Mauro Restiffe: da parede ao livro, as visões opacas de um andarilho inquieto
Publicado em: 14 de junho de 2017Tempo e espaço parecem ter guiado o projeto de elaboração de Mauro Restiffe, primeiro livro do fotógrafo paulista. Acostumado a expor suas séries em mostras individuais e coletivas em importantes museus, galerias e instituições ao redor do mundo, Restiffe aguardou cerca de 25 anos até se achar pronto para pensar e lançar um livro que englobasse (e ao mesmo tempo ampliasse) sua carreira. Já a questão do espaço é marcante como estratégia de narrativa visual escolhida pelo artista para definir a seleção e o sequenciamento das (muitas) imagens presentes no trabalho. Construções, formas, vazios, interiores, paisagens e superfícies dialogam em diversas dicotomias entre o espaço público e o privado, o lugar do coletivo e o do íntimo.
Nos cerca de quatro anos de elaboração do livro, Restiffe digitalizou seu acervo de filmes para ver, em versão ampliada, cada possível imagem para o projeto. A partir do seu extenso arquivo pessoal, reescreveu sua história, usando cada fotografia de maneira independente, para criar uma narrativa única, livre das séries que caracterizavam seu trabalho até então. Essa incursão em seu acervo marcou o início de um novo procedimento para este fotógrafo, que se sente confortável em romper as invisíveis, mas espessas, barreiras entre os “ambientes” da fotografia e das artes visuais. O resultado desta opção corajosa de revisitar seu arquivo foi a inclusão de fotografias de caráter pessoal e íntimo, junto a imagens que já haviam sido expostas e trabalhadas em outros contextos diversas vezes.
Em Mauro Restiffe, lançado pela editora Cobogó no final de 2016, além da presença de retratos íntimos, vemos também alterações de formato, com fotografias quadradas, além das 2×3 típicas do formato 35mm, até então exclusivo no trabalho de Restiffe. Mas a cor, que já aparece em projetos recentes, ainda não se mostra. No livro, as imagens surgem quase sempre sozinhas, com margens brancas, cada uma com seu tamanho específico, seja em página dupla, ou pequena, com grande espaço ao redor, o que obedece à minúcia do autor em escolher as dimensões exatas de cada imagem que amplia para suas exposições.
Essa fidelidade ao processo analógico, a câmera na mão e carregada sempre com o mesmo tipo de filme e luz disponível são sua marca registrada e dão forma à sua interpretação do mundo contemporâneo. Mundo este que aparece granulado por conta do filme hipersensível e nos remete a uma atmosfera atemporal em cada uma das fotografias que apresenta, seja de pessoas en passant, detalhes da arquitetura dos lugares que visita, obras de arte, sua família e amigos, ou eventos históricos, em que apenas podemos identificar a época por termos participado deles de alguma forma. Os indeléveis e marcantes grãos pretos levam nosso pensamento a um tempo distante, ainda que saibamos da época em que essas fotos foram feitas. Um anacronismo consciente de quem se mostra mais interessado em criar um mundo próprio do que em apenas documentar um mundo impossível, como o que vivemos. Um mundo criado para qualquer época, para ser visto hoje, para daqui a 20 anos ou para fugir de uma lógica temporal linear.
A liberdade narrativa foi escolhida para dar conta de um grande número de imagens, tão diferentes entre si. Em alguns momentos, a sequência de fotografias envereda por grafismos, em outros na direção de um exercício de criação de sentido ficcional entre os personagens (que aparecem sem qualquer identificação) e a arquitetura desoladora de grandes cidades. Mas nada é estático. Os agrupamentos sempre sugerem algo por vir. E mesmo os espaços vazios e silenciosos parecem estar à espera de algum movimento prestes a acontecer, ou recuperando-se de algum acontecimento recente. Lembram cenas de um crime, como comentou Walter Benjamin sobre as fotografias de Paris de Eugène Atget, do século 19.
De forma recorrente, surgem experiências narrativas típicas de um fotolivro: de dentro de uma cena de guerra em uma pintura fotografada em close up passa-se para uma manifestação de rua; de Istambul para a favela da Maré; do interior de um prédio em obras para a transparência das cortinas iluminadas em uma grande sala de aula. Na dicotomia opacidade/ transparência, muito utilizada na edição das imagens, assim como a contraposição entre superfície e profundidade, que se alternam marcadamente, Restiffe testa a incapacidade da fotografia de mostrar além de sua superfície, ao deixar sua atenção registrar inúmeras cenas de reflexos, transparências e sombras em janelas, vidros e telas.
A representação é outra questão recorrente na sua obra, e se apresenta no livro por meio de outra dicotomia: o registro de uma representação anterior, como uma pintura ou uma edificação, dialogando com o registro “atual” do fotógrafo. Ambas são misturadas incessantemente em vários momentos, como se essa relação precisasse ser colocada à prova de tempos em tempos. Ou como se, ao apropriar-se de uma imagem a partir da fotografia, o artista pudesse viajar ainda mais fundo (e obsessivamente) no espaço-tempo. Essa ousada estratégia de edição faz com que o livro apresente uma nova chave de entendimento para seus deslocamentos e sua forma de empacotar o mundo em uma rede grossa, opaca, que nos deixa ver apenas parte dele, nas imagens que faz a partir de suas divagações sobre aspectos de um mundo globalizado.
O protagonismo das imagens em Mauro Restiffe é reforçado pela decisão de não publicar um texto sequer, seja prefácio, apresentação crítica ou conclusão. Existe apenas um encarte que apresenta os títulos de cada uma das fotos do livro. A capa é composta por uma foto vertical sangrada, não há número nas páginas e o título/ nome do autor aparecem apenas na lombada. Essas características, muito mais que detalhes, levam o livro diretamente ao campo da arte, de uma autoria editorial preocupada em marcar sua linguagem em cada elemento do objeto criado, o que nos revela como o autor trabalhou na criação de seu registro mais perene até o momento.
Um registro que parece mais preocupado com o novo desafio, fora das paredes e das molduras, do que com a documentação da trajetória de um artista inquieto. Restiffe cria, com sua monografia, um trabalho que nos mostra uma nova forma de ver sua fotografia, os lugares por onde passou, sua família e inquietações. Mostra-nos, em alguns momentos, algo que pode ser imaginado como o extraquadro de suas conhecidas séries. Em comum com as tradicionais monografias de grandes fotógrafos, este livro tem a grande quantidade de imagens – 152 fotografias –, que podem exigir mais que um período de leitura para serem vistas e desfrutadas em sua totalidade.///
Mauro Restiffe (1970) participou da 27a Bienal de São Paulo, do PhotoEspaña 2009 e do Besphoto 2011, entre outros. Em 2017, é tema de mostra individual na Estação Pinacoteca a partir de agosto.
Pedro David (1977) é fotógrafo e artista visual. Publicou os livros Paisagem Submersa (2008), O Jardim (2012), Rota Raiz (2013) e Fase Catarse (2014). Recebeu os prêmios Conrado Wessel de Arte (2013), Itamaraty de Arte Contemporânea (2012 e 2013) e Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia (2012), entre outros.
Mauro Restiffe
Editora Cobogó, 2016.
272 pp., 23,8 × 32,6 cm
Tags: fotografia, fotolivro, Mauro Restiffe, resenha de livro