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Rio canibal: as linguagens do corpo carioca em cartaz no MAR

Felipe Scovino Publicado em: 12 de agosto de 2016

A exposição Linguagens do corpo carioca [a vertigem do Rio], em cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR) até o dia 9 de outubro, com curadoria de Paulo Herkenhoff e Milton Guran, reúne cerca de 800 obras que apresentam, segundo os curadores, “um corpo plural, constituído pelo cruzamento de amplas referências culturais tecidas desde o Brasil colonial até os dias de hoje”. Dividida em 11 núcleos, que receberam títulos como “Corpos vorazes”, “Corpos coletivos”, “Corpos cosmopolitas e locais”, a mostra torna visíveis os diferentes regimes de fala que o corpo emite e como estes ajudaram a construir o imaginário sobre o Rio.

A expografia, com paredes entreabertas que facilitam um fluxo mais dinâmico do espectador, permite-nos penetrar, identificar, refletir e deixar os nossos corpos imersos em mais de um núcleo ao mesmo tempo. Por todo o percurso somos transportados para uma experiência sonora, visual e mesmo tátil do Rio, que se reflete numa cacofonia produzida por sambas, funks e toda sorte de estilos musicais que têm o Rio como tema e que contêm os mais distintos discursos sobre a cidade. Essa massa sonora vem dos vídeos e instalações que, juntamente com projeções de fotos, correspondem à maior representatividade de suportes da mostra.

Fabio Teixeira. Salto em Copacabana (menino brinca de saltar na praia de Copacabana, Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro), 2013. Col. do artista

Fabio Teixeira, “Salto em Copacabana”, 2013. Coleção do artista

Logo na entrada somos recepcionados por uma síntese do pensamento dessa curadoria: entre imagens do calçadão de Copacabana antigamente – um espaço que se colocava como um território presumidamente democrático, visto que as mais diversas classes sociais se misturavam por aquele tapete de pedras portuguesas –, das musas do teatro de revista, do Cassino da Urca, dos corpos que bailam ao som dos pancadões, de imagens típicas ao estilo cartão-postal e de figuras míticas do cenário carioca como o Zé das Medalhas – um senhor que perambulava por Copacabana e que era reconhecido pelas dezenas de medalhas e metais que carregava no corpo –, refletimos sobre o caráter multifacetado do Rio de Janeiro, simultaneamente cordial e violento, democrático e excludente, profano e apolíneo. Este é um ponto favorável e ao mesmo tempo perigoso da exposição, pois ela não se livra de exibir estereótipos sobre o que significa ser uma “cidade maravilhosa”. Estão lá imagens icônicas e clichês da cidade: o futebol na areia da praia, o banho de mar, a forte presença da paisagem montanhosa e os corpos bem delineados. Penso que há até um exagero do uso desse tipo de imagem do Rio na mostra, embora entenda a vontade de apresentar essa oscilação entre um Rio paradisíaco e sua violência encarnada em diversos espaços e tempos, ou os diferentes regimes de visibilidade e discursividade da cidade.

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Benoit Fournier, “Foule”, 2011

Grande parte das obras tem como fio condutor mostrar uma documentação e obras de arte que exibem, refletem, auxiliam no reconhecimento histórico e problematizam manifestações culturais que – antes de mais nada, de indubitável qualidade – foram produzidas por classes sociais menos abastadas e vítimas de toda sorte de preconceito; falo sobretudo dos negros, pobres e moradores de comunidades e favelas, que construíram um imaginário rico não apenas sobre o Rio, mas sobre o Brasil, reconstruindo pontes com as suas próprias origens, africanas ou não. Tomemos o funk como estudo de caso: se pensarmos em sua gênese nos guetos americanos e a leitura que se faz dele hoje nas comunidades cariocas, veremos que as letras, as danças e a batida são completamente distintas. É esse caráter de invenção e canibalismo, como os curadores apontam, dirigido especialmente para o discurso do corpo, que faz a cultura brasileira ainda, sem nenhum demérito, ser resumida pelo Manifesto Antropófago: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”.

Um dos méritos da exposição é refletir sobre a riqueza, a diversidade e a forte herança que os escravos africanos e toda a cultura negra deixaram no Brasil, em geral, e no Rio, em particular. Esta situação é muito bem representada pelas imagens de Pierre Verger. Por outro lado, passando por imagens do samba, do funk, do cuidado com o corpo e das religiões afro-brasileiras, somos levados a pensar no diálogo que, por exemplo, o passinho pode estabelecer com o jongo e com os rituais do candomblé, ou a proximidade que as práticas pós-neoconcretas de Hélio Oiticica (Parangolé) e Lygia Pape (Trio do embalo maluco) tiveram com a dança e a música africanas. Há também obras de Heitor dos Prazeres, o músico e pintor que de forma pessoal retratou o cotidiano das comunidades da cidade, sempre deixando um rastro de musicalidade.

João Pina, Policial civil fotografa João Paulo da Costa, suspeito de tráfico de drogas preso durante uma operação policial na favela do Acari, Rio de Janeiro, 2009

João Pina, Policial civil fotografa João Paulo da Costa, suspeito de tráfico de drogas preso durante uma operação policial na favela do Acari, Rio de Janeiro, 2009

Para além desse corpo e imagem festivos, exibe-se uma cidade com uma atmosfera densa, ruidosa, inacabada, pessimista, que convive lado a lado com todo o suposto otimismo. Em “Corpos vorazes” vemos as fotos de João Pina que documentam a tensa e violenta relação entre as comunidades, a polícia e os milhares de anônimos brutalmente assassinados e que, segundo o artista, são recorrentemente identificados pela imprensa como bandidos sem que as investigações sobre seus homicídios tenham sido concluídas ou mesmo iniciadas.

Esse núcleo está em conversa direta com “Corpos inconstantes”, no qual vemos registros fotográficos do embate entre o poder público e índios de diversas etnias. Entre outros, há registros dos índios que ocuparam a Aldeia Maracanã, perto da Copa do Mundo no Brasil, buscando garantir a permanência daquele prédio e discutir a falta de uma política indigenista no país, e duas sequências singulares: na primeira, um índio porta um arco e aponta uma flecha em direção a dois seguranças do BNDES, que correm desesperadamente em direção ao interior do prédio daquele banco; na segunda, são exibidas imagens sucessivas de Mário Juruna, o primeiro deputado indígena do Brasil.

Ricardo Chaves, "Juruna e seu gravador", sem data

Ricardo Chaves, “Juruna e seu gravador”, sem data

Em seguida surgem as fotos de Carlos Vergara sobre o carnaval, documentando o bloco Cacique de Ramos, um dos testemunhos mais engenhosos sobre o encontro entre arte e política. Uma das obras mais icônicas dessa série de Vergara (Sem título (Poder), 1972), mostra três jovens negros posando tendo como fundo a avenida Presidente Vargas, por onde os blocos e escolas de samba desfilavam antes da construção da Apoetese. No peito nu de cada um deles, a palavra “poder” escrita em tinta branca. Suburbanos, pobres, negros, excluídos, esses jovens representavam uma espécie de suspensão de poder que acontece durante o período momesco. Supostamente não há distinção, porque quem manda é a alegria. No reino da utopia (temporária ou não), todos são caciques. O poder nesse caso significa paz, liberdade e igualdade, e esse grito surdo ganha ainda mais qualidade durante o regime de exceção que o Brasil sofreu nos anos 1970. Esse núcleo não nos deixa esquecer que a cidade também é um espaço de conflito, atrito e tensão. Somos ainda lembrados do cerco e ataque dos militares depois da missa de Edson Luís de Lima Souto na Candelária, em 1968. Contra a violência desmedida e banalizada, resta o corpo vitimado e ao mesmo tempo resistente.

Carlos Vergara, "Sem título (poder)", 1972

Carlos Vergara, “Sem título (poder)”, 1972

Em “Corpos melancólicos”, encontramos uma cidade diametralmente oposta à dos cartões-postais: escura, sombria, desértica. Longe de seus elementos icônicos, a cidade se revela por completo. Deparamos também com as moradias improvisadas que pululam nas ruas e com o descaso da sociedade e do poder público. É a tensão política entre o sujeito e o mundo, que acontece em meio a uma atmosfera de silêncio, melancolia e vazio, em que vemos emergir signos da violência e da desorientação. Nesse momento, certas referências são perdidas justamente porque o presente nos parece incerto e trágico. Há nas imagens de Bruno Veiga, por exemplo, espaços vazios que revelam um lugar qualquer como se, independentemente de onde estivermos ou de quem formos, o mundo sempre se revelasse terrível e silencioso. Enxergamos perspectivas de uma cidade que mais separa e exclui do que agrega.

Bruno Veiga, "Paisagem blindada", 2013

Bruno Veiga, “Paisagem blindada”, 2013

Assim, e contrapondo as últimas linhas do texto curatorial que faz referência à paisagem de um Rio repleto de clichês (“Sol, sal, suor, som, azul sem-fim e verde profundo, alturas, frescor de mato, águas que rolam, malemolência, ziriguidum e borogodó, pele com pele, luz e vento são palavras-chaves para se chegar bem perto da vertigem do que é ser carioca”), nos defrontamos com a obra Cais do corpo (2015), de Virgínia de Medeiros. Fazendo uma arqueologia social e cultural da praça Mauá, região onde está localizado o MAR, a artista expõe o fenômeno da gentrificação. Antiga área de prostituição da cidade, hoje restam poucas prostitutas, casas de strip-tease e bordéis ali, e é justamente a partir desses locais que ela traça, em vídeo, a frágil permanência dessa atividade na praça. Na prática, a gentrificação configurou-se como excludente, elitista e higienista, alterando o perfil imobiliário da população local em troca de uma “qualidade do seu padrão cultural”, abrindo espaço para a construção de imóveis para a população de alta renda e expulsando a população de baixa renda para longe dos centros urbanos, modificando severamente a paisagem cultural, arquitetônica e humana da cidade. Um trabalho potente, que nos faz pensar que, em nome do progresso e da civilidade, a cultura e a história podem ser apagadas por não serem condizentes com a maravilha de um cenário.

Virginia Medeiros, "Cais do corpo", 2015. Cortesia da artista

Virginia Medeiros, “Cais do corpo”, 2015, still do vídeo. Cortesia da artista

Não podemos deixar de mencionar que essa exposição ocorre durante as Olímpiadas, no momento em que o governo nas suas três esferas constrói um modelo de cidade que pretende ingressar em algo que ele define como cidade global. Dentro dessa visão, a cidade supostamente torna-se democrática em suas vias de acesso e usos do espaço público, maquiada por uma arquitetura arrojada. Tal chancela encontra um ambiente perfeito no Rio de Janeiro, porque se associa quase que naturalmente a sua paisagem, ou melhor, à forma como ela é construída pelos meios que a legitimam e a exportam – inclusive, e ainda mais grave nesse caso, pelo meio cultural. O carioca é o povo permissivo ao afeto, à mudança e à diferença. É o “homem cordial” cunhado por Sérgio Buarque de Holanda. O sentimento que fica após deixar a exposição é de que ela poderia ter sido mais crítica a essa nova imagem de cidade global que se confunde com a própria imagem já sacramentada de cartão-postal.///

Marcia Zoet. Karen Prado - jogadora de futebol feminino do Complexo do Alemão da série As Donas da Bola, 2014. Coleção da artista.

Marcia Zoet, “Karen Prado, jogadora de futebol feminino do Complexo do Alemão”, 2014, da série “As donas da bola”. Coleção da artista

 

Felipe Scovino é crítico de arte e professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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