Última semana da exposição de Mauro Restiffe – leia comentário de Ana Luiza Nobre
Publicado em: 23 de setembro de 2014Fora de Controle
Ana Luiza Nobre
A princípio não há muito ali. Pouco mais de uma dezena de imagens em preto e branco de uma cidade desbotada e cinzenta, onde não me localizo. É preciso vencer o desconcerto inicial para que essas imagens comecem a mostrar a força que têm.
“O que aconteceu com o urbanismo?” A provocação de Rem Koolhaas logo vem à mente quando me vejo vagando no terrain vague que há anos é objeto de disputa entre as empresas de Silvio Santos e o Teatro Oficina. Ou no “vão livre” do MASP, ocupado por vultos sem identidade e ameaçado por gradeamento. A pergunta inicial dispara então em cascata muitas outras: O que aconteceu com São Paulo? O que está acontecendo com São Paulo? O que está acontecendo com a cidade?
O fato da exposição ter sido montada no Rio – e ao que tudo indica, só no Rio – faz pensar também no processo de transformação em curso nesta cidade em que metade da população vive sem tratamento de esgoto, e ao mesmo tempo experimenta um avassalador processo de transformações urbanas e sociais marcado pela implosão da Perimetral, por um lado, e pela construção de megaempreendimentos imobiliários, como a “Ilha Pura”, por outro (mais um condomínio fechado e exclusivo lançado semana passada na Barra da Tijuca, num terreno equivalente em dimensão ao bairro do Leme, que será a Vila dos Atletas em 2016).
Que imagem é capaz de resumir processos de transformação como esse? Até que ponto estamos equipados – mentalmente, oticamente, tecnicamente – para abordar processos complexos e dinâmicos de transformação urbana? De que instrumentos e dispositivos dispomos para registrar a construção e destruição simultânea da cidade, nas infinitas articulações e acumulações que se produzem continuamente, de maneira tão vertiginosa quanto inapreensível? Como mapear situações críticas e territórios instáveis, de alta voltagem urbana e social, que emergem de processos de modernização distorcidos pela retórica do city marketing e do planejamento estratégico?
E como desacreditar da promessa de revitalização implícita nessa retórica, por mais que ela conduza à destruição de áreas que guardam uma vitalidade intensa, ainda que marginal? E como explicar o refreamento do urbanismo diante de um processo de urbanização cada vez mais acelerado e voraz?
Sem ser documental nem descritiva, a fotografia de Mauro Restiffe segue abrindo uma série de questões. Não há como deduzir nada daqui. Seu grau de imprecisão – nada parece muito em foco – constrói uma imagem difusa de cidade, que não é icônica, não dá destaque a nenhum sujeito ou acontecimento. Mas também não procura construir uma imagem do caos.
A chave desse “desacontecimento” pode estar em Guimarães Rosa, lido por Noemi Jaffe: “quando nada está acontecendo” é que a fotografia de Mauro Restiffe se revela, sem drama nem espetáculo. Numa exposição que recusa qualquer nostalgia – apesar da insistência numa técnica em vias de extinção (câmera analógica, filme preto e branco). E onde até a arquitetura de Niemeyer é consumida lentamente pela fumaça, sinal do colapso latente por toda a parte.
Há um alto grau de contaminação aqui que se contrapõe à imagem de cidade à venda nas páginas do jornal. Ilha Pura? Não, obrigada. Cidade é isso: um complexo sem escala nem tempo nem forma, um aglomerado de matéria, coisas, carros, trens, edifícios, pessoas, cachorros, viadutos. Fora de alcance, fora de controle. Mas por isso mesmo tão fascinante.
Ao mesmo tempo, as fotos expõem a fria indiferença em relação a todos esses sujeitos e objetos e eventos em que vamos esbarrando nas ruas de uma cidade que parece conter todos os perigos e afetos e promessas e conflitos da vida urbana, e já não se importa muito com nenhum deles, como se tivesse conquistado um supremo grau de imunidade a tudo.
Talvez tenhamos chegado a esse grau de imunidade depois de abandonar todo ideal de cidade, todas as utopias, todas as ambições. Mas então que ideia de cidade nos resta hoje? Fora de alcance, fora de controle, “ o urbano está prestes a se tornar o vetor máximo da imaginação”, diz Koolhaas.
Deste ponto de vista, as fotografias de Mauro Restiffe não só interrogam o conceito de cidade no limite da sua (im)possibilidade. Elas falam da persistência assombrosa da própria cidade, como desafio permanente à nossa imaginação, nossa inteligência, nosso regime de visualidade. ///
Ana Luiza Nobre é coordenadora de pesquisa e educação do IMS, arquiteta, historiadora, crítica de arquitetura e professora do departamento de artes e design da PUC-Rio.
Exposição de fotografias de Mauro Restiffe, curadoria de Thyago Nogueira.
Até 28 de setembro de 2014 no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro.
Rua Marquês de São Vicente, 476 – Gávea, Rio de Janeiro – RJ.
Veja o ensaio Nova Luz, de Mauro Restiffe, publicado na revista ZUM # 2.
O livro com 50 imagens lançado com a exposição pode ser comprado na loja do IMS.
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