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Menina Celeste

Djaimilia Pereira de Almeida & Rosalind Fox Solomon Publicado em: 15 de fevereiro de 2019

A partir de uma imagem da fotógrafa norte-americana Rosalind Fox Solomon (1930), a escritora angolana Djaimilia Pereira de Almeida (1982) escreveu um conto inédito para a ZUM. A foto Chattanooga, Tennessee, 1976 faz parte do livro Teatro Liberdade (Liberty Theather, 2018), mais recente publicação de Rosalind e que retrata questões raciais, sociais e segregacionistas na região sul dos Estados Unidos nas últimas décadas do século 20.

 

Chattanooga, Tennessee, 1976, fotografia de Rosalind Fox Solomon do livro Liberty Theater, MACK Publishers, 2018 © Rosalind Solomon, www.rosalindsolomon.com

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Saudades do meu Moisés, meu amor, belos tempos. Disse que vinha dia seguinte, esperei, esperei, esperei, nada, nunca mais. É para não ser sabichona e não ter a mania que sou uma boneca igual a essa, boneca do diabo. Moças andam aí que são vaidosas, são isto, são aquilo, querem jóias, querem licores, muito espertas e sabidas, e depois é assim, ele diz que vem, uma pessoa espera, espera, espera, e nada dele. Puf. Desaparece.          

Meu querido, quanta saudade. 

O que vai ser de mim? Mas eu fui forte, uma mulher tem de ter força nessa vida. Deus não esquece os seus servos. Ele pode até nem voltar, mas eu fico mesmo aqui sentada nessa cadeira, como se ele fosse aparecer, mesmo quando saio de casa e vou à minha vida, tenho de fazer por mim, não tenho ninguém.           

Essa cadeira é que tem sido a minha grande amiga.

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Ao longe, subo a uma cadeira para te ligar, há trinta anos. A camilha está à altura dos balcões das pastelarias, aos quais também não chego. Cá de baixo, vejo os cumes de chantilly, o pão-de-ló embebido em calda de açúcar no topo dos babás. Estico o braço, mas não consigo ver o que peço. O tempo passa. Num instante, já chego ao balcão, se me puser nas pontas dos pés. Pouso os cotovelos, para me fazer notada, e levo uma reprimenda. Tanto tempo para chegar lá acima e, agora, que queria hastear a minha bandeira, levo uma palmada no braço.

Menina Celeste não tem esse problema, nunca teve. Enquanto foi jovem, sonhou com a pastelaria industrial da metrópole. Um pastel de nata era o seu primeiro desejo, ao aterrar em Lisboa. Depois, nunca mais aterrou, e a cidade mudou. Agora já só sonha com os primeiros bolos que comeu, mas não confessa a ninguém esses sonhos. Para onde vai aquilo que a gente sonha e não conta a ninguém? Não há cofre maior do que uma mulher. Só ela o fecha e sonha que alguém o abra, mesmo quando ninguém vem.

As coisas que não conta, todo o seu universo de fantasias. A vontade de brincar às bonecas no quarto e de partilhar uma daquelas mesas do restaurante francês, onde os casais brancos, aposentados, jantam linguado à la meunière, às quatro da tarde. A vontade de fumar um cigarro de erva num banho de espuma. Para onde vão os sonhos de menina Celeste quando ela os sonha, esquecida de que alguma vez foi mãe, no interregno da responsabilidade e do medo?

Que fará dos seus sonhos, se ninguém os quer desvendar? Só sabe bem ser um cofre pela promessa do arrombamento. Que interessa esconder, quando não há curiosidade? Não há maior solidão do que fechar-se a sete chaves e não haver quem queira saber disso.

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Quando me bate a saudade, abro essa caixa e espalho tudo em cima da cama. Fico mesmo só assim, a olhar para tudo, a pensar na minha vida. Tem lá muitas coisas tuas, fotografias, os teus dentes de leite, um anel que o meu pai me deu. E, depois, muitos outros bocadinhos de lembranças. Fico a pensar que tu um dia vais abrir a caixa e vais ficar a pensar, ah, afinal a minha mãe foi essa mulher. Também tem lá coisas do tempo da minha falecida mãe, recordações do meu pai. Fico até meio sem jeito, não és só tu que és envergonhada. Sais a mim. Tens de perdoar a tua mãe por ela não te ter conseguido mostrar a caixa quando ainda estava aqui. Mas não consigo. Prefiro assim. Fica mesmo para tu abrires um dia e conheceres os segredos da nossa terra, da nossa vida.

Os nossos vizinhos brancos naquele tempo só comiam bolo inglês. Bolo inglês e limonada de café. De modo que a tua mãe, assim pequenina como eu era, não pensava em mais nada a não ser em comer bolo inglês com limonada. Brincava sozinha o dia inteiro com as minhas bonecas, bolo inglês para aqui, limonada para ali, golinho para aqui, golinho para ali. A Minina, que era um bebé chorão, era quem distribuía o bolo pelas outras: “Vai um bolinho inglês, menina Sambinha?”. “Muito obrigada, menina”, dizia a Sambinha, a boneca de pano. Uma fatia para a Cláudia, uma boneca ruiva que eu tinha. Um fatia para a Germana, uma boneca trapeira que tinha sido da minha mãe. Não havia bolo, eram só bocadinhos de pão, e eu sentava-as em círculo e elas comiam, todas muito bem comportadas, o seu belo chá das cinco como faziam as senhoras finas lá do bairro.

A brincadeira acabava sempre da mesma maneira. As bonecas iam todas parar ao hospital com diarreia de tanto comerem e ficavam hospitalizadas na minha cama, com cólera, aí eu já fazia de enfermeira das bonecas.

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 Nos seus rompantes de energia, toma resoluções, como a de passar um domingo inteiro fechada no quarto a escolher o vestido que há-de levar. Vai-me dizendo ao telefone, se lhe ligo a meio da tarde, que escolheu passar o dia a dormir. Veste vestido, despe vestido, como fazia comigo. Espera o seu par, que outra coisa não faz quem espera por Ele. Põe-se à janela, aperaltada, ele deve estar quase a chegar. Leva duas horas de nervos, a experimentar perfume nos pulsos, põe a peruca dos dias felizes, e o batom rosa de esperança. Menina Celeste, unhas pintadas, pérolas ao pescoço, franja falsa (mas ninguém nota). Conta os minutos. Deita-se de barriga para cima, para não se sujar com rímel. Anoitece, um cão uiva na rua, toca o telefone, “é engano”.

Ninguém veio buscar Menina Celeste para jantar, e ela adormeceu. Quando acorda, é meia-noite, tem fome, a cara borrada, a boca seca. Nem galã nem homem da luz: ele não veio. E, então, desce as escadas e faz pipocas no micro-ondas, porque não jantou. Come-as no sofá a beber uma gasosa com duas palhinhas, enquanto no écrã, um pastor anuncia uma excursão à Terra Santa.

Não há caixa mais bem fechada do que esta menina, de setenta anos.

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Só essa cadeira mesmo, fizemos amizade logo na loja. Ela disse-me, “sentate, descansa, mulher de trabalho. Leva-me contigo.” Aguenta comigo, todo o santo dia. Só falo com ela. Não, com a boneca não, Deus me livre de falar, sei muito bem tudo aquilo que ela pensa de mim. Mas com a minha cadeira falo, cantamos juntas, eu canto e bato nos braços da cadeira e ela acompanha-me do jeito que sabe, “Descei, Moisés, Descei, Moisés”, é assim que a tua mãe passa as tardes, a sonhar acordada, tanto calor, não consigo dormir.

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Não sei onde vives, sempre tanto calor aí. Ainda és minha mãe se te confessar que tenho vergonha de te perguntar onde estás? Que não to pergunto, com medo de que não seja esperado que pergunte.

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Durou tantos anos o nosso namoro, não sei se é pecado, se calhar estou a pagar caro esses meus desejos. O meu Moisés. Cabelo liso, barba branca, ai se o meu pai soubesse, minha filha com um mais-velho desses, livrei-me de uma belas surras de cinto. Mas ninguém podia ver o meu querido, nunca ninguém o viu, ele aparece só para mim, e ninguém nos ouve, aquela voz suave, a túnica a roçar na porta, aquele jeito dele de sacudir o cabelo comprido com as pontas das unhas, não te confundas, minha filha, o meu Moisés é muito homem.

Unhas cor de rosa, não escuras como as minhas, mãos de seda no meu cabelo, no cabelo dele, na minha nuca, e eu toda pequenina, toda derretida a rodar no meio do quarto para ele me ver, a girar até ficar tonta com vontade de morrer a rir, há lá coisa melhor, minha querida, toda a mulher sabe que nada é tão bom como morrer a rir com o homem que nos ensina a dançar.

Não era pecado, não, era só dançar, girar, girar à volta da cama com ele atrás de mim a ver se me apanhava, eu debaixo da cama, escondidinha a rir baixinho, tanto prazer, eu pequenina a morder a língua, minha filha, saudades que a tua mãe tinha de te contar as minhas traquinices, estás tão crescida, agora és uma mulher, tens de ter cuidado, muito respeitinho, que uma mulher é uma jóia e o nosso corpo é o nosso templo.

Aqui onde estou falo mesmo só com essas fotografias velhas e com esta boneca, mas ela não me responde como as bonecas que eu tinha quando era da tua idade. Não me entende, né, boneca má?, quem é essa velha senhora preta a falar de namorar com profetas? Mas não é pecado, não, minha querida, ele entrava no quarto e eu tremia toda dos pés à cabeça, até à raiz dos cabelos, como uma vara verde, toda arrepiada só de o ver entrar.

Passo pausado, um pé atrás do outro, que elegância senhor conde, que altivez, porte de príncipe. O nariz afilado, não é como o meu, todo batata, nariz fino como a ponta de uma varinha de condão, e olhava para mim como se me despisse, via-me por dentro, sabes bem como é, despia-me com os olhos até eu não saber mais o que dizer, mesmo que eu não me deixasse ficar.

Ai não deixava, não senhora, muito atrevida, ai se eu não era; e até bonitinha, apesar de ser tão escura, bonita como uma pérola negra, dizia-me ele com os olhos, mexia os lábios, mas não se ouvia nada, minha pérola, logo a mim, tão pequenina, a olhar para ele por entre a luz, com medo de cegar, tanta, tanta, luz, minha filha, choro só de pensar nisso. Tudo se ia embora, todos os problemas, todas as consumições, todos os medos, todos os maus-olhados, subia-me um picante ao nariz e virava toda princesa para ele me ver, de perna cruzada, muito quieta na beira da cama como uma dama antiga. Meu Moisés, para onde foste? Fazes-me tanta falta, meu querido. Aparece! Aparece, raios! Engomei-lhe camisas, cosi-lhe um casaco, cheguei a fazer uma muamba de cabidela para o dia em que ele viesse, tanta noite à espera dele para jantar, meu querido amado, Menina Celeste, anda outra vez de esperanças? Cumprimentos ao senhor seu marido, menina Celeste, fazes pouco de mim, não é?, sei que olhas para mim pelos olhos dessa boneca, eu aqui com esses mortos todos na cómoda, todos a rirem de mim, aquela foi no dia em que me baptizaram, bebé do demónio não tira os olhos de mim, ele e essa fatiota satânica, cara escura, vestido branco, a mim não me engana, não engana, não. O diabo que te carregue! E tu, minha querida, como estás? Não ligues à tua mãe. A tua mãe está velha, minha querida filha, olhos tão tristonhos, porquê? Está tudo bem? Tens de me contar, se não já sabes que a tua mãe se esquece./// 

 

Djaimilia Pereira de Almeida (1982) nasceu em Angola. Vive em Lisboa. É autora de Esse cabelo (2015), Ajudar a cair (2017) e, mais recentemente, Luanda, Lisboa, Paraíso (2018). Escreve no Blog da Companhia das Letras.

 

 

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