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Retrato ou paisagem? Ou: Por que giramos a câmera?

Mauricio Puls Publicado em: 15 de janeiro de 2016
Alfred Eisenstaedt, Beijo na Times Square após a vitória dos Estados Unidos sobre o Japão na Segunda Guerra, Nova York, 1945. © Alfred Eisenstaedt/Pix Inc./Time & Life Pictures/Getty Images.

Alfred Eisenstaedt, Beijo na Times Square após a vitória dos Estados Unidos sobre o Japão na Segunda Guerra, Nova York, 1945. © Alfred Eisenstaedt/Pix Inc./Time & Life Pictures/Getty Images.

Cenas infinitas, uma decisão: a foto deve ser horizontal ou vertical? À primeira vista, a posição da câmera deveria se ajustar ao tema. Mas não é bem isso o que acontece. O enquadramento não é imposto pelo objeto: ele resulta de uma escolha do sujeito.

O que determina essa escolha? Decerto existe um cálculo estético, mas ele é em larga medida inconsciente: nem sempre há tempo para que um fotógrafo avalie todas as consequências de seu ato. Contudo, uma vez feita a tomada, um mesmo evento adquire expressões visuais muito diferentes.

Numa imagem horizontal captamos uma extensão maior da linha do horizonte. Os elementos ficam mais dispersos, e a foto parece mais aberta. Numa imagem vertical a linha do horizonte aparece muito compactada. Os elementos ganham coesão, e a foto parece mais fechada.

Sabemos disso. Tanto assim que o primeiro formato é denominado “paisagem”, e o segundo, “retrato”. Por que esses retângulos receberam tais nomes, já que vemos tantas paisagens verticais e retratos horizontais? Existe mesmo uma correlação entre tema e enquadramento?

Consideremos mais atentamente a estrutura sintática desses dois gêneros: o retrato está focado no homem, a paisagem está focada no mundo. O primeiro se baseia na predominância da figura sobre o fundo, enquanto na última ocorre o inverso. Por isso o retrato tende a se fechar em torno do centro, enquanto a paisagem se abre nas margens.

Retomando a distinção entre formas fechadas e abertas, proposta pelo historiador Heinrich Wölfflin em Conceitos fundamentais da história da arte, é possível dizer que o retrato apresenta a imagem como uma realidade limitada que se volta sobre si mesma, enquanto a paisagem se apresenta como uma realidade ilimitada, ainda que confinada pela moldura.

Ora, como o formato vertical se ajusta melhor às cenas fechadas, ele tende a realçar a figura. Já o horizontal facilita o registro das cenas abertas, e por isso contribui para destacar o fundo. A denominação atribuída a cada enquadramento possui, portanto, bons fundamentos.

O problema é que essas duas formas de enquadrar o espaço visível não influem apenas no grau de abertura ou de fechamento da foto: elas definem o sentido de leitura da imagem.

Nas fotos horizontais o olhar caminha da esquerda para a direita, volta, refaz o percurso, porém o sentido geral da leitura é sempre da esquerda para a direita. Nas verticais, o olhar desliza de cima para baixo, sobe, torna a descer: o sentido geral da leitura é sempre de cima para baixo. E o resultado não é o mesmo, há uma diferença.

Uma paisagem mostra as figuras em sucessão, uma depois da outra, o que confere certa temporalidade à imagem. Isso favorece a narração. É como se a foto contasse uma pequena história envolvendo os elementos da cena. A imagem vai se desenrolando como um filme que começa à esquerda e termina à direita. Esse modo de representar o tempo por meio de uma série de figuras no espaço configura a imagem como uma linha aberta, infinita.

Um retrato mostra as figuras quase simultaneamente, uma acima da outra, o que enfatiza a espacialidade da imagem – favorecendo a descrição. A foto destaca as relações existentes entre as coisas, já que tudo está centrado na figura principal. Quem a vê é induzido a considerar a imagem um instantâneo de um momento: o tempo foi congelado no instante decisivo do processo. A imagem se configura como um círculo fechado, finito.

Quando giramos a câmera, obrigamos o olhar do espectador a percorrer um caminho inteiramente diverso. Mesmo que os elementos refigurados sejam os mesmos em uma foto vertical e em outra horizontal, a mente estabelece conexões distintas entre as figuras que integram a cena: a narração comunica ações, enquanto a descrição comunica relações.

Exemplo: uma paisagem mostra um homem em pé e, mais adiante, uma casa. O que depreendo disso? Que o homem vai entrar na casa, ou talvez que ele tenha construído a casa. Ou seja, imagino uma ação, um processo. Mas se eu vejo um retrato com um homem diante de uma casa, eu penso: o homem vive naquela casa, ou talvez ele seja o dono da casa. Imagino uma situação, uma relação de subordinação: pode ser que a casa pertença ao homem.

O conteúdo real refigurado pela foto é o mesmo, mas a forma estética evoca ideias muito distintas: o modo como emolduramos o mundo determina a maneira como o interpretamos: o sentido da leitura determina o significado da imagem.

Talvez pareça estranho imaginar que um simples formato possa provocar tais efeitos. Mas, se observarmos nossa vida cotidiana, veremos outras evidências desse fenômeno. Quem costuma tomar café sabe que um espresso servido numa xícara grande é muito diferente daquele servido numa xícara pequena. Nesta última o aroma e o sabor ficam mais concentrados, o café parece mais denso, mais amargo. Já na xícara grande tudo se distende, a bebida parece mais suave, mais doce. Algo similar ocorre com o vinho: taças diferentes, sensações distintas. Em todos esses casos, o objeto é o mesmo. Mas o formato altera o modo como o percebemos.

Tomemos uma foto conhecida. Em 14 de agosto de 1945, em Nova York, Alfred Eisenstaedt registrou o beijo do marinheiro em uma enfermeira ao final da Segunda Guerra Mundial. A cena ficou famosa em seu corte vertical depois de ter sido publicada na revista Life. Nessa configuração é possível visualizar algumas pessoas ao fundo, mas tudo está centrado nos protagonistas. Mas, se considerarmos um possível recorte horizontal daquela mesma cena, o significado mudaria completamente. O casal continua no centro da foto, mas nossa visão se dispersa pelos personagens secundários: a euforia que emanava da imagem vertical se dissipa nas laterais.

Não seria correto inferir que a diferença decorre apenas da quantidade de personagens em questão. O formato do fundo tem um peso crucial no impacto de cada foto: o retrato aumenta a tensão visual, a paisagem a reduz. Cada formato tem um sabor muito diverso.

O enquadramento altera nossa disposição em relação à imagem. A realidade não é vertical nem horizontal: os dois retângulos são apenas as fôrmas que o fotógrafo utiliza para registrar aquilo que vê. Só que eles também expressam a posição do homem diante do mundo.

Como explica a artista plástica Fayga Ostrower, as linhas horizontais são mais imóveis e tranquilas, pois a posição deitada está associada às ideias de sono, repouso e morte. As linhas verticais, ao contrário, são muito mais dinâmicas e tensas, a posição em pé lembrando imediatamente as ideias de movimento, energia e ação. Um retângulo horizontal recorda a serenidade de um templo grego; o vertical é inquietante como uma catedral gótica.

A paisagem constitui uma janela para o mundo, uma abertura através da qual podemos observar os acontecimentos. O retrato, por sua vez, lembra uma porta para o mundo, uma abertura que nos convida a entrar nos acontecimentos. Assim, quando definimos o campo visual, projetamos nossa disposição subjetiva – passiva ou ativa – no objeto.

A foto vertical de Henri Cartier-Bresson que mostra um homem saltando sobre um pátio alagado é um clássico do instante decisivo. Ela está centrada num homem e na sua sombra projetada sobre a água.

Henri Cartier-Bresson, Place de l'Europe, Gare Saint Lazare, 1932. © Henri Cartier-Bresson/Magnum Photos/Latinstock.

Henri Cartier-Bresson, Place de l’Europe, Gare Saint Lazare, 1932. © Henri Cartier-Bresson/Magnum Photos/Latinstock.

Em princípio, apresenta-se como uma foto narrativa: como a figura principal está situada na lateral direita da imagem, é evidente que aquele senhor teve de caminhar sobre a escada antes de saltar: não lhe restou outra opção.

Contudo, quando nós fechamos os olhos e pensamos na foto, só nos lembramos do salto. É isso o que fica registrado em nossa memória. A escada desempenha um papel secundário, constitui apenas um elemento de preparação do pulo. A imagem vertical embute uma narração, mas sua essência é descritiva. Ela congela o momento que resume todo o processo.

Consideremos outro exemplo. A foto horizontal Tomoko no banho, feita por W. Eugene Smith em 1971, mostra uma mãe dando banho numa adolescente cega, surda e muda na aldeia de Minamata, no Japão. É uma imagem melancólica.

Parece, de início, uma foto descritiva: uma mulher cuida de sua prole – tal como nas representações clássicas de Nossa Senhora com o menino Jesus. Mas logo percebemos que não se trata de uma criança comum: a horizontalidade dos corpos na banheira, que culmina na forma amorosa com que a mãe contempla o rosto crispado da filha, conduz nossa reflexão às causas desse infortúnio (a intoxicação dos moradores pelo mercúrio lançado no mar por um complexo industrial) e, em seguida, aos sofrimentos dessa jovem.

A imagem horizontal é, portanto, essencialmente narrativa. O contraste entre os dois exemplos é notável: enquanto a imagem de Cartier-Bresson congela o salto, a de Eugene Smith desenrola uma tragédia. Cada uma se relaciona com o tempo de maneira diversa: a primeira inscreve a cena em uma espécie de presente eterno, enquanto a segunda a submerge no processo histórico. Tomoko Uemura morreu em 1977, mas o personagem anônimo de Cartier-Bresson continua saltando em nossa imaginação.

Mas que fique claro: um formato pode reforçar ou enfraquecer uma estratégia discursiva (narração ou descrição), mas ele é incapaz de, por si só, criar um discurso, assim como posicionar uma figura na seção áurea da imagem tampouco assegura uma boa composição.

O meio não é a mensagem: uma configuração abstrata não pode “produzir” significados concretos. Os princípios de composição somente fornecem pistas para o fotógrafo. Um formato pode aumentar ou reduzir a tensão de uma cena, mas não pode criar essa tensão.

A posição de uma foto define somente o sentido geral de leitura da imagem, jamais cria a própria imagem. Mas o formato traça o caminho a ser percorrido pela visão e, com isso, determina o significado da cena, pois estabelece o modo como conectamos todos os elementos fotografados.

Definir se uma fotografia deve ser um retrato ou uma paisagem não é uma decisão trivial. Essa escolha pode esquentar ou esfriar a imagem – e pode inclusive contribuir para que a foto se apresente como uma narração do passado ou uma descrição do presente. Em geral decidimos o enquadramento de forma quase irrefletida. Mas, conhecendo melhor as consequências estéticas de girar a câmera, talvez seja possível embasar melhor as nossas escolhas.///

 

Mauricio Puls é formado em ciências sociais pela USP. Escreveu os livros Arquitetura e filosofia (Annablume, 2006) e O significado da pintura abstrata (Perspectiva, 1998). É colaborador do jornal Folha de S.Paulo e escreveu sobre o trabalho Avenida Celso Garcia, de Lucia Mindlin Loeb, para a ZUM #9.

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