Mulheres radicais: a militância artística latino-americana na exposição da Pinacoteca de SP
Publicado em: 13 de novembro de 2018Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, em cartaz na Pinacoteca de São Paulo, é a última itinerância dessa exposição já histórica, que passou por Los Angeles (Hammer Museum) e por Nova York (Brooklyn Museum). Resultado de uma pesquisa iniciada em 2009 pela historiadora da arte e curadora Cecilia Fajardo-Hill, em colaboração com a pesquisadora Andrea Giunta a partir de 2010, a mostra reúne cerca de 120 artistas latinas e chicanas (estadunidenses de origem latina) de 15 países. Na versão paulistana, que conta também com a participação de Valéria Piccoli, curadora-chefe da Pinacoteca, foram adicionados trabalhos de quatro artistas brasileiras, Maria do Carmo Secco, Nelly Gutmacher, Wilma Martins e Yolanda Freyre, somando 28 nomes nacionais.
O intuito da exposição é ampliar o conhecimento que se tem sobre artistas mulheres latino-americanas que, mesmo entre especialistas, é ainda bastante limitado. O contato do público com essas obras interrompe certo silêncio no que diz respeito à arte produzida por mulheres. No passado recente, as dificuldades de artistas mulheres em se manterem ativas (quando seu trabalho não despertava interesse de críticos, curadores ou mesmo de colegas, majoritariamente homens, seja porque não eram considerados de qualidade, seja porque eram julgados demasiadamente “femininos”), somadas às dificuldades já inerentes da trajetória artística, levaram muitas a interromperem suas carreiras ainda no início.
Um esforço internacional vem sendo feito nos últimos anos para ampliar a visibilidade de artistas mulheres, mas não se pode negar que ainda estamos longe de uma equidade entre homens e mulheres na arte, estatística que só piora quando falamos de artistas transgênero. Como exemplo, a contagem feita pelo grupo ativista Guerrilla Girls em 2017, por ocasião da exposição no Masp, apontou que apenas 6% do total de artistas com obras em exposição na sala do acervo permanente do museu eram mulheres. Essa realidade não é diferente na maioria das instituições de arte no mundo.
Ao se concentrar no período de 1960 a 1985, em que quase todos os países na América Latina viviam sob governos ditatoriais ou regimes políticos extremamente autoritários, Mulheres radicais coloca em perspectiva uma produção intensa de artistas, que criavam apesar de forte repressão no campo intelectual, político e afetivo. Como afirmam as curadoras em seu texto de apresentação: “a América Latina conserva uma forte história de militância feminista que — com exceção do México e alguns casos isolados em outros países nas décadas de 1970 e 1980 — não foi amplamente refletida nas artes”.
Assim, o tema do “corpo político” é a linha condutora da exposição. Ele se articula ao redor de nove subtemas em que a representação do corpo feminino e seu desdobramento simbólico passa pela relação com as narrativas históricas, a violência física, a maternidade, o erotismo e a natureza. Esse corpo se torna político simplesmente por se fazer presente, por representar o desejo feminino ou ainda por ser a prova de uma violência de gênero generalizada, ainda que silenciada. É, portanto, também um corpo transgressor, já que desautorizado nas sociedades patriarcais em que essas mulheres viviam (ou vivem).
A voz curatorial destaca o processo de trabalho das artistas e a amplitude de linguagens visuais da produção da época: há pinturas, esculturas, Super-8, vídeos e fotografias em diferentes técnicas, além de um acervo de documentos em todos os espaços da exposição. Aqui, fica clara uma das características da curadoria: a questão imbricada da “qualidade estética” não reside num perfeito acabamento formal nem numa escolha de materiais considerados “nobres”, mas diz respeito à mensagem, a solução eficaz de uma obra capaz de provocar e sensibilizar.
Por um lado, o conjunto de trabalhos na exposição reflete dois movimentos importantes da época: a utilização de mídias efêmeras, como a performance, numa tendência que acompanha o desenvolvimento da arte conceitual a partir da década de 1960, e a grande experimentação formal. Por outro lado, a multiplicidade dos recursos expositivos, como diferentes molduras e pedestais, acaba por manter certa particularidade de cada obra na exposição e a aproxima de um espaço doméstico, íntimo, humanizado.
Grande parte das obras são fotografias e vídeos, muitos deles registros de performances ou ações. O Super-8, é interessante notar, era um recurso novo na época e oferecia mobilidade e independência na realização do filme. Conseguir uma câmera poderia ser difícil, mas muitas obras podiam ser realizadas em tempo e espaço reduzido, se comparado ao cinema convencional. No Brasil, as primeiras câmeras chegaram no final da década de 1960 e foram amplamente utilizadas por mulheres, dentre elas Sonia Andrade, Leticia Parente, Anna Bella Geiger e Anna Maria Maiolino (as três últimas presentes na exposição com obras icônicas na arte brasileira recente). O vídeo foi fundamental para que se pudesse alcançar independência na produção e maior facilidade na circulação da obra e acabou por tornar as mulheres artistas pioneiras na utilização desse meio.
Gritaram-me negra! (1978), vídeo da peruana Victoria Santa Cruz, é um trabalho de destaque, pela primeira vez visto no Brasil. Nele, Santa Cruz recita um poema que relata o preconceito e a opressão sentidos durante seus anos de juventude. No decorrer de sua declamação, o grito “Negra!”, que começa como um insulto, vai se tornando um grito de autoafirmação. A questão identitária e de representatividade é abordada também na fotografia brasileira por Claudia Andujar e Anna Bella Geiger. Andujar, uma das fotógrafas mais interessantes em atuação no Brasil, apresenta na exposição sua série Marcados (1981-83), um conjunto de retratos de um grupo Yanomami na região do Catrimani, em Roraima. Originalmente tais fotografias foram feitas como registro dos indivíduos vacinados pelo serviço de imunização realizado por um projeto estatal de preservação da saúde indígena. As populações Yanomami, altamente ameaçadas por doenças causadas pelo contato com os brancos nas décadas de 1970 e 1980, a partir do avanço das grandes obras de infraestrutura implementadas pelo governo brasileiro em terras Amazônicas, têm aqui um de seus primeiros registros.
Do mesmo período, é a obra Brasil nativo, Brasil alienígena (1977-2004), de Anna Bella Geiger, que também se interessa pelo indígena brasileiro, mas aqui pela crítica ao estereótipo do nativo, presente no imaginário nacional. A artista justapõe, em um conjunto de nove duplas de cartões-postais, autorretratos a retratos de índios que posam realizando tarefas cotidianas de acordo com seus costumes. Em seus autorretratos, Geiger realiza as mesmas tarefas que os índios, como varrer o chão, atirar uma flecha, dançar, se coçar ou acariciar um objeto/animal de estimação. Nessa operação, ela desloca a ideia de “cultura original” para a evidência de uma cultura construída. O retrato construído do índio brasileiro é aqui desconstruído. A artista, nascida na Argentina e naturalizada brasileira, coloca a questão de quem é o nativo no Brasil.
O autorretrato aparece ainda em Tina América (1976), de Regina Vater, uma série de 12 fotografias três por quatro em que a artista se transveste em personagens femininas comuns, diversas delas inspiradas por passantes que ela observa no centro de São Paulo. Num recurso manifesto contra representações canônicas do sujeito feminino na história da arte, a mulher comum é o objeto da obra. Em outras produções, o autorretrato acontece no espaço doméstico. Tarefas como costurar, passar ou cozinhar revelam o trabalho invisível que é realizado no cotidiano feminino. Esse trabalho “feito em casa” traz a dupla conotação do fazer artístico invisibilizado, pois se limita ao espaço doméstico, e do trabalho doméstico que se torna visível na arte. O mesmo acontece em Marca registrada (1975), de Letícia Parente, vídeo onde ausência de cabeças nas cenas representadas torna os corpos genéricos e o enquadramento do alto só nos permite ver pés e mãos. As mãos costuram nos pés a frase “made in Brazil”, referência à dor experimentada pela mulher a partir da violência de gênero e à dor provocada pela tortura física praticada durante a ditadura no Brasil. Assim como nos vídeos Preparação I (1975) e Tarefa I (1982) de Parente, em que as tarefas diárias são formas de repressão da condição feminina. Em Homenagem a George Segal (1985), de Lenora de Barros, vemos a artista escovar os dentes, gesto que, ao se repetir indefinidamente, cobre seu rosto de pasta branca. O gesto banal se torna um gesto descontrolado, revelando o absurdo enlouquecedor latente no cotidiano.
A relação entre fotografia e performance, muito presente em Mulheres radicais, foi fundamental na arte daquele período. Muitas artistas criaram autorretratos íntimos em que seu corpo é descontruído em fragmentos de imagens. Em Poema (1979), de Lenora de Barros, e Biscoito-arte (1976), de Regina Silveira, destacam-se a relação do corpo com a palavra e com o texto. Nas duas obras, as artistas “comem” palavras numa relação erotizada com as letras. Já em Fotopoemação (1973-2017), de Anna Maria Maiolino, é a violência que se destaca. A artista segura uma tesoura na iminência de cortar a própria língua, o nariz e o olhos. Numa operação similar a dos vídeos de Parente, a violência contra o próprio corpo pode revelar o insuportável sofrimento de se automutilar para dar vazão à angústia. Em outro registro, Marcia X, em Celofane Motel Suíte/Não roupas (1985-86), corta com uma tesoura um saco plástico que faz as vezes de vestimenta. Nas fotos que registram a performance, algumas partes do corpo são coloridas de vermelho, sugerindo a violência dos gestos de despir e cortar. Já as fotografias de grandes dimensões de Paisagens epidérmicas (1977-82), de Vera Chaves Barcellos, são retratos superaproximados do corpo da artista, em que percebemos formas e texturas.
Referências diretas à violência de estado, ao corpo social, são flagrantes nas obras de Ana Vitória Mussi (séries Trajetória do osso, 1968, e Jornais) em que a artista usa recortes de jornais, problematizando a informação que vem da imprensa e criando discursos alternativos a ela. Em diálogo com essas obras, A corda (1967), de Neide Sá, uma das fundadoras do movimento poema-processo, é o resultado de uma ação participativa em que se selecionavam imagens e palavras de jornais e revistas para depois associá-las de forma a criar um novo “texto”. Trabalhando com princípios da semiótica, a obra levanta questões de estereótipos e de classificação social não só de mulheres, mas de diferentes minorias. A circulação de imagens na imprensa comum ganha aqui, pela sua recombinação a partir da montagem, uma outra significação e força crítica. Em um dos conjuntos, há um recorte com uma foto de Pelé com uma expressão preocupada ao lado de frases sobre a reforma agrária, em outro, há a imagem de uma passeata de mulheres e as palavras aborto, brasileiras. Essas operações de deslocamento e associação entre imagem e palavra são recursos comuns na produção da época, que refletia sobre a arte a partir de estratégias de comunicação de massa. Em A corda, a apresentação das imagens e palavras penduradas na corda do varal, como num espaço doméstico, produz um efeito de cruzamento entre espaços mentais: assuntos públicos tratados no âmbito do privado. A política é feita tanto na esfera pública quanto na esfera íntima.
Além da pesquisa curatorial de fôlego, a exposição Mulheres radicais tem o mérito de revelar ao grande público muitas artistas e obras importantes pouco ou nada conhecidas, contribuindo para a escrita da história da arte latino-americana. A pesquisa e a produção textual reunidas no volume editado pelas curadoras, trazem um avanço na literatura sobre a arte produzida nos anos ditatoriais dessa região e lança luz a espaços vazios, como a relação das mulheres artistas com a violência de Estado.
O corpo é o último recurso, quando já não existe diálogo possível, e a exposição cria um espaço de dissonância na homogeneidade identitária do mundo da arte. Apesar da posição das curadoras ser abertamente feminista e, portanto, ativista, nos termos de Maura Reilly (Ativismo curatorial, 2018), elas tiveram o cuidado de não reduzir as obras ao tema curatorial. A existência da sala Feminismos deixa claro que a palavra não é um consenso entre todas as participantes. No entanto, podemos traçar uma linha histórica de exposições sobre o assunto, nas quais o objetivo de renovação a partir de uma perspectiva feminista também se colocava, começando por Global Feminisms, Elles e Women Artists: 1550–1950. A própria Pinacoteca realizou nos últimos anos algumas mostras que trabalham esse resgate da presença de mulheres no mundo da arte, como a Mulheres artistas: as pioneiras (2015) e, mais recentemente, a individual da artista sueca precursora do abstracionismo, Hilma af Klint (2018). O que resta agora é saber se todos esses gritos de alerta lograrão ecoar nos ouvidos da sociedade brasileira, posta em teste neste momento.///
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Leia matéria publicada na ZUM #14 sobre a artista Anna Bella Geiger
Camila Bechelany é curadora, editora e crítica. Foi curadora assistente no MASP onde co-curou em 2017 a exposição Histórias da Sexualidade e Guerrilla Girls: obra gráfica, entre outras. Mestre em Arte e Política pela New York University, é doutoranda em Teoria e História da Arte na EHESS de Paris.
Tags: exposição, Feminismo, Pinacoteca