Sarajevo sitiada: livro do jornalista Fernando Costa Netto relembra os 25 anos do final da Guerra da Bósnia
Publicado em: 2 de junho de 2021
Em agosto de 1993, o jornalista e fotógrafo Fernando Costa Netto embarcou em um voo operado pela ONU com destino a Sarajevo, cidade então sitiada pelo exército da antiga Iugoslávia. Sem credencial ou apoio de algum grande veículo de mídia, o jovem repórter queria ver de perto o sangrento conflito que deixou mais de 12 mil civis mortos. Agora, 25 anos depois, Netto lança o livro Maybe Airlines Sarajevo, com fotos de três viagens que fez a Sarajevo, durante e depois da Guerra da Bósnia.
Em entrevista, Netto nos conta dos perigos que enfrentou e da sua motivação para embarcar na “Linha Área Talvez” rumo ao local mais perigoso do mundo à época. “Caminhava das 8 da manhã até escurecer procurando estar longe da mira dos snipers sérvios estacionados nas montanhas, observando por onde as pessoas iam e indo atrás, salvaguardado pelas casas e prédios, evitando ruas vazias. O maior medo era perder o horário e estar na rua depois do anoitecer, com a cidade escura por falta de energia”, nos conta o repórter.
Como foi ter ido para Sarajevo sem nenhuma estrutura ou apoio de uma grande empresa de mídia? E como isso influenciou o tipo de registro fotográfico que você fez do conflito? E ainda: por que Maybe Airlines?
Fernando Costa Netto: Naquela altura viajar sem estrutura era a única alternativa. Com 30 e poucos anos era o normal, era mais interessante e não tinha como ser diferente. Havia lido em Imperium, livro do jornalista e escritor polonês Ryszard Kapuscinski que tinha acabado de ir para as livrarias e era a minha bíblia, que um bom repórter não pode ter preguiça para cruzar fronteiras, e tomei isso como mantra de vida. Queria ser um bom repórter e estava no início da minha carreira. Para essas duas viagens permutei passagem aérea, bilhete de trem, dólares e até o colete à prova de bala com a Taurus, item indispensável para entrar em Sarajevo. O meu colete emprestado, apesar de ser um item para proteção contra munição civil e sem qualquer utilidade contra armas usadas em guerras, serviu como passaporte e para esquentar o corpo no inverno. A contrapartida era sempre a logomarca dessas empresas que me ajudavam assinando as reportagens que publicaria na Trip, a revista mais interessante das bancas nos anos 90 e aonde quer que fosse. A falta de dinheiro acabou me aproximando mais das pessoas comuns e da rua, que era o meu foco. Maybe Airlines, o nome do livro, é uma alusão ao apelido que o Aeroporto de Sarajevo recebeu durante aqueles anos de guerra. Os aviões Hércules da ONU eram a única forma de alcançar Sarajevo e não havia qualquer garantia de embarque e data. Para saber se haveria mais chance em Ancona, na Itália, ou Split, na Croácia, era uma loteria com o Mar Adriático no meio. E algumas vezes os voos da “Linha Aérea Talvez” também eram interrompidos pelos bombardeios. Acho que os próprios capacetes azuis o batizaram, digo isso porque existe uma página no Facebook chamada Maybe Airlines onde os antigos capacetes azuis que serviram na Bósnia trocam infomações e publicam suas fotos da época.
O cerco a Sarajevo transformou todos os moradores em alvos de atiradores sérvios escondidos nas montanhas em torno da cidade, fossem eles civis, militares, jornalistas, etc. Como foi para você viver e fotografar nessa condição?
FCN: Caminhava das 8 da manhã até escurecer procurando estar longe da mira dos snipers sérvios estacionados nas montanhas, observando por onde as pessoas iam e indo atrás, salvaguardado pelas casas e prédios, evitando ruas vazias. O maior medo era perder o horário e estar na rua depois do anoitecer, com a cidade escura por falta de energia. Aconteceu algumas vezes, os barulhos eram estranhos, gritos, vultos passando… a noite era fantasmagórica.
Você esteve em Sarajevo em três momentos: em agosto de 1993 e fevereiro de 1994 (quando a cidade estava sitiada) e depois em 2006, já depois da Guerra da Bósnia. O que você registrou em cada um desses diferentes momentos?
FCN: Conheci Sarajevo no verão, a 30 graus positivos, e no inverno, a 20 graus negativos. Nas duas viagens eu não tinha um roteiro definido, as histórias, as imagens iam aparecendo. O único investimento local foi 100 dólares para a guia Amra Truli [se não me engano esse era o sobrenome] me levar até o front, a trincheira, um ponto de disputa de bósnios e sérvios. Observar a guerra mais de perto fortaleceria a narrativa da história que eu queria contar. Em 2006, 12 anos depois do fim da guerra, fui tentar encontrar os amigos, conhecer a cidade pulsante que é Sarajevo, fotografar de novo alguns locais do mesmo ângulo, visitar a família que me hospedou. Amra havia deixado Sarajevo. Retornar a Sarajevo foi uma experiência fascinante.
O que o levou a revisitar essas fotografias e publicá-las em formato de livro 25 anos depois de terminado o conflito?
FCN: Esse livro nasceu pontuado pelos 25 anos do fim do cerco a Sarajevo. No dia 29 de fevereiro de 1996, Sarajevo foi libertada. Há exatamente 25 anos e algumas semanas o anel militar sérvio de 20 mil homens armados com equipamentos do exército da antiga Iugoslávia, que aterrorizou os cidadãos de Sarajevo, foi dissolvido. Há 25 anos terminava a guerra que durou 1.425 dias, de 5 de abril de 1992 a 29 de fevereiro de 1996, assassinou 12 mil civis, quase 2 mil menores de idade entre as vítimas. Com esse livro-documento acho que encerro um ciclo que durou quase 3 décadas. ///
Maybe Airlines Sarajevo
Fernando Costa Netto
Garoa Livros
96 páginas
Tags: fotojornalismo, fotolivro, Guerra da Bósnia