte com alguém e chutar o tempo para longe. Estamos na praia de Ramos, com um único coqueirinho dando sombra e o resto é aquela disposição de sol de deserto, o clichê solto da canícula africana e a delícia de aproveitar a brasa, passar um creme branco na pele e descolorir os pelos do corpo para, se Deus quiser, aquela pessoa especial olhar e dizer “ficou maneiro”. Viva o paraíso sem Photoshop da barriga estufada de chope, da bicicleta sem marcha, do sujeito enfarofado e do biquíni usado desde o verão do início do milênio. Aqui é o bicho solto, o vale o que está escrito e o ninguém tem nada a ver com isso. Os fortões levantam peso com halteres improvisados e depois, desgastados pelo exercício físico, recuperam as energias com um prato cheio, uma mistureba onde se percebem uns nacos de cebola, uma carne de gato, uma farofada, um tomate, e o resto é improvisação gastronômica de um chef que não tem nada a declarar sobre o cordon bleu. Ele é Flamengo, tem uma nega chamada Teresa, e essa deusa é justamente aquela ali de bunda mais arredondada, a cachorra funkeira de fio-dental bem entrado nas partes, conversando com o cara de sunga branca. Esta é a praia de Ramos, frequentada pelas normalistas do Carmela Dutra, os bicheiros do complexo do Alemão, os pagodeiros do Cacique de Ramos, os reservas do Olaria, os batuqueiros do Afroreggae e mais toda a mítica galera do subúrbio carioca. É a única praia da cidade de onde não se vê o Corcovado, o Redentor, que lindo. No máximo, logo em frente, está a igreja de Nossa Senhora da Penha e ela, mesmo sabendo que os banhistas preferem a guarda de Iemanjá, a todos abençoa e esparge gotas de fé, a única água limpa da área. É a praia de Ramos dos sambas de Dicró, onde o GPS está indicando que fica logo atrás do ponto de ônibus, da passarela de pedestres e da carrocinha de pipoca, o balneário sem pose onde os códigos de comportamento, de in e out, não foram decididos na reunião de anteontem na editoria de moda de alguma revista descolada. É praia sem patrocínio, sem aviãozinho passando com mensagem romântica para a gatinha e sem jet-ski enchendo o saco de quem quer dar um mergulho para tirar a areia e o zonzo da caipirinha. Vida real em estado bruto, a areia suja que continua a avenida Brasil e não há truque de laboratório que retoque. É tudo como está nas fotos, sem talco jogado na lente para suavizar o mundo, pois glamour é justamente o das carnes marcadas pela vida e a disposição de ser feliz de qualquer jeito. A vida sem retoques, sem bloqueador solar e guarda-sol alugado. Fique à vontade e mergulhe de barriga. Enfarofe-se na areia e encha de ar a boia de pneu porque ninguém está vendo. O Cristo é uma cara na toalha e os paparazzi estão longe, em praias alhures, à espreita do primeiro beijo da atriz das sete com seu novo namorado desta semana. Aqui é a grande novela da vida real, onde ninguém tira onda porque onda simplesmente não há. ///
Joaquim Ferreira dos Santos (1951), escritor e jornalista, nasceu no Rio de Janeiro. É consultor da Rádio Batuta.
Julio Bittencourt (1980) é fotógrafo freelancer. Trabalhou no jornal Valor Econômico. A série Ramos foi realizada no piscinão da zona norte do Rio de Janeiro de 2008 a 2010 e exibida na Galeria da Gávea em 2011.
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