Swinguerra : o chamado do corpo
Publicado em: 17 de setembro de 2019No final de agosto, Swinguerra (2019), o mais novo filme de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, produzido para representar o Brasil na 58ª Bienal de Veneza, foi apresentado no Pavilhão da Bienal, no parque do Ibirapuera. No mesmo dia, o Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo também exibiu Swinguerra no CineSesc em sua mostra competitiva. Depois da sessão, houve um programa especial com seis filmes dos artistas, quase a totalidade dos trabalhos produzidos pela dupla. Ficou de fora apenas Cinéma Casino (2013), anterior à colaboração com o diretor de fotografia Pedro Sotero.
As exibições no Festival de Curtas acompanham o movimento dos artistas de enviar seus filmes também para festivais de cinema, como a Berlinale, que concedeu a Rise (2018) o prêmio de melhor curta-metragem este ano. Nesses espaços, parte do público coincide com os frequentadores de exposições, mas uma parcela relevante é composta por espectadores ligados apenas ao cinema, com outros critérios e hábitos. Mas não é apenas o público que muda de um lugar a outro: a própria obra também adquire contornos distintos em cada ambiente. O que se segue é um relato da experiência de assistir a Swinguerra e aos demais filmes dos artistas deslocados do espaço expositivo para o contexto da sala de cinema.
Nos últimos cinco anos, Bárbara Wagner e Benjamin de Burca vêm realizando uma série de filmes a partir do intercâmbio com universos específicos da música e da dança popular, como o frevo, o brega, o gospel e o hip hop. Do mergulho nesses universos resultaram filmes como Faz que vai (2015), Estás vendo coisas (2016), Terremoto santo (2017), Bye Bye Deutschland (2017), que se aproxima do gênero musical alemão schlager, e, mais recentemente, Rise e Swinguerra.
A produção desses filmes tem sido marcada pela colaboração direta dos artistas com os retratados. Em Terremoto santo e Estás vendo coisas, a dupla trabalhou em conjunto com músicos ligados ao gospel e ao brega, estabelecendo uma economia horizontal de troca de referências estéticas que se imprimem na fatura final dos filmes. As filmagens costumam ser precedidas ou acompanhadas por séries fotográficas de Bárbara Wagner, que servem tanto para a pesquisa e o casting, quanto para a criação de intimidade entre os envolvidos.
O que se estabelece é uma diluição das fronteiras tradicionais entre artista e modelo. O artista se apaga e se confunde com o universo retratado, atuando mais como produtor ou agenciador do que como um autor, no sentido tradicional do termo. Um pouco como a arte pop nos anos 1960, trata-se de abrir os espaços do museu a manifestações populares esnobadas, embaralhando alta e baixa cultura e provocando curtos-circuitos nas plateias – muitas vezes elitizadas – de museus e festivais de cinema.
Do ponto de vista formal, os filmes da dupla têm se destacado por uma notável uniformidade, a despeito do mergulho em universos tão diferentes. A câmera enquadra os dançarinos e cantores de maneira frontal e despojada, em longos planos abertos. A encenação quase sem closes ou enquadramentos fechados em partes dos corpos evita deliberadamente o confronto e objetificação das personagens: são os performers que nos interpelem, às vezes nos olhando de maneira insidiosa. Por sua vez, a textura fotográfica, que empresta a mesma nitidez à figura e ao fundo, cria um espaço achatado, com pouca profundidade de campo. O que vale é a superfície, o valor de face da performance para a câmera.
Esse modo de encenação, somado à potência da música e da dança, institui um engajamento físico para o espectador, que se completa com a experiência do espaço expositivo, onde percebemos nosso corpo e o dos demais, que entram e saem, conversam, olham o celular. Justamente o tipo de experiência que o cinema procura minimizar, afundando-nos prazerosamente na poltrona em um ritual com começo, meio e fim que respeita o protocolo da não interrupção. No cinema, o corpo do espectador se atrofia, o que vale do corpo é o olho, simplesmente.
Apenas com o olho, no entanto, parece que não estamos aptos a viver a integridade da experiência que esses filmes propõem, pois o que está em jogo não é uma simples documentação de diferentes modos de viver e de se relacionar com a música e a dança, mas a criação de um espaço performativo com os personagens. A questão central dos filmes é a maneira como, através do controle dos meios de produção de fotos e vídeos, os performers constroem sua própria imagem. Eles se montam e se desmontam para a câmera, e se exibem, autoconscientes dos efeitos que provocam.
Esse espaço da performance e do artifício, nos filmes da dupla, é frequentemente contrastado àquele do cotidiano. Em Estás vendo coisas, MC Porck e Daiana Paixão vão e vêm entre o glamour das gravações de videoclipes e suas atividades de cabeleireiro e bombeira. Em Rise, as letras de rap tomam forma em meio às locações cinzas do metrô de Toronto. Já em Bye Bye Deutschland, passeios com um carrinho de bebê ou de carro são subitamente “encantados” pela música, que transporta os personagens para o território da representação dos musicais. Importa aqui menos distinguir entre o real e o fabricado do que transitar livremente por esses elementos e acreditar na potência da imaginação, até mesmo para gestar futuros possíveis.
Após o gospel, o brega e outros, em Swinguerra o universo de referência é a Swingueira, uma competição anual de dança que se realiza em Recife desde o início dos anos 2000. Unindo repertórios coreográficos que misturam gêneros tradicionais, como o frevo e as quadrilhas de São João, ao pagode baiano, ao funk e à música pop, diversos grupos de dança competem, avaliados segundo critérios semelhantes aos da disputa de escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo, como harmonia, evolução, alegorias e adereços. No entanto, mais do que abordar um fenômeno local, nesse filme Wagner e Burca vão do particular a uma leitura mais ampla do Brasil contemporâneo.
Como em outros trabalhos da dupla, iniciamos o filme em um espaço cotidiano. Em uma quadra pública, grupos se reúnem para ensaiar coreografias, enquanto se olham e se bisbilhotam mutuamente. A situação sugere uma batalha de passinhos. A rivalidade é mais acirrada entre duas mulheres trans. Eduarda Lemos, que já estava em Faz que vai, se impõe desde o início como a protagonista, enquanto Clara Santos a encara com alguma dose de inveja e se imagina como a líder de outro grupo.
Essa rivalidade, que na apresentação do filme em Veneza reverbera no espaço expositivo, com a exibição em dois canais e o público dividido entre duas arquibancadas, no cinema é mediada apenas por jogos de olhares. As disputas entre os grupos, cada qual com sua identidade (Extremo, La Mafia e Passinho), estabelecem um território que remete ao imaginário cinematográfico do high school norte-americano. Enquanto se observam, se fotografam e filmam umas às outras com seus celulares, as personagens às vezes se imaginam em produções pops semelhantes aos clipes de Beyoncé, bem mais elaboradas do que o ensaio em que de fato estão. Ao fim de uma dessas digressões, o coreógrafo grita: “Chega de anarquia, formação de grupo!”. Descobrimos, então, que as duas personagens, apesar de rivais, pertencem à mesma turma.
Pouco depois, saímos do espaço do ensaio para o da apresentação propriamente dita, um ambiente externo, onde os jovens aparecem com figurinos em vermelho e preto. Nesse momento, uma voz em off com um comentário estranhamente ufanista se sobrepõe aos rostos dos dançarinos, em gesto de continência e enquadrados de baixo para cima: “Brasil, um país maravilhoso. Realmente, devemos honrar o que está escrito na bandeira. Ordem e Progresso”. Esse discurso se reflete na locação, uma área militar em Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco, onde os colonizadores portugueses puseram fim à ocupação holandesa em 1648. Muito embora essa e outras informações referentes às locações estejam presentes apenas nos créditos, podemos supor que, se a quadra do ensaio, pertencente ao Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (CaIC), em Olinda, encarna a permanência de um projeto de educação pública, a arena final conclama um chamado à luta, à altivez e à união cívica.
Embora a frase nacionalista permaneça difícil de ser digerida, especialmente em tempos bicudos de uma política que flerta com a ditadura militar, o que está em questão é o gesto de reposicionar aqueles jovens, marginalizados por sua raça, seu gênero e sua classe social, para o centro de uma visão de Brasil. A condição de marginalizados será relembrada pelo cenário ao fundo – no tecido com buracos que emulam marcas de bala, vemos asas enormes – , mas o filme se impõe a tarefa de criar um lugar simbólico de luta e resistência para esses jovens: o Brasil são eles.
Essa ideia se confirma no epílogo do filme, com a entrada em cena de uma senhora (Kinha do Tamborete). Sentada na arquibancada e com um carrinho de mão repleto de bancos, ela interrompe a saída do grupo ao anunciar seus produtos em um bonito repente. O lugar ocupado por essa senhora é menos o de uma plateia real, diegética, do que imaginário: ela é emblema de um país arcaico, com suas longas tardes de prosa na frente de casa, que se contrapõe ao Brasil contemporâneo, representado pelos corpos jovens não binários do filme.
Se muitas vezes a abordagem da cultura popular feita pelo projeto moderno brasileiro se pautou por um anseio de preservar “da extinção” certas manifestações escolhidas por dedos elitistas, em Swinguerra o passado é visto sem nostalgia e se confunde totalmente com o pop. A cultura popular, modificada por várias influências e difundida pelas redes sociais, está viva através das pessoas envolvidas e da maneira que faz sentido para elas. Ao final do vídeo, a protagonista dá as costas à senhora e segue adiante.
Poderíamos questionar se o corte que separa a jovem e a senhora como duas realidades inconciliáveis no mesmo plano não arrisca romper os laços de certa ancestralidade em troca de um presente que se quer tábula rasa. Afinal, a luta das mulheres, a dança das mulheres anunciada durante a coreografia, não parece incluir Kinha do Tamborete. Ainda que sua aparição possa ser lida como homenagem (o jogo com Wagner e Burca nunca é simples, mas sempre duplo, ambíguo), a sensação de abandono de uma tradição faz com que algum incômodo persista. Há qualquer coisa de triunfante no olhar da protagonista para a senhora e em sua saída de cena, fitando ao infinito. Mais do que nunca, porém, é preciso seguir em frente.
Como em Estás vendo coisas e Terremoto santo, Swinguerra vê na criação de um espaço performativo um lugar de afirmação, ao mesmo tempo individual e cultural. Mas, diferentemente dos outros filmes, aqui esse espaço de elaboração de uma autoimagem não se restringe à lógica do espetáculo comercial. Ele está contido no próprio corpo, na própria pele, na medida em que o filme é protagonizado por duas mulheres trans que encarnam uma concepção desessencializada de ser, na qual o existir se define em igual medida pela aparência e pela essência, na qual ser e performar amalgamam-se indistintamente.
Assim, o que Swinguerra afirma é um chamado no nível do corpo. Um chamado que nos lembra que manter a liberdade e o governo do próprio corpo é um gesto de resistência ao cerceamento que se impõe. Pois preservando o prazer e a alegria, demarcamos a não identificação com esse cerceamento. O ponto alto do filme, como da maioria dos trabalhos da dupla, sobretudo se assistidos no espaço do museu, onde os corpos se percebem e se incomodam mutuamente, é de ser um convite à vitalidade – alegria, alegria, alegria! Os corpos múltiplos que dançam juntos na tela são em quase tudo contrários aos corpos sem vida de muitos de nós espectadores, tantas vezes alienados do que extrapola nosso domínio individual. Oxalá que desse corpo autoconsciente, livre e vivo, passemos – unidos e em segurança – a um corpo político mais promissor.
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Calac Nogueira é mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA/USP, onde desenvolveu a pesquisa Máquina, corpo e erotismo nos filmes de Andy Warhol. É crítico e pesquisador de cinema.
Livia Azevedo Lima é editora e doutoranda com bolsa Fapesp do programa Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP, onde desenvolve a pesquisa Trilogia da Paixão: Saraceni leitor de Lúcio Cardoso.
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