Radar

Luis Humberto: paixão iluminada

Rubens Fernandes Junior Publicado em: 12 de fevereiro de 2021

Brasília, de Luis Humberto, 1971. Do livro Luis Humberto – Do lado de fora da minha janela, do lado de dentro da minha porta. Cortesia da Editora Tempo d’Imagem.

12 de fevereiro de 2021. Uma notícia se espalhou como um rastilho de pólvora: o mais querido dos fotógrafos brasileiros acabara de partir para o fundo infinito. Metáforas à parte, Luis Humberto Miranda Martins Pereira, nascido no Rio de Janeiro em 1934, faleceu esta madrugada em Brasília. Um dos maiores nomes da fotografia brasileira da segunda metade do século 20, ele desenvolveu ainda intensa atividade como professor da Universidade de Brasília, da qual foi cofundador, editor, ensaísta, crítico e tutor de inúmeros jovens, estudantes e fotógrafos, que tiveram a oportunidade de conviver com sua incrível capacidade de pensar o presente com perspectiva histórica.

Luis Humberto foi um incansável batalhador pela organização e pelo reconhecimento profissional do fotógrafo brasileiro. Na década de 1970, foi um dos fundadores da União dos Fotógrafos de Brasília, uma iniciativa pioneira de organização da sociedade civil, ainda em plena ditadura. Nesse período, sob a rigorosa censura imposta pelos militares, construiu uma das mais importantes e consistentes documentações da política cotidiana de Brasília. Com fina ironia, insinuada nas entrelinhas, trouxe vida inteligente para o jornalismo fotográfico do período, sempre com irreverência e criatividade.

A censura, preocupada com os textos e seus conteúdos, era absolutamente analfabeta na leitura das imagens. E foi aproveitando as brechas possíveis que Humberto criou imagens, hoje emblemáticas, nas quais a informação era certeira e contundente. Nelas vemos e entendemos com clareza a liturgia do poder. Seu primeiro livro – Brasília: sonho do Império, capital da República (1980) – é, com certeza, o discurso visual mais lúcido e politizado dos anos de chumbo no país. A publicação mostra sua luta sem fim contra os absurdos da ditadura e traz a fotografia de volta ao universo da inteligência e do sensível.

Como defendeu inúmeras vezes, “a fotografia está sempre procurando descobrir o desconhecido, revisitar a vulgaridade, resgatar uma importância não percebida e doar aos outros o resultado de suas investigações. A fotografia não resulta em detritos, mas em extratos que se tornam, uma vez organizados de forma coerente, indicativos preciosos para o entendimento do permanente enigma que é a vida.”

Palácio do Planalto, de Luis Humberto, Brasília, 1979. Do livro Luis Humberto – Do lado de fora da minha janela, do lado de dentro da minha porta. Cortesia da Editora Tempo d’Imagem.

Arquiteto formado pela Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), passou a se dedicar integralmente à fotografia como profissão após uma rápida experiência com a arquitetura. Chegou a Brasília no início dos anos 1960 e trabalhou na equipe encarregada de projetar o campus da Universidade de Brasília (UnB), sob o comando de Darcy Ribeiro, que sonhava com um novo projeto para a educação superior no Brasil. Um sonho concretizado parcialmente, interrompido com violência e terror pela sanha fascista que tomou conta do país em 1964. E desmoronado definitivamente após a publicação do Ato Institucional n˚ 5, editado em 13 de dezembro de 1968.

De 1962 a 1965, foi professor assistente da UnB. Em 1964, instalou o Ateliê de Fotodocumentação do Instituto Central de Artes e, em 1965, foi um dos responsáveis pelo curso de técnica fotográfica. De 1968 a 1978, foi fotógrafo da Editora Abril, trabalhando principalmente para a revista Veja. Em 1969, foi diretor de arte e de fotografia da agência Promove, em Brasília. Também foi diretor de arte e editor de fotografia do Jornal de Brasília a partir de 1973. Entre 1978 e 1982, foi fotógrafo da revista IstoÉ. A partir de 1980, até 1985, assumiu a chefia de fotoimagem do Hospital de Doenças do Aparelho Locomotor do Hospital Sarah Kubitschek. Em 1985, também dirigiu a Fundação Cultural do Distrito Federal. Entre 1975 e 2000, escreveu pequenos ensaios de fotografia para as revistas Fotografia, Iris e Fotóptica, entre outras. E, de 1986 até 2003, manteve vínculo com a Universidade de Brasília.

Deputados Eurico de Resende e Ulysses Guimarães, Congresso, de Luis Humberto, Brasília, 1977. Do livro Luis Humberto – Do lado de fora da minha janela, do lado de dentro da minha porta. Cortesia da Editora Tempo d’Imagem.

Em 1972, publicou na revista Fotografia um manifesto em que, entre outras coisas, declarava: “A fotografia é, antes de tudo, uma deliberada organização da sensação, obtida pelo uso ordenado de uma linguagem essencialmente visual. É através dela que se transmite a maioria da informação visual veiculada no mundo inteiro, diariamente. Sendo uma forma de comunicação e que, portanto, se faz por meio de uma organização intencional de linguagem, pressupõe alguém responsável; a existência de um autor, que no caso é o fotógrafo. Sua responsabilidade é imensa, porque o resultado de seu trabalho não pode ser decorrente da observação fria e impessoal das coisas que o cercam e dos fatos que ocorrem à sua volta; e sim a consequência de uma atitude consciente, apaixonadamente participante e sobretudo honesta, em face desses mesmos fatos e coisas traduzidos em imagens.”

No início, sua experiência com a fotografia foi amadora, começando com o nascimento do primeiro filho, em 1962. Logo percebeu a potência da imagem e ampliou sua dedicação à técnica e à linguagem. Como professor da UnB e editor de fotografia da revista Veja e do Jornal de Brasília, formou algumas gerações – podemos lembrar de alguns entre muitos, como Jorge Bodanzky, Marcos Santilli e Salomon Cytrynowicz. Defendeu sempre a ideia de que a fotografia é um “processo de descoberta e invenção” que acontece a qualquer momento e em qualquer circunstância. Basta estar atento aos detalhes, às minúcias que podem ganhar protagonismo se percebidas e enquadradas de maneira diferenciada.

Tudo isso também é possível perceber em suas fotografias, geralmente composições precisas, afora um notável equilíbrio entre as formas e as linhas de força que singularizam sua sintaxe. Sua preferência pela lente grande-angular, que abre mais o campo de visão, lhe permitia flutuar levemente dentro de um espaço mais amplo, necessário para construir as relações metafóricas e metonímicas sobre o poder. Como afirmava, “meu processo de criação procura novos equilíbrios entre a surpresa e a beleza, dentro das quais vão existir tensão, ruptura e repouso; nascimento, morte e ressureição”.

Luis Humberto era um homem culto, refinado, perspicaz. E tudo isso fez dele o mais brilhante palestrante da fotografia brasileira. Certeiro em suas análises, bem-humorado, sabia como ninguém fisgar uma plateia com sagacidade e informação de qualidade. Jamais deixou de criticar os diferentes sistemas – político, econômico, religioso, educacional, entre outros – e conseguia traçar amplos panoramas sem esquecer de estabelecer as conexões com a fotografia. Dramas e tragédias, cultura e educação, ousadia e medo, empenho e seriedade, enfim, tudo cabia na sua fala, aparentemente caótica e sem destino, mas, com a mesma precisão do seu clique, um gesto sensível que reúne sua perplexidade diante do mundo visível.

Palácio da Alvorada, de Luis Humberto, Brasília, 1979. Do livro Luis Humberto – Do lado de fora da minha janela, do lado de dentro da minha porta. Cortesia da Editora Tempo d’Imagem.

Em 1991, Luis Humberto foi unanimidade para compor o grupo de fotógrafos da primeira edição da Coleção Pirelli-Masp de Fotografia. No início dos anos 1990, logo após o desmonte cultural do governo Collor, um grupo de fotógrafos, curadores e pesquisadores, no qual eu estava incluído, criou o NAFOTO – Núcleo dos Amigos da Fotografia. Luis Humberto era o nosso amigo e consultor de todas as horas. Sua experiência generosa e dedicada foi decisiva para muitas das edições do Mês Internacional da Fotografia da cidade de São Paulo.

Em 1997, decidimos que o tema do evento seria “Paixão”. Luis Humberto escreveu um texto curatorial chamado “Paixão, iluminada loucura”, que norteou todo o processo daquela edição. Transcrevo aqui apenas o primeiro parágrafo, para deixar clara sua posição diante da vida e da fotografia: “A paixão é necessária. Não se vive sem ela. Quando não existe, constrói-se, inventa-se, até torná-la real. Uma vez instalada, desaparecem os cuidados. Incorporada, move-nos até sua extinção. Às vezes, parece absurda. Um absurdo dentro de um absurdo maior que é o ser humano. Aparentada com a boa loucura, que nos salva do compromisso com a sanidade e do contato com o bom senso, leva-nos a percepções mais elevadas da vida. Se a vida é uma aventura, a paixão vai ampliá-la em formatos inimagináveis. Vivê-la exige coragem para transgressão e gosto pelo risco.”

Os temas de seus ensaios visuais sempre foram muito próximos do seu cotidiano. Três deles se destacam em toda sua trajetória: a cena política de Brasília, onde buscou se diferenciar pela originalidade do seu olhar atento e plenamente autoral; a intimidade da família, flagrando em seu ambiente de afeto a beleza dos movimentos improváveis e a intensidade da alegria infantil na esfera doméstica; e a cidade de Brasília, espaço monumental e gráfico criado pelos gênios da arquitetura brasileira Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Esses três temas estão presente no livro Luis Humberto – Do lado de fora da minha janela, do lado de dentro da minha porta , cujo título iconiza no verbal toda a exuberância visual nele contido. Janela e porta como espaços de liberdade e imaginação.

Dinâmica e inventiva, além de ser um esforço constante de expandir a imaginação do leitor, sua fotografia reafirma sua crença no poder de recriar a realidade. Com isso, ele conseguiu desmascarar o político e revelar situações que somente a câmera atenta tem a capacidade de registrar. As imagens do âmbito familiar, doméstico, têm a potência e o frescor de um olhar amoroso, dedicado e muitas vezes surpreendente. E as fotografias da cidade, sem pretensão de se aproximar dos trabalhos de outros fotógrafos, como Peter Scheier, Marcel Gautherot e Thomaz Farkas, produz um conjunto em que se destaca a relação entre o homem e a cidade, trazendo a escala dos amplos espaços como uma novidade que cria novas tensões e contradições.

Sua fotografia jornalística gera interrogações, acentuam as perplexidades e as certezas através de seu olhar crítico, que evidencia a obviedade das relações do poder institucionalizado. Uma fotografia feita sem concessões, que hoje, inegavelmente, é referência de qualidade e criatividade. Infelizmente, o destino lhe impôs uma barreira com a chegada do mal de Parkinson, que limita os movimentos e, no seu caso, o impediu de continuar com a fotografia. Mas a cabeça ficou mais acelerada e crítica.

Dialogar com Luis Humberto sempre foi uma aventura fascinante. Impetuoso e mordaz em seus comentários, cético em relação ao mundo da comunicação, nunca deixou de acreditar que a fotografia tem um poder transformador. Testemunha de seu tempo, a fotografia traz um traço documental que indicia suas eventuais referências. Ele sempre valorizou a importância do aprendizado permanente e da educação formal, mesmo num país tão desigual como o Brasil. A fotografia era entendida como um caminho para a investigação, um processo de expressão individual conectado à paixão de viver.

Se olharmos para o conjunto de sua obra, podemos perceber que ela sempre foi elaborada de modo muito cuidadoso e, ao mesmo tempo, instigante. Luis Humberto foi um fotógrafo, professor e editor extraordinário, não apenas pela densidade de suas posições políticas, por sua paixão desenfreada pela vida e pela liberdade de expressão, mas justamente por provocar em todos nós a fagulha do inconformismo e da rebelião. Soube atiçar nossas esperanças e despertar nossas indignações.

Foi um verdadeiro e incansável articulador de ideias e sempre fazia questão de frisar: “O homem é um ser controverso, incapaz de compreender a si mesmo e de ser feliz. Se destrói e se mata por suas diferenças e não se reconhece na beleza de sua humanidade. É, simultaneamente, produtor de crueldade e amor. Uma espécie de anjo e demônio.”

Sua marcante presença na fotografia brasileira está registrada – fotografias, aulas, textos, palestras, seminários, colóquios. Sua risada aberta e libertária, seu humor ácido e afiado, sua presença gigante e espaçosa, sua generosidade afetuosa para os amigos, tudo isso jamais será esquecido. Uma figura seminal na fotografia brasileira. Um pensador que nos estimulou a pensar a fotografia e o fazer fotográfico. Um professor que conseguiu transformar muitos dos seus alunos e, com isso, ampliar sua esfera de atuação. Tudo isso e muito mais é o legado de Luis Humberto, que nos ensinou que é fundamental acreditar na beleza original e transformadora do ser humano. Ficam seus ensinamentos, seus livros, suas fotografias e a certeza de que tivemos e continuaremos a ter um farol iluminando os caminhos da fotografia brasileira. ///

 

Rubens Fernandes Junior, pesquisador e curador de fotografia.

 

 

Tags: , ,