Radar

O álbum de fotografias como livro

Daniela Fonseca Moura Publicado em: 19 de setembro de 2022
Utaki, de Ricardo Tokugawa. Lovely House, São Paulo, 2021

Poderia começar esse texto fazendo uma contextualização histórica sobre como as fotografias de família tradicionalmente foram produzidas para circular no ambiente doméstico, particular. Esse tipo de memória, quando é possível tê-la, é costumeiramente revisitada em contextos afetivos, em busca de semelhanças entre gerações ou para relembrar tempos outros e rituais específicos de passagem da vida.

Nessa linha de pensamento, os fotolivros surgem como uma forma de tornar públicas histórias privadas, confiadas antes às páginas de álbuns cuidadosamente guardados. Assim o fez de maneira icônica a fotógrafa estadunidense Sally Mann, ao publicar Immediate Family em 1992 e expor sensivelmente a intimidade desnuda de seus filhos.

No contexto atual, entretanto, esse movimento de publicização do privado é em grande parte operado pelas redes sociais. Cotidianamente vejo mais imagens de familiares de amigos e de desconhecidos do que de meus próprios parentes.

Sendo assim, quais seriam os outros gestos e reflexões proporcionados pelos fotolivros sobre esse tema hoje? A partir da leitura de sete fotolivros recentemente publicados no Brasil e do relato de seus autores e autoras, comento alguns desses aspectos.

Fresta, Dayane Araújo
FrestaLab, Fortaleza, 2021.

Ao longo de 20 anos, Dayane Araújo colecionou, em suas palavras, “ordinarismos” do cotidiano da casa dos seus avós: “relicário de pequenos objetos herdados, leitos com seus lençóis emaranhados, espaços íntimos e uma série de fragmentos de corpos e constelações de sinais justapostos como paisagem”. Em Fresta, a autora convida o leitor a se apropriar desse arquivo de memórias e sequenciá-las com suas próprias mãos.  A publicação tem o formato de um álbum com grande parte das páginas em branco, com cortes para acomodar as fotografias, que podem ser reordenadas a qualquer momento. A partir desse aspecto, pode-se refletir sobre a natureza da própria memória, constituída por relações arbitrárias entre fragmentos de imagens.

O conjunto de fotografias guarda em comum uma atmosfera de tons pastéis e meia-luz. Em parte das imagens vemos frestas – um rasgo de luz que adentra o cômodo – ou, por meio delas, espiamos entre portas, cortinas e janelas. “Fresta é um grande ‘corredor’ em meu exercício labiríntico de lembranças que fabricam uma casa, em busca de fundar uma nova cronologia, uma nova terra onde ponha os pés ou uma nova mitologia familiar onde posso explorar o delicado limiar entre arte e autoanálise, público e íntimo”, comenta a autora.

O natal da minha tia, Rafael Adorján
Autopublicado, Rio de Janeiro, 2021.

Com uma câmera snapshot emprestada no momento, Rafael Adorján produz um típico álbum de família em torno de um encontro natalino. “Durante a realização do evento, eu me dei conta de que fui inserido em um universo planejado cuidadosamente em cada etapa pela minha tia”, afirma o autor.  Com uma abordagem descritiva do cenário, objetos e acontecimentos da festa, Rafael narra o espetáculo orquestrado por sua tia Maristela em que familiares, imagens religiosas e personagens da indústria cultural americana encenam em conjunto.

“Minha tia sempre foi muito caprichosa e dedicada na produção visual de suas festas, tendo em vista também a sua experiência como professora de ensino primário, mas eu não esperava que naquele Natal ela estivesse realmente disposta a superar qualquer expectativa nesse sentido”, conta.

O design do livro é assinado pelo estúdio Bloco Gráfico e explora a experiência estética do evento, ao sobrepor fotografias em fundos coloridos e estampas natalinas, como se embaladas para presente. Diante de um livro sem respiro, por conta da ausência de sombra nas imagens e de páginas em branco, a sensação é de uma saturação visual bem humorada.

Carta de despejo, Cícero Costa
Autopublicado, São Paulo, 2021.

Carta de despejo é uma publicação artesanal. Seu único exemplar foi costurado e bordado à mão, tendo a capa e a luva forradas de linho. As fotografias foram encaixadas em canaletas sobre as páginas, intercaladas com papel translúcido, remetendo a um tradicional álbum de família. “Minha família, como várias outras, tem uma ausência de registros, seja em imagens, seja na oralidade”, conta Cícero Costa. “O trabalho, como série e objeto, é uma tentativa de buscar essa ‘tradição’”.

O tema, entretanto, não tem um tom celebratório, mas de despedida. “É o registro do espaço de tempo entre o recebimento de uma carta de despejo e a saída da minha família da casa onde morávamos”, explica o autor. O livro percorre os cômodos da casa, ainda repletos de objetos pessoais, com uma certa frieza dada pelo uso do flash direto. Inserido nesse universo de sentimentos contraditórios – afeto e dor, tradição e ausência, Cícero comenta que por meio da fotografia percebeu outras questões: “o espaço pequeno, a relação da minha família com a televisão e também os diversos códigos que estão nas imagens que, de alguma forma, são não só da minha família, mas de milhares de famílias pelo Brasil que neste momento estão passando ‘veneno’”.

Utaki, Ricardo Tokugawa
Lovely House, São Paulo, 2021.

Utaki pode ser traduzido como templo ou lugar sagrado, na expressão originária de Okinawa, conjunto de ilhas ao sul do Japão de onde emigraram os avós de Ricardo Tokugawa. O livro parte do reencontro do autor com sua família, após passar um período morando fora do país. “Retornei à casa dos meus pais com um olhar de estranhamento sobre a minha identidade e ancestralidade”, conta Ricardo.

Com um projeto gráfico minimalista, o livro se destaca pela exploração da fotografia como ferramenta de investigação das relações, símbolos e tradições que permeiam o ambiente familiar. Ricardo retrata a si mesmo, cria cenas em conjunto com seus pais e se apropria de imagens de arquivo, intervindo de maneira explícita para afirmar “o caráter performático da existência humana”, como escreve Daniel Salum no texto que acompanha o livro. Faz também referência ao próprio processo de representação ao fotografar dispositivos de reprodução de imagens e brincar com o enquadramento de molduras, janelas e quadros.

“Em Utaki eu procuro confrontar e recriar modelos, questionar a construção de uma identidade e sugiro que a tradição é algo inventado”, afirma o autor. “Também é um convite para quem o veja, através de um olhar de dentro para fora, a reconhecer e estranhar os seus próprios hábitos particulares e tradições”.

Dona Ana, Tiago Coelho e Ana Sousa Werner
Austral, Porto Alegre, 2022.

Em Dona Ana, Tiago Coelho acompanha a jornada de retorno de Ana Sousa Werner a sua cidade de origem, Vila Japim, no Pará. Aos 17 anos, Ana atravessou o país, passando por Belém e São Paulo até se estabelecer no interior do Rio Grande do Sul, onde começou a trabalhar na casa dos pais de Tiago como babá. “Sendo a boa contadora de histórias que é, Ana povoou minha infância com a paisagem e o imaginário de sua terra natal, no extremo oposto do Brasil”, conta Tiago. Quando, em 2012, Ana decide ir em busca de seus parentes nortistas, com os quais não tinha contato há 40 anos, Tiago pede para acompanhá-la: “essa seria, para mim, a oportunidade de conhecer o território de suas histórias” e, como fotógrafo, “uma chance de retratar a migração por outro ponto de vista — a do retorno”, conta.

As imagens foram inicialmente publicadas em um zine logo após a viagem dos dois. Mas Ana protestou, dizendo “que eu havia deixado muitas páginas em branco: o resultado final, segundo ela, não chegava nem perto de contar sua história de forma satisfatória. Ana desenhou, então, pautas nos espaços que eu havia deixado em branco e, entre as fotografias, redigiu sua história de próprio punho”.

O livro agora lançado é um encontro entre as fotografias de Tiago e as palavras de Ana; entre a fotodocumentação e o relato autobiográfico. A experiência de leitura remete a outros sentidos, o da oralidade, como quem adentra uma roda, abre um álbum de fotografias e escuta histórias fisgadas da memória.

Leve a sério o que ela diz, Isabella Lanave
Lovely House, Curitiba/São Paulo, 2022.

As relações familiares são o plano de fundo do fotolivro Leve a sério o que ela diz. Para Isabella Lanave, o livro é fruto do seu “processo de elaboração sobre crescer com uma mãe diagnosticada com um transtorno mental dentro de uma sociedade que a estigmatiza o tempo inteiro”. Após anos fotografando a relação com sua mãe, a autora decidiu procurar outras pessoas com experiências parecidas, que acabaram se tornando personagens do livro. Como em Dona Ana, há um cuidado evidente em garantir espaço para a autopercepção das/dos retratadas/os que contribuíram para a publicação com cartas, desenhos e poemas. E que participaram ativamente na produção e escolha de seus retratos.

A sequência de fotos do livro intercala retratos com paisagens, objetos e principalmente elementos da natureza. Uma colméia de abelhas nativas, jardins, flores, ruínas e florestas atuam como metáforas de maneira dúbia, ora como sentimentos de transmutação, ora como camuflagem da história de violência dos espaços manicomiais.

A diversidade das histórias de cada retratado, em conjunto com o sentido de leitura da direita para a esquerda (que desafia o formato padrão do livro no contexto ocidental), contribuem para o objetivo da publicação: “transformar a perspectiva do olhar diante da loucura, para perceber outras complexidades e tantas familiaridades em todes nós”, diz a autora.

Morro e não posso velar meu corpo, Julia Pupim
Selo Turvo, São Bernardo do Campo, 2021.

Morro e não posso velar meu corpo é “uma caixinha de memórias que coloca uma lupa sobre minha relação com a minha mãe, seu adoecimento e morte”, explica Julia Pupim. A caixa revela em seu interior um livro, uma carta escrita de próprio punho, uma página retirada de um livro não identificado e uma folha de papel dobrada. Nesta última, uma sequência de imagens com aspecto cinematográfico: uma mulher alimenta pássaros, se torna vulto e então desaparece na última imagem, como se transmutada nas aves.

Os mesmos pássaros abrem a narrativa do livro, que reúne fotografias produzidas ao longo dos últimos meses em que Julia e sua mãe estiveram juntas. “Sua doença nos aproximou muito e, com a pandemia, tive a oportunidade de estreitar nossos laços, nessa relação que nem sempre foi harmoniosa. (…) tudo que eu tinha era nosso cotidiano, então acabei registrando esses momentos tentando vencer os dias longos da quarentena”, conta a autora.

Na busca por traduzir o sentimento de luto, Julia resgata imagens de arquivo e explora fotografias com uma estética noir, em que a atmosfera emocional densa parece prevalecer sobre o aspecto referencial da imagem. Com a morte de sua mãe, a autora se coloca de maneira mais evidente diante da câmera, performa cavar a terra – como quem constrói a própria cova – e usa o autorretrato como estratégia para corporificar a ausência.

*****

Há um desafio comum a projetos fotográficos sobre família: a linha tênue entre uma narrativa que parte de um sujeito ou grupo e uma narrativa que se limita a este. Por ser excessivamente autocentrada, uma narrativa pode acabar por apenas afirmar privilégios raciais e de classe, mesmo que inconscientemente, quando pensamos sobre a quem se garantiu o direito à memória e conhecimento de seus ancestrais no Brasil.

Conscientemente ou não, o privado é sempre político. A potência de, a partir de si, do microcosmo da vida privada, se comunicar com as experiências de outres, coletivas, atravessa trabalhos icônicos como Kitchen Table Series (1990), da fotógrafa estadunidense Carrie Mae Weems, publicada em livro em 2016 – em que a partir de cenas cotidianas performadas em torno de uma mesa de jantar, reflete sobre papéis de gênero nos relacionamentos amorosos, entre tantas outras questões.

Neste sentido, me parecem especialmente interessantes nos fotolivros aqui comentados as reflexões sociais mais amplas que alcançam. Seja sobre a construção ou desconstrução da ideia de família e identidade, ou sobre os próprios mecanismos de produção da representação, da imagem e da memória. ///

Daniela Fonseca Moura é fotógrafa e pesquisadora baiana, mestre em Comunicação. É professora convidada da pós-graduação de fotografia do Centro Universitário Belas Artes (SP) e de cultura visual da Unicap (PE). Atua como curadora e mediadora do ciclo de conversas do Festival Imaginária.

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