As fotografias de Rosa Gauditano e as greves do ABC no final dos anos 1970
Publicado em: 21 de maio de 2018Em 1977, a fotógrafa Rosa Gauditano (1955) iniciava sua carreira profissional com o Brasil vivendo sob um regime autoritário. Naquele momento, a repressão da ditadura contra seus opositores ainda era forte, assim como o controle sobre a chamada grande imprensa, que praticava desde a autocensura até um discurso de franco apoio ao regime. No entanto, aquele governo já começava a ser desafiado por alguns movimentos políticos e sociais, e também por uma imprensa engajada, que apoiava tais movimentos. Mais combativos e questionadores, embora de alcance mais limitado, estes jornais e revistas passaram a ser conhecidos pelo nome de imprensa alternativa. Foi para esta imprensa que Rosa Gauditano fotografou nos primeiros anos de sua carreira, sendo que uma das primeiras pautas cobertas por ela foi a mobilização dos operários do ABC paulista que, a partir de 1978, se transformou em uma série de grandes greves.
Esta onda de greves teve início nas fábricas de automóveis na região metropolitana de São Paulo, em maio de 1978, e iria continuar por mais três anos. Foi a primeira grande greve no Brasil após o AI-5, decretado uma década antes pelo regime militar. A cobertura fotográfica, principalmente a realizada por fotojornalistas e fotógrafos documentais independentes, teve participação importante nestes eventos. Imagens como as de Rosa Gauditano colocaram em evidência o operário, um novo sujeito social que não tinha espaço de representação na mídia hegemônica, nem tampouco no discurso das esquerdas tradicionais brasileiras até aquele momento. Criaram uma representação visual associada a este novo operariado, e, em retrospectiva, ajudaram a criar uma memória coletiva sobre as lutas sociais e políticas do período.
Foi nas páginas da chamada imprensa alternativa que a maior parte destas imagens das greves do ABC circulou. Eram publicações que começaram a aparecer por volta de 1975, produzidas de forma mais ou menos precária e com tiragens menores do que a grande imprensa. Faziam oposição ao regime tanto política, dando voz aos movimentos de esquerda, quanto comportamental, desafiando o moralismo das classes médias. Algumas tinham distribuição mais ampla, em nível nacional, como Movimento, Versus, Em Tempo e Nós Mulheres. Outras eram mais restritas à cidade de São Paulo, voltadas para uma determinada região ou bairro, como Jornal da Vila, ABCD Jornal e O São Paulo, da Cúria Metropolitana de SP.
Segundo Bernardo Kucinsky, no livro Jornalistas e revolucionários: Nos tempos da imprensa alternativa, esses jornais e revistas acabaram por criar um espaço público alternativo naqueles anos finais da ditadura, onde debates que não tinham lugar na grande imprensa finalmente passaram a circular. Ao escrever isso, Kucinsky está pensando especificamente nos debates escritos. No entanto, essa imprensa alternativa também criou espaço para novas representações e linguagens visuais desenvolvidas pelo fotojornalismo.
Rosa Gauditano trabalhou como freelancer para vários deles, mas foi no Versus que ela se estabeleceu. Em 1977, ainda iniciante, ela chegou quase por acaso à redação. Um ano depois, no número 19, de março/abril de 1978, Gauditano já aparece nos créditos com o cargo de editora de fotografia. Como diversos outros fotojornalistas independentes que trabalharam junto à imprensa alternativa, o processo de trabalho de Rosa Gauditano era bastante autônomo: fazia a própria pauta, escolhendo o que e como fotografar, revelava e ampliava as fotografias em sua própria casa, editava e depois as oferecia para os jornais alternativos como o Em Tempo e o Movimento, além do Versus.
As fotografias de Rosa Gauditano sobre as greves do ABC mostram os diferentes aspectos da mobilização operária. É bastante representado, por exemplo, o dia a dia da mobilização, como as diversas assembleias dos operários para discussão e votação de pautas e decisões coletivas. Entre 1979 e 1980 tais reuniões ocorreram frequentemente no estádio esportivo de Vila Euclides, em São Bernardo do Campo. A imagem reproduzida acima, feita durante a greve de 1980, mostra uma dessas votações. A grande multidão que ocupa o estádio levanta os braços apoiando alguma das propostas apresentadas. Em um desses braços erguidos, como que para ressaltar o voto, se destaca o jornal Em Tempo, cujo título é claramente visível na imagem. Rosa Gauditano inclui na fotografia, além do espaço público real onde acontecia a mobilização operária, o estádio de São Bernardo, também o novo espaço público de debates aberto pela imprensa alternativa.
Esta fotografia foi feita de uma altura levemente acima dos participantes da assembleia, no meio deste mar de braços, indicando que a fotógrafa estava lado a lado com os trabalhadores. A proximidade da multidão foi uma estética bastante utilizada por Rosa Gauditano, revelando um engajamento da fotógrafa com o evento e as pessoas fotografadas. Essa proximidade do olhar está presente não apenas nas fotografias das greves do ABC, mas também, por exemplo, nas imagens do Movimento Contra a Carestia. Em uma sequência feita naquele mesmo ano de 1978, durante uma manifestação na porta da Catedral da Sé, vemos a fotógrafa se aproximando aos poucos de onde se encontra o que parece ser o centro do protesto, uma faixa onde se lê “abaixo a repressão”.
A primeira foto mostra uma visão mais afastada, que inclui três planos diferentes: uma linha de policiais em primeiro plano, de costas para a fotógrafa mas de frente para os manifestantes, uma massa de pessoas concentrada nas escadarias e, ao fundo, a imponente fachada da catedral. A faixa com os dizeres de protesto está no meio da foto, mais à esquerda. Na segunda, Gauditano parece ter buscado centralizar a faixa no enquadramento, se deslocando para a esquerda e também para a frente, ultrapassando a linha de policiais e preenchendo quase todo o quadro com a massa de manifestantes. Já a terceira imagem é muito próxima da faixa, no meio do grande número de pessoas concentradas na entrada da catedral. Uma quarta foto ainda mostra um momento posterior, caótico, em que a polícia reprimiu a manifestação com bombas de gás.
Assim como nesta manifestação, os momentos de maior tensão durante a repressão ao movimento grevista também foram registrados pelas lentes de Rosa Gauditano. Em 1979 ela fotografou a repressão de policiais armados, a cavalo, a pé e em carros, contra os trabalhadores que faziam piquetes em frente à fábrica da Volkswagen em São Bernardo do Campo. Em 1980, ela fez a fotografia abaixo, registrando o momento em que a polícia militar soltou bombas de gás contra não apenas os metalúrgicos em greve, mas também contra a população que estava ao redor da Igreja Matriz de São Bernardo do Campo e que tentava naquele momento sair em passeata comemorativa do 1˚ de Maio. Novamente chama a atenção nesta imagem a proximidade da fotógrafa com a ação e com os seus protagonistas, posicionada justamente entre as pessoas e a bomba de gás lançada em direção a elas, e que vai ser chutada para longe por um homem.
Outro aspecto da fotografia que chama a atenção é a presença, como em muitas outras ocasiões registradas por Rosa Gauditano no período, apenas de homens. A predominância masculina nas imagens das greves do ABC é válida para os dois lados da câmera: o movimento dos operários era majoritariamente masculino, e os fotógrafos que o cobriram eram também na grande maioria homens. Rosa Gauditano era uma das poucas mulheres a romper essa barreira. Com o passar do tempo, e especialmente durante a greve de 1980, as mulheres dos sindicalistas passaram a se mobilizar e começaram a ganhar protagonismo. O mesmo não aconteceu com o outro lado, o do fotojornalismo, que, segundo algumas fotógrafas atuantes naquele tempo, era um ambiente bastante patriarcal. Gauditano também tinha essa percepção: “Eu fui abrindo portas. Não com os movimentos [sociais]. Fui abrindo portas na imprensa. Eu era uma das poucas mulheres, não me lembro quem mais tinha de mulher. Tinha eu e a Nair [Benedicto], que fotografávamos essas coisas. Tinha mais uma menina que era lá de São Bernardo. Aí depois veio a Cristina [Vilares]. Éramos poucas. Todas freelancers”.
A pauta sobre as greves do ABC foi a porta de entrada de Rosa Gauditano no fotojornalismo dos principais veículos nacionais. No início da década de 1980, depois de deixar a editoria de fotografia do Versus, passou a trabalhar como freelancer para diversas publicações da grande imprensa. Durante este período, ela participou ativamente da profissionalização do fotojornalismo brasileiro, via sindicato e organizações de classe. Os fotógrafos independentes conseguiram nesse momento algumas reivindicações históricas, como garantias de copyright e uma tabela de preços. A partir de 1984, trabalhou como contratada do jornal Folha de S. Paulo e em seguida da revista Veja, dois expoentes da grande imprensa. Mas já em 1987, volta ao trabalho independente, fundando a Agência Fotograma, com Ed Viggiani e Emidio Luisi.
Durante as décadas seguintes, seu trabalho fotográfico se focaria em temáticas sociais, como as crianças de rua, prostitutas, movimentos de mulheres, manifestações populares e religiosas, e, principalmente, a população indígena. Manteria, assim, a opção por dar visibilidade a sujeitos sociais apagados ou oprimidos que já estava clara na sua atuação durante as greves do ABC.
As fotografias que Gauditano fez desta sua primeira pauta são valiosos documentos históricos. A partir do movimento operário do ABC paulista se consolidou um movimento sindical, levando, nos anos seguintes, à formação de um partido de base trabalhadora, o primeiro deste gênero no Brasil. A atuação de Rosa Gauditano, juntamente com outros fotógrafos da época, foi fundamental na formação de uma visualidade característica do movimento operário e de sujeitos sociais até então invisíveis no Brasil do final da década de 1970 e início de 1980.///
Rosa Gauditano (1955) é fotógrafa com passagens pelo jornal Folha de S. Paulo (1985) e revista Veja (1985-1986), onde ganha o Prêmio Abril de Fotojornalismo (1986). Em 1987 fundou a agência Fotografama, com com Ed Viggiani e Emidio Luisi. É autora dos livros Índios – Os Primeiros Habitantes (1998), Raízes do Povo Xavante (2003) e Festas de Fé (2004). Desde 1997 dirige a agência StudioR, trabalhando nas áreas de publicidade, jornalismo e documentação.
Erika Zerwes é doutora em História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP e pós-doutora pelo Museu de Arte Contemporânea da USP.
Tags: fotografia documental, fotojornalismo, Greves ABC