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Zines e fotografia: uma história de resistência em tempos digitais

Rony Maltz Publicado em: 20 de março de 2018

Reprodução do zine Natureza controlada, 643 Collective (Estados Unidos), autopublicado.

A historiadora e crítica de arte Shelley Rice escreveu, em The Book of 101 Books (2001), que os fotolivros representam “uma história secreta embrenhada na conhecida cronologia da história da fotografia”. Nessa história da fotografia a partir das publicações impressas, viés que começa a ser melhor explorado apenas a partir das últimas décadas, a produção de zines representaria apenas uma nota de rodapé.

Quando o artista norte-americano Ed Ruscha (1937) autopublicou o hoje icônico Vinte e seis postos de gasolina, em 1963, quis que a obra fosse distribuída generosamente e a preços módicos. A edição inicial de 400 exemplares numerados foi sucedida por outras duas, de 500 e 3 mil cópias não numeradas, inundando o mercado para manter o baixo preço de capa. Impresso em papel couché barato, sem verniz ou acabamentos especiais,  o livro entrega exatamente o que o título promete: 26 fotografias frontais de postos de gasolina, da Califórnia ao Texas. Por vezes rotulado como “o primeiro fotolivro conceitual”, tornou-se uma pedra fundamental do gênero, presença garantida em coletâneas de livros sobre fotolivros. Mas, embora tenha se tornado uma referência, hoje, como na época em que foi lançado, o volume fino e despretensioso provavelmente passaria incólume nas listas de melhores livros de fotografias que pipocam em toda passagem de ano.

Reprodução do livro Vinte e seis postos de gasolina, de Ed Ruscha, 1963, autopublicado.

Como muitas dessas obras independentes, zines autopublicados costumam circular à margem do mercado formal; sua influência nem sempre é captada pelo radar das instituições de arte e da crítica especializada. Editar esses pequenos livretos, no entanto, é uma forma ágil e barata de articular uma ideia. Bastam algumas folhas impressas dobradas e grampeadas no meio, sem grande sofisticação técnica ou investimento material. Com a massificação da fotografia – hoje qualquer aparelho de celular a produz – e a facilidade de acesso a novas tecnologias de reprodução, como serviços de impressão digital sob demanda, essa prática, já muito comum entre poetas, quadrinistas e artistas visuais, entrou no radar dos fotógrafos.

O nome zine vem do sufixo de magazine (revista, em inglês), que, por sua vez, tem raiz no árabe “armazém” (al-Makhzan): depósito de todo tipo de mercadorias, lugar que comporta diversidade e variedade. Como os fanzines – revistas feitas por fãs sobre algum artista, grupo ou produto midiático –, os zines costumam ter estética amadora e rede de distribuição informal. Sem temática específica, em geral não são serializados ou padronizados, como os periódicos.

A vocação para a periferia  se explica em parte pela resistência à inserção no mercado editorial formal. Zines são livros arredios às categorizações e formas de organização tradicionais das livrarias. Finos, não há jeito de fazê-los parar de pé nas prateleiras; deslizam, empenam. Falta-lhes a lombada que revela o título e o nome do autor, facilitando a identificação nas estantes. Falta-lhes, não raro, o número de ISBN, indispensável ao registro catalográfico. De resto, cabe tudo: o zine tem caráter maleável e inclusivo. Se na publicação convencional – pelo alto investimento – não há espaço para erro, no zine, sobra. Ousado demais? Não para o zine. Estranho, esquisito? Não o bastante. Muito brega? Impossível. Provocador, exagerado? Sim, por favor.

Reprodução do zine The City Project, de 643 Collective (Estados Unidos), 2017.

Os zines  têm um ponto de inflexão fundamental na cultura punk e nos movimentos de contracultura das décadas de 1960 e 1970. Entre ativistas negros, feministas, LGBT, estudantes, pacifistas e grupos de resistência às ditaduras na América Latina, há uma profusão de discursos e demandas represados, vozes diversas que não encontram lugar nos principais canais de comunicação. Nesse contexto, a produção mambembe – do jeito que dá – de panfletos e zines fotocopiados era uma forma de se expressar sem mediação, ecoando vozes clandestinas dentro das próprias comunidades (ou efetivamente criando comunidades), reforçando laços, empoderando seus membros, e então projetando-as mundo afora, para contestar e disputar espaço com os discursos hegemônicos.

Nesse período, a arte engajada em uma “crítica institucional” reconhece estar inserida em um sistema de poder. O mercado não é mais algo alheio ao trabalho do artista, como se pudesse existir uma arte pura, fora do sistema de valoração subjetiva e da lógica capitalista que determina sua circulação (a quem é dado a ver, onde e em que circunstâncias). Essas estratégias – uso de materiais acessíveis, estética antiformalista, produção massificada – estão alinhadas à arte conceitual da época em sua valorização da ideia expressa na obra, mais do que seu suporte material ou refinamento técnico. Com um zine em mãos, como não faz sentido louvar a excelência dos materiais, o primor da ampliação fotográfica, a artesania da encadernação, o observador precisa buscar valor em outro lugar – talvez na ideia que motivou a edição. A “estética do precário” é indissociável de uma política e uma ideologia que compreendem as formas de distribuição e circulação  como inerentes à própria obra.

A arte, é claro, não surge apenas da repressão e da trincheira. Apropriado por autores com bagagens e pautas diversas, hoje o formato zine é onipresente em eventos e novos espaços comerciais dedicados aos livros de fotografia no mundo inteiro. Mas o DNA de inconformidade e independência editorial permanece presente. A produção de zines se identifica mais com a cultura da arte gráfica marginal, com sua forte herança estética e política das primeiras vanguardas do século 20 do que com a da fotografia fine art, ligada aos valores tradicionais da alta cultura europeia e à noção benjaminiana de aura.

Reprodução do zine Praia, de Carolina Cattan, autopublicado.

Para explicar a emergência do fotolivro no século 21, pesquisadores e artistas visuais argumentam que as pessoas sentem falta de certas dimensões da experiência com o impresso ausentes nas publicações digitais, como o tato e o olfato. Um bom exemplo desse apelo  sinestésico é Praia, de Carolina Cattan (1974), autopublicado em 2015 e indicado para o catálogo CLAP! dos melhores fotolivros contemporâneos da América Latina. Impresso em papel casca de ovo, a textura remete ao fino granulado da areia e filtra a intensidade da saturação do verão carioca, imprimindo em tons pastéis a sensação morna e modorrenta de mais um domingo quente de praia. Uma bela tomada aérea da orla de Copacabana cobre o zine de capa a quarta-capa. Após nos aconchegarmos na areia, contudo, o ângulo não muda mais: do início ao fim das 40 páginas costuradas a mão, assumimos a visão subjetiva de um banhista afundado em sua cadeira dobrável, a visão limitada pelo (pouco) que acontece diante de si, contra um céu azul anil.

O fotógrafo inglês Martin Parr (1952) disse certa vez que, enquanto outros fotógrafos saem em cruzadas em busca de guerra e fome, ele dobra a esquina e entra no supermercado local. Praia leva essa fórmula à última potência: o front de combate é o que está diante do nariz. Assistimos um casal de pele tostada; o homem barrigudo se vira para esquerda, depois para a direita. Na parte de cima do quadro um pedaço de guarda-sol pende insolente, como se a fotógrafa não tivesse se dado o trabalho de ajustar o enquadramento da câmera. Tampouco se deu ao trabalho de olhar em volta, como se por detrás do visor estivesse alguém que, olhos semicerrados, adormeceu com o dedo colado ao obturador. Ou, pelo contrário, alguém que, de olhos bem abertos, curiosidade disfarçada por esse mesmo visor, se deliciasse simplesmente com a banalidade invariável do espetáculo a sua frente.

A repetição tem um efeito sobre a imagem. Ela destitui cada fotografia de importância individual, inserindo-a em uma narrativa maior, que a circunscreve – como uma cena de um filme. A valorização do conjunto das imagens em detrimento de seus significados autônomos é uma característica que aproxima os zines do cinema e do vídeo – ou seja, da imagem em movimento –, em oposição, por exemplo, à pintura.

Em uma analogia com a literatura, o zine estaria para o livro de fotografias como o conto está para o romance. Não uma forma menor (exceto em tamanho), embora sem dúvidas mais econômica. Grandes escritores, como Jorge Luis Borges, privilegiaram a forma curta por toda a carreira (o argentino recomendava, ao invés de labutar em grandes romances, imaginar que estes livros já existissem e escrever seus resumos). E fotógrafos tarimbados como Alec Soth (1969), cujos novos lançamentos costumam se esgotar em poucas semanas, seguem produzindo livretos impressos em papéis baratos, distribuídos de forma independente e vendidos a preço baixo.

Capas dos zines Biblioteca para homens quebrados, Solitários homens barbudos e Lester se torna eu, de Alec Soth, editora Little Brown Mushrooms.

Soth, que fundou a própria editora –  a Little Brown Mushroom –, não hesita em publicar sem pompa, quando o projeto pede. Biblioteca para homens quebrados (Library for Broken Men, no original) é um zine com dicas de escapismo e sobrevivência para o homem que busca isolamento da sociedade. Outros dois livretos integram a série: Solitários homens barbudos (Lonely Bearded Men) – 18 variações do retrato falado de um homem barbado chamado Lester B. Morrison, espécie de alter-ego de Soth; e Lester se torna eu (Lester Becomes Me) – detalhes de um poster, usado de alvo em um rinque de tiro, com o rosto anônimo de um homem barbado, completamente perfurado de balas. Lançados em 2010, cada um teve 500 cópias e foi vendido a cerca de U$10. A título de comparação, o fotolivro de Alec Soth Manual quebrado (Broken Manual), sobre o mesmo tema, lançado em 2011 pela Steidl em uma primorosa edição de 300 exemplares, saía a U$950. Esgotado, hoje não se encontra por menos de U$2 mil, usado. É mais ou menos o valor atual de uma cópia de Vinte e seis postos de gasolina, mais de 50 anos após seu lançamento. Guardadas as proporções, os zines também não escapam no colecionismo especulativo e das leis de oferta e demanda que governam o mercado. A trilogia de Soth, igualmente esgotada, não se encontra por menos de R$500. Mas os autores têm sempre a opção de imprimir mais.

Este caráter contemporâneo do zine, bem como de outras  publicações impressas, foi ressaltada no relatório do Nieman Lab, da Universidade de Harvard, em que profissionais de mídia do mundo inteiro compartilham suas previsões para o jornalismo no ano seguinte. Em 2018, para Kawandeep Virdee, colaborador do site Medium, “a mídia digital vai refletir cada vez mais qualidades que fazem do impresso um ótimo veículo”. Em um mundo cada vez mais virtual e dominado pelos algoritmos, o prognóstico surpreende. “A maioria dos sites se parecem”, diz Virdee, “mas podiam ser esquisitos e maravilhosos”. Sob o título Zines acertaram desde sempre (Zines Had it Right All Along, em inglês), o autor listou as características que fariam do livreto impresso um modelo para a comunicação na era digital: são ótimos de segurar; vêm em enorme variedade; são experimentais e diversos, o que os mantém atuais e surpreendentes; são antiformalistas e simpáticos; e podem ser, ao mesmo tempo, sérios e lúdicos, profundos e populares.

A virtualização crescente das nossas rotinas não substituiu completamente o desejo pela fisicalidade. E a internet não caminha necessariamente para maior liberdade e autonomia, como se sonhou nos anos 1990. Nesse cenário de pasteurização da experiência contemporânea, o zine é uma alternativa possível e, talvez, um devaneio necessário.///

 

Rony Maltz é fotógrafo, professor de artes visuais e editor pela {Lp} press. Seu projeto #UmZinePorSemana2018 vai lançar um livro novo semanalmente ao longo de todo o ano.

 

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