O curador Hélio Menezes destaca obras fotográficas da exposição Histórias afro-atlânticas, em cartaz em São Paulo
Publicado em: 17 de outubro de 2018Organizada pelo Museu de Arte de São Paulo (MASP) e o Instituto Tomie Ohtake, a exposição Histórias afro-atlânticas reúne um conjunto de obras de arte e documentos relacionados aos “fluxos e refluxos” entre a África, as Américas, o Caribe e também a Europa, ao longo dos últimos 500 anos. ZUM convidou o curador Hélio Menezes a destacar um conjunto de artistas e trabalhos fotográficos que merecem ser vistos antes do final da exposição, que vai até o próximo domingo. Conheça abaixo a seleção feita por Menezes.
As manifestações culturais baianas de expressão religiosa e popular são matéria fértil para o trabalho de Adenor Gondim, fotógrafo que dedicou importante pesquisa e extensa série à Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte, confraria de mulheres negras sediada em Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Associação cujas origens remontam ao século 19, formada exclusivamente por mulheres negras numa sociedade marcadamente patriarcal e racista, a Irmandade expressa em suas roupas, joias e insígnias um barroco afro-brasileiro em idioma próprio, que se faz revelar de modo suntuoso nesse registro da década de 1990. Ao centro, a Juíza Perpétua da Irmandade aparece entronada em pose de realeza, ladeada por quatro irmãs que, entre assertividade e doçura, devolvem olhares de orgulho e empoderamento às lentes de Gondim. O retrato coletivo, ao passo em que mimetiza a galeria de fotografias ao fundo, parece também se inserir nela, adicionando nova camada de memória aos registros de uma tradição religiosa secular.
Três homens negros descamisados, ao ar livre, encaram e desafiam as lentes do fotógrafo Carlos Vergara – e, por consequência, a nós que os miramos de volta -, num registro realizado durante o desfile do tradicional bloco Cacique de Ramos, no carnaval do Rio de Janeiro. A fotografia é parte da série Carnaval, de 1972. No apogeu da ditadura militar, os três sujeitos exibem, sobre seus peitos, a palavra “poder” manuscrita em branco, numa espécie de grafite político aplicado no próprio corpo, que se converte em suporte. Entre a ameaça e a candura, os olhares captados pelas lentes de Vergara nos convidam a repensar o papel dos ativismos e festividades negros durante o regime de exceção e a força disruptiva do carnaval, bem como as conexões políticas e estéticas travadas entre Brasil e EUA pelas comunidades negras nos anos 1970 em torno dos movimentos Black power e Black is beautiful.
Fotógrafo por vocação e ofício e químico industrial de formação, Eustáquio Neves é mestre em manipular imagens por meio de procedimentos experimentais de revelação, superposição de negativos e intromissões poéticas sobre a película fotográfica. Temas ligados a negritudes e à sua biografia informam alguns dos principais trabalhos de Neves, resultando em imagens híbridas e em camadas, como esse registro sem título da série Memória Black Maria. Estamparias, padrões geométricos e texturas emolduram um sujeito negro tomado pelas costas – evocando uma espécie de convenção visual de registros do séc. 19 de marcas de sevícias sobre o dorso de escravizados, sobretudo em corpos negros masculinos. Dessa vez, contudo, as cicatrizes cedem espaço para a escrita, em letras brancas, da palavra ZUMBI. A repetição seriada e partida do nome do líder negro quilombola faz emergir fonemas inesperados (“um”, “biz”, “zum”) sobre as costas e cabeça do fotografado, transformadas em suporte, num arranjo rítmico e de inspiração quase concreta.
A foto-performance De seu corpo nasce a maior riqueza integra uma série mais ampla de Faustine intitulada Sapatos brancos (2015), na qual a artista se faz retratar sempre nua em locais onde outrora funcionavam mercados negreiros, cemitérios de escravizada(o)s, fazendas escravistas, portos de tumbeiros e locais de batalhas da Guerra Civil estadunidense (1860-1865). Neste registro, o corpo de Faustine, imóvel qual totem sobre sapatos brancos que lhe servem de calço e metáfora, contrasta com o movimento do táxi amarelo que atravessa a Avenida Wall Street, em Nova York. Local onde até o século 18 funcionou um leilão de escravizados – à qual a pose e as mãos atadas de Faustine fazem eco e referência – e hoje é o centro de um dos maiores mercados financeiros do mundo.
Na pesquisa que deu origem à série Pontes sobre abismos, Motta recorre a distintas estratégias com o intuito de montar uma possível genealogia familiar, pulverizada pelas experiências da escravidão e do racismo. Histórias orais, fontes primárias, arquivos familiares e exames de DNA recriam e fabulam novos laços afro-atlânticos de parentesco, numa rota invertida do tráfico negreiro: à cata das rotas de suas raízes, a artista parte da cidade de Vassouras (RJ), passando por Minas Gerais e Lisboa, com destino a Serra Leoa, na África. O percorrido resulta em suportes diversos, entre os quais essa fotografia em três planos que apresenta o chefe Iman Alhaji Mustapha Koker, do grupo étnico Mende, posando com trajes elegantes enquanto segura um retrato emoldurado de sua mãe, à moda dos antigos álbuns de família. Por detrás, a imagem da bisavó da artista, ampliada e hasteada em tecido, complementa uma reunião imaginada de família. Três crianças observam a cena ao fundo, e sobre a foto da mãe do Iman se pode ler (em inglês): “que sua alma descanse em perfeita paz, querida mãe”.
O díptico Dr. Lanre com sua família em São Paulo, Brasil / Dr. Lanre com sua família em Ibadan, Nigéria, que integra a série Estou aqui, sou daqui, reúne famílias e aproxima afetivamente as duas margens do Atlântico, tornando mais rarefeitas as fronteiras dos fluxos modernos de pessoas entre África e Brasil. No primeiro registro, uma família de nigerianos posa de modo descontraído em frente ao Hospital das Clínicas, em São Paulo. No segundo, realizado na Nigéria, seus parentes posam ao lado de uma reprodução da primeira fotografia, resultado de um jogo de montagem que engana o olhar apressado. Dessa vez, eles se encontram em frente à escola onde Dr. Lanre realizou seus estudos naquele país. A ampliação em escala humana da primeira imagem, e sua inserção na segunda pela ação do fotógrafo, “encaixando” o muro gramado de São Paulo ao muro descontínuo de arbustos em Ibadan, passam a impressão que todos estão fisicamente reunidos – apesar do Atlântico que os separa.///
Hélio Menezes é antropólogo e internacionalista. Foi curador convidado da exposição Histórias Afro-atlânticas (MASP e ITO), e curador da mostra de performances Eu não sou uma mulher? (ITO).
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