Ver Ghirri vendo
Publicado em: 5 de março de 2014Uma conversa entre Thomas Demand e Christy Lange. Trecho retirado do catálogo da exposição, que pode ser adquirido aqui.
Christy Lange: a primeira vez que vi o trabalho de Luigi Ghirri foi em 1998, folheando um catálogo numa livraria de Milão, e fiquei espantada por nunca ter ouvido falar dele antes e por ele não ser mais conhecido fora da itália. onde foi que você viu fotos dele pela primeira vez?
Thomas Demand: Acho que foi na Art Basel, em 2002, e algum tempo depois você me mostrou outros trabalhos dele. Eu me lembro de ter visto duas fotografias de campos não cultivados perto de Módena.
Lembro de você ter dito que de início as fotos não chamaram tanto sua atenção.
Bem, em parte foi porque estavam expostas num corredor, entre obras de arte menos interessantes. Eu não compreendi logo de saída como elas narravam a história que tinham para contar, porque o importante é o contexto das fotos. Uma foto isolada pode ser banal, até mesmo insignificante. Quando você olha os livros que ele publicou, vê que ele tinha uma percepção muito clara de como combinar as coisas. Muitas vezes, é só uma referência formal, ou uma questão de escala. No livro Kodachrome, por exemplo, numa página aparece a foto de um sujeito segurando uma maquete da Torre Eiffel (p. 72), e na página oposta há uma foto de uma réplica da Torre Eiffel num parque de diversões (Rimini, 1977). Isso poderia ser fácil demais, mas em duas páginas, com uma escala tão diferente, na verdade ficou muito interessante. Você compreende como é que ele fotografa as coisas, como ele vê o mundo. Mas para isso você tem de ver os trabalhos um ao lado do outro.
Já que o contexto das imagens era tão importante, como foi que você procedeu para organizar a exposição coletiva O mapa segundo a natureza (La Carte d’après nature), realizada em mônaco em 2010-2011, que reuniu fotografias de Ghirri, quadros de rené magritte e trabalhos de 14 outros artistas?
Expor trabalhos dele foi um prazer, mas também um desafio, porque sempre há a tentação de mostrar coisas demais, e é preciso ter cuidado para construir uma estrutura temática, e não apenas responder a suas próprias perguntas e dar o caso por encerrado. Porque olhando todas as imagens dele, tem-se a impressão de que ele falava sobre qualquer coisa que aparecesse. O universo que ele criou em suas fotografias foi uma espécie de “Ghirriverso”. Para ele, fotografar era uma forma de olhar, de se mover no mundo.
Então, pensei: se eu imaginar uma conversa impossível entre nós, o que teríamos em comum? É provável que falássemos de coisas muito simples. Uma delas seria a natureza – em que medida, em sua obra, os espaços ao ar livre se tornaram um ícone, em vez de um ambiente real. É uma ideia muito romântica que encontra eco nas ideias do romantismo na Alemanha.
Depois pensei: sobre que tipo de arte conversaríamos? Vendo as fotografias de Ghirri, você começa a ter uma ideia muito surreal do mundo. É frequente que as imagens dele apresentem uma combinação surreal de duas coisas que não seriam interessantes isoladamente, mas, combinadas, tornam-se impressionantes. Elas contêm a promessa de um mundo poético, para além da matéria palpável. Foi por isso que decidi incluir a obra de Magritte na conversa.
E, em terceiro lugar, imaginei de que forma Ghirri percorreria a exposição e a fotografaria. Imagino que ele enquadraria a imagem com muito cuidado. Ele fotografava a mesma coisa 50 vezes até chegar ao enquadramento preciso. Fica muito claro que ele precisava achar o corte certo e exato. Ou seja, o trabalho dele não tem nada a ver com o instante decisivo.
Na minha opinião, ele sempre perde o instante decisivo, e isso é o mais interessante. O enigma de seu trabalho está realmente em perder esse instante, ele está sempre um pouquinho atrasado. Mesmo quando foi encarregado de fotografar os shows de seu amigo Lucio Dalla, os resultados nunca lembravam as típicas fotografias de rock and roll, de multidões suarentas ou coisas assim. As fotos sempre estavam um passo atrás. Lembra quando fomos à casa de Dalla? Ele tinha na parede três ou quatro fotografias feitas por Ghirri, de reuniões do partido comunista, na Itália, na década de 1970, e a visão de Ghirri parece inteiramente desconexa… As fotos dele não mostram rituais coletivos, como as fotos de Wolfgang Tillmans ou Andreas Gursky. Na verdade, são imagens muito estranhas, que fazem o observador se sentir excluído. Você vê
A desordem lá fora, mas está sempre um passo atrás. Por isso, acho que no trabalho de Ghirri não há nada de instante decisivo. O que há é a melancolia de ter perdido esse momento, e isso provavelmente descreve bem toda a sua obra.
Para mais informações sobre a exposição Luigi Ghirri – pensar por imagens no IMS do Rio de Janeiro clique aqui.