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O crítico de arte Jorge Schwartz escreve sobre uma fotografia de Sergio Larrain

Jorge Schwartz & Sergio Larrain Publicado em: 3 de agosto de 2018

Ilha de Chiloé, de Sergio Larrain, Chile, 1957. © Sergio Larrain/Magnum Photos

O mínimo que se pode dizer do fotógrafo chileno Sergio Larrain (1931-2012) é que ele seguiu de modo infatigável seu instinto de artista e de ser humano que busca respostas.  O poeta e conterrâneo Pablo Neruda, seu amigo próximo, lhe deu o apelido de “fotógrafo vagabundo”, por enxergar nele uma espécie de flâneur da fotografia.

Em uma das fotos mais surpreendentes de Larrain, quatro crianças ocupam um terço da parte superior do fotograma, três delas de costas. Posso me aventurar a dizer que se trata de uma das imagens clássicas do fotógrafo chileno.

A foto foi tirada em 1957 na ilha de Chiloé, no sul do Chile. Muito intrigante, mais pelo que oculta do que pelo que revela, é uma imagem que faz com que o leitor seja levado a pensar num sentido a ser completado. Um leitor cúmplice (conforme o batizara o escritor argentino Julio Cortázar em O jogo da amarelinha), convidado pelo fotógrafo a preencher os vazios imagéticos e semânticos decorrentes do inusitado corte feito pelo artista. Me atreveria a afirmar que Larrain foi um gênio do enquadramento.

Só um olhar mais atento permite decifrar a horizontalidade predominante, cortada por um tenso fio vertical à direita do fotograma. Trata-se de uma linha de pesca. A descoberta é da ordem da revelação: as três figuras principais estão debruçadas numa viga de madeira, por certo uma doca, pescando num rio ou mais provavelmente nas águas do oceano Pacífico.

Estamos diante de uma imagem em que prevalece o ocultamento, que é a chave da atração. Pés, mãos e anzóis ocultam e ocupam o lugar dos rostos infantis. Uma perna direita está pendurada no ar, em paralelo com a linha. Só que, ao contrário da tensão do anzol, o menino da perna no ar parece estar dormindo: uma lassidão que contrasta com os outros três corpos que se ocupam da pesca.

Nunca saberemos se o fotograma de 35mm de sua Leica já tinha esse recorte desde o momento de fotografar, ou se o enquadramento foi feito no processo da ampliação. Seria da ordem do excepcional o fotógrafo capturar a imagem da forma como ela é apresentada, e não faz diferença sabermos se a foto sofreu ou não cortes posteriores. Nos dois casos, o da captura espontânea ou o do recorte posterior, “empurrar” os meninos para cima, decepá-los pela cintura, destacar pernas e pés, parece uma colagem cubista, em que os índices corporais fazem do fragmento a estética predominante.

A incompletude dessa foto caminha em dois sentidos: no do corte e no da chamada ao leitor para completá-la. É uma foto decupada, um convite para que o leitor preencha os vazios semânticos: quem são essas crianças? Sem dúvida de baixo extrato social, eventualmente filhos de pescadores, que têm na pesca um elemento lúdico ou até mesmo uma fonte de alimentação.

Uma curiosidade é que a parte inferior dos corpos constrói a parte superior da imagem. E o preto, que ocupa dois terços do espaço, transforma-se em suporte da viga, como se a mantivesse suspensa no ar. O preto, que poderia ser o “fundo” unidimensional da imagem, acaba tendo por função sustentar a parte superior. A densidade do preto, única parte não realista da fotografia, confina a imagem na parte superior e tem a força de prensar os corpos decepados.

Em vez de Larrain se conformar com uma paisagem natural marinha embaixo da viga de sustentação, criando uma perspectiva de horizonte infinito, ele inverte o efeito, introduzindo o preto na forma de um vazio espacial muito forte. É quase uma intervenção digna do pintor francês Pierre Soulages (1919), reconhecido pelas densas superfícies pretas em sua pintura.

A foto faz parte de um enorme corpus de retratos de crianças muito pobres, quando não abandonadas. A elas se dedicou Larrain. Mais tarde, ele percebeu que seu trabalho fotográfico e filantrópico em nada modificara a condição social desse grupo. De forma desiludida, em 1966 ele se desvinculou da agência Magnum, para a qual tinha sido convidado em 1959 por seu mestre e amigo Henri Cartier-Bresson, e abandonou para sempre a fotografia.  Em 1978, até a sua morte em 2012, ele se retirou junto com o filho para as montanhas de Tulahuén, no norte do Chile, a fim de procurar respostas por meio da ioga e da meditação. “Uma boa imagem nasce de um estado de graça”, escreveu Larrain. Acredito que esse ingrediente espiritual que pautou o seu trabalho fez com que ele se afastasse do fotojornalismo, passando a ser um dos grandes artistas fotógrafos do século 20.///

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Primeiro livro publicado por Sergio Larrain, O retângulo na mão é na realidade um livro de artista de dimensões reduzidas, e que hoje temos o privilégio de ler, graças à edição fac-similar com textos em português (Ed. Xavier Barral). Chama a atenção o fato de o livro ter o selo editorial da série Cadernos Brasileiros, publicado em Santiago de Chile em maio de 1963. Esse inusitado vínculo com o Brasil deve-se à figura do poeta amazonense Thiago de Mello, diretor da publicação, cônsul brasileiro no Chile e grande amigo de Pablo Neruda em cuja residência se hospedou por quatro anos.

Outra curiosidade, para nós latino-americanos, é o triângulo Larrain-Cortázar-Antonioni. Diz a lenda que foi Larrain quem contou a Julio Cortázar que, ao revelar uma foto tirada em um parque em Paris, viu na ampliação do laboratório aquilo que ele não enxergou a olho nu: um casal em meio aos arbustos fazendo sexo. O conto As babas do diabo (1959), em que esse fato é reproduzido, acabou servindo de base para o roteiro de Blow-up – Depois daquele beijo (1966), clássico do cinema dirigido por Michelangelo Antonioni.

Mais informações sobre a exposição Sergio Larrain: um retângulo na mão

O retângulo na mão está à venda na loja online do IMS.

 

Jorge Schwartz é curador e crítico de arte. Professor titular aposentado da USP e durante 10 anos diretor do Museu Lasar Segall. Responsável por várias exposições e autor de livros e ensaios. Entre eles, Vanguardas latino-americanas, Fervor das vanguardas (prêmio Jabuti), e organizador de Borges babilônico. Coordena na Companhia das Letras, a obra completa de Jorge Luis Borges, e com Gênese Andrade, a obra completa de Oswald de Andrade.

 

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