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Marcelo Zocchio e a imagem materializada: resenha da exposição na Pinacoteca

Maria Hirszman Publicado em: 20 de maio de 2016

Em um mundo dominado por imagens, no qual a virtualidade digital assume uma preponderância cada vez maior, é natural que nos sintamos sem chão, espremidos entre a confortável ilusão dos pixels e a necessidade de destrinchar esse universo em busca de uma reconexão com a realidade. Essa fronteira tênue entre diferentes formas de sentir e representar as coisas concretas é o campo de ação preferencial de Marcelo Zocchio, cuja produção das últimas décadas pode ser vista até 6 de junho na Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Artista, fotógrafo e marceneiro, Zocchio vem há tempos enfatizando esse choque criativo entre o virtual e material. Afeito às séries, ele lança mão de diferentes recursos compositivos, pesquisas conceituais e estratégias formais para investigar temas como a potência tridimensional da imagem e sua relação com o entorno, a cultura do desperdício e do excesso e o potencial afetivo e transformador da representação. Acertadamente, a exposição optou por mesclar diferentes famílias de trabalho desenvolvidas por ele, sobretudo a partir dos anos 2000, possibilitando assim uma visão mais ampla e coesa dos caminhos percorridos.

Sem prender-se a compartimentações cronológicas ou temáticas, a montagem cuidadosa conseguiu criar uma rara sintonia entre as três salas expositivas e evidenciar, nas palavras do curador Tadeu Chiarelli, “o emprego praticamente simultâneo de vários procedimentos, numa espécie de ‘presente absoluto’ em que o artista se move com o intuito de indagar sobre a natureza da imagem fotográfica, suas forças e limites”.

"Quadro", 2011, da série "Utilidades domésticas"

“Quadro”, 2011, da série “Utilidades domésticas”

Quadro, trabalho de 2011 que abre a exposição, já revela – inclusive no título propositalmente ambíguo e sugestivo – o fio da navalha em que Zocchio parece se equilibrar. A obra traz um quadro dentro de um quadro, que por sua vez contém um armário fechado. Numa sobreposição de enquadramentos ligeiramente desarmônicos, que valorizam a ação de recorte e reiteram o caráter por vezes tautológico do discurso fotográfico, Zocchio destaca a existência física, matérica de alguns elementos da representação como as molduras e o próprio móvel, dando à obra um caráter ambíguo, quase escultórico. A série a que pertence Quadro – e outros trabalhos impactantes, como Corrimão – recebe o título singelo de Utilidades domésticas, reforçando o caráter banal e íntimo dos elementos sublinhados.

“Corrimão”, 2008, da série “Utilidades domésticas”

Não por acaso Zocchio dedica parte de seu tempo a trabalhar com a madeira. Possui uma marcenaria, onde cria mobiliário a partir de material reciclado, como aqueles que podem ser vistos no espaço expositivo. Não se trata apenas de uma atividade complementar ou de um contraponto à técnica fotográfica refinada ao longo das últimas décadas. Essas experiências são importantes para a constituição dessas vias de mão dupla, entre o concreto e o representacional, entre o plano e o espaço, que alimentam seu processo criativo. Não importa se o resultado se encaminha para a abstração, como em Equação (2015), uma colagem ritmada de pequenos tocos de madeira e uma foto de empilhamentos de madeira; se promove um exercício irônico de desconstrução da perspectiva (Desenho, 2016); ou se propõe a supressão de fronteiras materiais, formais e estéticas, como nos trabalhos da série Segunda mão, nos quais o artista cria curiosas composições entre uma fotografia de telhado e a escada necessária para alcançá-lo ou entre as ripas de madeira de uma persiana antiga, transformando-as num banco, em processo constante de reapropriação e releitura.

"Equação", 2015

“Equação”, 2015

"Desenho", 2016

“Desenho”, 2016

Se nos trabalhos reunidos sob o título de Segunda mão há um certo lirismo, na série Lançamentos essa permanente indagação sobre o descarte e a reciclagem adquire um viés mais crítico. Assustado com o grande acúmulo – pessoal e social – de lixo eletrônico, Zocchio recria como que fantasmagorias dessas máquinas, escavando suas formas em camadas de chapas de acrílico superpostas e representando-as por imagens propositalmente manipuladas para terem baixa qualidade, enfatizando a contradição entre sua inutilidade e a suposta valorização por que passam ao ser incorporadas ao mundo da arte. Em um vídeo que leva o mesmo título da série, vemos o próprio artista atarefado empacotando-as, numa ação interminável e desesperançada.

"Lançamento D173" e "Lançamento S5841A", série "Lançamentos", 2008

“Lançamento D173” e “Lançamento S5841A”, série “Lançamentos”, 2008

Continuar definindo Zocchio apenas com o termo fotógrafo talvez seja um tanto reducionista. Os procedimentos explorados por ele e tornados visíveis na atual mostra da Pinacoteca extrapolam largamente o campo da reprodutibilidade da imagem por meios digitais ou analógicos. Um trabalho como Réplica #5, de 2014, altamente tributário aos procedimentos da arte conceitual, parece sintetizar essa expansão de limites entre procedimentos e investigações, que caracteriza sua obra e marca fortemente sua geração – que inclui nomes como Rosângela Rennó, Rubens Mano e Rochelle Costi, entre outros, e foi amplamente estudada por Chiarelli em textos como “Fotografia contaminada”. Trata-se de uma escultura esquemática e um tanto tosca de um simples tronco de árvore, colocada ao lado de uma fotografia, em dimensão muito menor, de uma árvore real. O desenho do tronco é igual, mas seria a mesma árvore? É possível estabelecer uma identidade entre algo feito pela mão do homem e aquilo que já existe na natureza? Assim como em Céu, painel de fotos de diferentes instantes celestes com identificações fictícias porém afetivas – um dos trabalhos mais antigos da exposição –, entra em jogo esse provocador e indefinido desejo de recriar a natureza, junto ao reconhecimento tácito de sua impossibilidade.

"Réplica #5", 2014

“Réplica #5”, 2014

"Céu", 1998

“Céu”, 1998

As charadas podem ser diferentes, mas a intenção – ou melhor, a motivação –  é a mesma. A fotografia é, para Zocchio, um meio, potente, mas não um fim em si. Fotografar para ele está longe de ser uma mera linguagem: transformou-se ao longo do tempo em uma forma de colocar em discussão o estatuto da imagem na arte e na sociedade contemporâneas.///

 

Marcelo Zocchio e a imagem materializada
curadoria de Tadeu Chiarelli

Pinacoteca do Estado de São Paulo
Praça da Luz, 2
Até 6 de junho de 2016
Quarta-feira a segunda-feira, das 10h às 17h30

Hoje, 20/5, às 16h, será realizada uma mesa redonda com o artista e os críticos Felipe Chaimovich e Heloisa Espada, com mediação do curador Tadeu Chiarelli

 

Maria Hirszman é jornalista e crítica de arte. Atua na área de artes visuais desde 1996, em publicações como o Jornal da Tarde e O Estado de S. Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.

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