Radar

Luigi Ghirri por João Bandeira

João Bandeira Publicado em: 12 de março de 2014

Marina de Ravena, 1986, Luigi Ghirri

 

Não fosse a tirinha de mar bem atrás, para onde o muro em perspectiva aponta, o lugar seria ainda mais comum. É de lá, do fundo da cena, que a senhora já idosa vem caminhando sem pressa na minha direção, um braço estendido, outro dobrado, no qual pendura as coisas que carrega. Olha resignadamente para baixo e sua roupa, em contraste equilibrado entre escuro e claro, parece replicar os tons desse muro – que, mais para cá, forma uma cunha de paredes sólidas. Diante da qual está a menina, que também olha para a areia, mas de um jeito curioso, assim como quem descobre qualquer coisa no chão.  Dos pés à cabeça, o corpo cresce em zigue-zague, pontuado pela barra alegre da bermuda, depois seu azul como o da blusa da senhora, até o verde vivo da camisa, que, por sua vez, ecoa nos barracões mais atrás. Os braços, ainda recolhidos, estão prontos para o gesto de tocar a coisa que vê. Ao lado dela, a mulher jovem, destacada contra a face mais iluminada das paredes, está ali entre relaxada e pensativa, braços ao longo do corpo, segurando só a toalha, para o caso de. As listras vermelhas e alternadas da sua roupa – um pouco mais solta onde aponta o triângulo pequeno dos seios, justa e curta mais abaixo para dar a conformação dos quadris e a promessa de nudez – rebatem sutilmente as estrias das telhas e paredes dos barracões. Embora o corpo esteja de perfil em primeiro plano, não vejo o seu rosto. A cabeça volta-se na direção do mar e ela parece absorvida em olhar para lá, para o espaço que se abre ao possível, além do que é visto na fotografia. Está ali, mas nem tanto (gosto de pensar que talvez por isso sua sombra não se alinha com o corpo, diferentemente das outras duas). A menina, ao contrário, concentra a atenção numa espécie de máximo do seu aqui: no ponto exato onde – de acordo com o esquema das três dimensões do espaço – se encontram as linhas de base das paredes e a que desce pela quina. Em novo contraste, a trajetória do andar da mais velha deve fazer com que ela acabe saindo de campo. Não falta muito, portanto, para que desapareça da imagem. Incluindo olhares e braços, os próprios modos de presença das três figuras na cena parecem casar com as respectivas idades.

Esse lugar, que afinal é a foto, tem um tempo particular, dilatado, suspenso, mas não apenas no instante. Nele cabe a narrativa potencial de cada uma dessas mulheres, o estabelecimento de nexos entre elas, delas com os demais elementos da cena, e até mesmo com o que está de fora. Tempo que media tudo sem drama, sem muita determinação, deixando respirar o que, de outra forma, poderia ser excessivamente alegórico. A foto de Luigi Ghirri é, também por essa razão, diferente do habitual na ampla iconografia sobre o tema das três idades, entre o nascimento e a morte. Que, por exemplo, na tradição da pintura europeia, para não estender demais, abarca de Giorgione a Dalí – passando por Ticiano, Dossi, Van Dyck, Gauguin, Klimt e vários outros. Porém, não é a possível citação culta o que atrai Ghirri, ao menos não por si mesma. Com formação de agrimensor e ciente das muitas camadas de cultura inscritas na paisagem italiana, está interessado em ler sua própria época. Seu trabalho produz imagens que menos opõem do que fazem conviver, quando não coincidir, clássico e prosaico, casualidade e construção, “uma contínua viagem no grande e no pequeno”, como ele escreveu. Assim, sob certo ponto de vista, a senhora idosa apenas caminha, indo embora da praia, e inclina a cabeça para evitar o sol nos olhos; a menina brinca e pode estar inquieta com a luz forte refletida e o calor demasiado; e é ela, talvez sua filha ou irmã mais nova, que a jovem mulher está aguardando, enquanto a observa. Então é só isso o que acontece nesse início de tarde num fundo de praia qualquer da Marina de Ravena? Como em geral na fotografia de Luigi Ghirri: sim, é só isso. E tudo aquilo também.

João Bandeira é escritor e coordenador de artes visuais do Centro Universitário Maria Antonia – USP, em São Paulo.

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Para mais informações sobre a exposição Luigi Ghirri – pensar por imagens no IMS do Rio de Janeiro clique aqui.

© Herdeiros de Luigi Ghirri