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A onipresença de uma usina siderúrgica na paisagem urbana de Ipatinga no ensaio do fotógrafo Rodrigo Zeferino

Publicado em: 25 de maio de 2018

Ensaio O grande vizinho, de Rodrigo Zeferino, 2016-2018. Cortesia do autor.

Nascido na cidade mineira de Ipatinga, o fotógrafo Rodrigo Zeferino precisou viver alguns anos fora e depois retornar à sua cidade natal para se dar conta de quão estranha era a paisagem urbana de um município que cresceu em torno de uma grande usina siderúrgica, inaugurada em 1962 na então localidade de Horto de Nossa Senhora, na época distrito de Coronel Fabriciano.

“Ao longo da minha carreira, eu meio que reneguei o ambiente industrial e desenvolvi boa parte do meu trabalho na periferia ou mirando cenários bucólicos que sofriam interferência humana. Mas a cidade e as fábricas continuavam aqui, latejando”, comenta Zeferino sobre seu projeto fotográfico O grande vizinho, feito ao redor da usina que domina a paisagem de Ipatinga.

ZUM conversou com Rodrigo Zeferino sobre as motivações e inspirações para este projeto, vencedor do prêmio Conrado Wessel de 2017.

 

De onde veio a ideia para o ensaio O grande vizinho? E como foi o processo de pesquisa para o projeto?

Rodrigo Zeferino: A ideia de criar um ensaio fotográfico abordando o cenário urbano peculiar do Vale do Aço mineiro sempre esteve na minha cabeça, ainda que em estado inerte. Por ter nascido em Ipatinga e morado a maior parte de minha vida na cidade, sempre tive certa resistência em lançar meu olhar sobre ela, me sentia contaminado demais.

Ao longo da minha carreira, eu meio que reneguei o ambiente industrial e desenvolvi boa parte do meu trabalho na periferia ou mirando cenários bucólicos que sofriam interferência humana. Mas a cidade e as fábricas continuavam aqui, latejando. E foi durante uma busca em meus arquivos que me deparei com uma imagem que havia feito nos primeiros dias em que me mudei de volta para Ipatinga. Essa imagem resumia bem o sentimento de estranhamento que tive ao voltar a conviver com aquela equação arquitetônica que multiplicava urbanidade por indústria pesada.

Voltei ao mesmo lugar para refazer a imagem com maior rigor técnico. Foi quando percebi que poderia construir um ensaio com essa abordagem, pois conhecia bem o local e sabia que aquele aspecto visual podia ser encontrado em vários outros pontos da cidade originalmente planejada. A partir daí comecei a identificar esses pontos nos quais eu poderia me posicionar de modo a conseguir enquadrar prédios ou casas situando a usina no segundo plano, acentuando a hiperbólica proximidade entre eles.

Foto que deu origem à série O grande vizinho, de Rodrigo Zeferino, 2009. Cortesia do autor.

Porque a decisão de fazer as fotografias de noite?

RZ: A fotografia noturna está bastante presente em todo meu trabalho, foram circunstâncias da minha trajetória pessoal que me levaram a desenvolver vários projetos aplicando esse procedimento. Tenho algumas pesquisas nas quais estudos os efeitos da poluição luminosa sobre as cidades, e em O grande vizinho essa abordagem ganhou um componente especial que ajuda a reforçar o conceito do trabalho.

Desde minha infância eu ouvi muitas vezes os mais velhos comentarem sobre o que denominei de mito do “monstro noturno”. Existe uma crença, ainda vigente, de que durante as horas mais escuras, a usina passa a lançar quantidades multiplicadas de resíduos na atmosfera e que bastaria observar as chaminés após o pôr-do-sol para notar isso. Mas após anos de observação e pesquisa, conclui que se trata de um fenômeno visual muito simples, ligado à questão da poluição luminosa, bem conhecida por fotógrafos em geral: quando a noite cai e as luzes da usina e da cidade se acendem, forma-se uma aura luminosa no espaço aéreo que se estende por muitos metros acima do chão, refletindo e refratando nas nuvens mais baixas, que por sua vez parecem se fundir ao vapor e à fumaça que sai das chaminés, formando uma massa inteiriça. O aspecto é de fato enigmático e pode levar a leituras distorcidas da realidade.

Pesquisei também sobre os processos industriais siderúrgicos para concluir que não faria sentido algum a usina mudar seus procedimentos em uma parte do dia, visto que o processo de produção é contínuo.

Em algumas fotos o desolamento da paisagem urbana para ser reforçado pela presença solitária de alguns personagens. Foi essa a intenção? E como foi encontrar e trabalhar com essas pessoas?

RZ: Minha busca geográfica na cidade foi guiada por imóveis que se situam num raio de até 2 km dos limites da planta (alguns deles estão a poucos metros da cerca) e que tinham potencial para propiciar uma composição harmônica. Em seguida eu contatava os moradores que habitavam essas moradias – ou os proprietários, nos casos de imóveis comerciais – e os convidava a participar do projeto. Há sempre um trabalho de convencimento, mas umas das qualidades mais conhecidas do povo mineiro é a receptividade. Muitas vezes eu chegava já à noite, tocava a campainha e era prontamente recebido, explicava o projeto e produzíamos a imagem imediatamente. Em outros casos, marcávamos uma nova data, mas sempre com muita colaboração e entendimento. Quase todos os personagens abordados concordaram em participar.

A partir daí eu solicitava que eles se posicionassem em janelas ou sacadas, ou mesmo na rua, em poses que transmitissem uma certa indiferença, uma atitude blasé. Por ter sido uma cidade planejada para receber uma grande usina siderúrgica – cortada por vias largas e repleta de bosques urbanos que amenizam o clima hostil da atividade produtiva – desde sempre a população coexiste com essa realidade de forma bastante natural, sem muito estranhamento com relação ao caráter excêntrico do seu skyline. Era essa a sensação que eu queria transmitir, de conformidade, de não deslumbramento.

Uma certa visualidade distópica permeia as imagens do seu ensaio. Você concorda? Inspirou-se em algum escritor, fotógrafo ou cineasta para buscar este resultado?

RZ: Nossas referências culturais estão sempre planando à nossa volta, e em alguns momentos elas se encaixam a certas questões da vida, trazendo um reforço intelectual para lidarmos com as situações que se apresentam. Sem dúvida trago referências literárias a este trabalho que se manifestaram espontaneamente quando surgiu a ideia, desde Aldous Huxley, passando por Franz Kafka e chegando em George Orwell. Este último aparece de forma mais evidente, começando pelo título da série, inspirado no Big Brother, personagem do livro 1984.

O slogan do governo, na sociedade fictícia do autor britânico, “Big Brother is watching you” (“O Grande Irmão está de olho em você”, sendo que em inglês a frase tem sentido duplo) resume um pouco da relação entre a cidade e a usina: ela a sustenta economicamente, mas também a observa.

Não posso deixar de citar também a visualidade distópica de alguns filmes de Andrei Tarkovski, que sempre influenciaram minha produção de alguma forma.

 

Você considera o projeto finalizado? Ou continuará a fazer mais fotografias para esta série?

RZ: A premiação da Fundação Conrado Wessel foi, sem dúvida, um estímulo para a continuidade do projeto. Estou produzindo novas imagens para a série. Agora nesta nova fase fotografo a usina de dentro, com foco na complexidade das grandes estruturas que movem o processo da produção siderúrgica. Fiz uma pequena exposição dessa série durante o Foto em Pauta – Festival de Fotografia de Tiradentes, em março. Haverá outra exposição em Vitória, na galeria Casa Tutti. Mas a exposição completa acontecerá em Ipatinga, no fim do ano, com a curadoria do amigo e parceiro Pedro David. O projeto prevê a mostra numa galeria e inclui, além das fotos, grandes peças mecânicas usadas na produção do aço. Parte da mostra será feita com painéis posicionados nas ruas da cidade.

A exibição desse trabalho no Vale do Aço tem um significado especial. Em nenhum outro lugar essas imagens causarão o mesmo efeito no público. Digo isso porque logo após a publicação de algumas imagens na mídia local, fui abordado por várias pessoas que diziam mais ou menos a mesma coisa: ao ver as fotografias, elas manifestaram uma mudança na forma de olhar a cidade, tinham o olhar adormecido e hoje conseguem perceber o paradoxo da sua paisagem diária. ///

 

Rodrigo Zeferino (1979) vive e trabalha em Ipatinga (MG). Seus trabalhos já foram exibidos no Brasil e no exterior e estão presentes em coleções como a Pirelli-MASP, Sérgio Carvalho e MAM-RJ. Recentemente conquistou o 1º lugar no XV Prêmio FCW de Arte, oferecido pela Fundação Conrado Wessel.

 

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