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Fotolivro de Milton Guran que retratou o congresso de refundação da UNE em 1979 ganha reedição

Publicado em: 29 de março de 2019

Em outubro de 1968, em um sítio na cidade de Ibiúna, no interior de São Paulo, cerca de mil estudantes foram presos pelas forças policiais no congresso que colocaria a União Nacional dos Estudantes (UNE) na clandestinidade. Onze anos depois, em 1979, a cidade de Salvador recebeu cerca de três mil estudantes para o primeiro congresso da entidade pós 1968. Na ocasião, o fotógrafo Milton Guran documentou o congresso da refundação da UNE e, na impossibilidade de veicular sua reportagem fotográfica na grande imprensa, publicou de forma independente um livro que se tornou um marco do fotojornalismo brasileiro.

Nos 40 anos de congresso de Salvador, o livro Encontro na Bahia 79 ganha uma reedição comemorativa pelas mãos de Bruno Bou Haya, que vislumbrou essa oportunidade para resgatar um momento importante da história política brasileira recente. Milton Guran e Bruno Haya conversaram com a ZUM sobre a cobertura do evento de 1979, os desafios para a nova edição do livro e seu valor para o público atual. 

 

4:30h da madrugada 31 de maio 79, foto de Milton Guran do livro Encontro na Bahia 79. Cortesia do autor.

 

Como foi a experiência de fotografar o congresso que marcou a reconstrução da UNE, ainda sob o regime militar? Como era o clima durante o evento?

Milton Guran: Temos de lembrar minha situação profissional e o contexto político na naquele momento. Profissionalmente, eu era um repórter-fotográfico independente, tinha sido demitido do Jornal de Brasília porque estava engajado na luta sindical. Naquele momento [1979], havia no país um ativo movimento de jornalismo independente e os fotógrafos faziam sua parte, buscando se organizar em torno de propostas específicas, como a defesa dos direitos autorais, do crédito obrigatório, da propriedade dos seus negativos e por uma tabela de preços mínimos para serviços de free-lancer. Também assumiam o compromisso de cobertura de pautas independentes e pertinentes, já que a grande imprensa só noticiava o que refletia os interesses patronais alinhados com o regime militar. Enfim, eu era um dos muitos jovens fotógrafos engajados no que seria conhecido como o movimento das agências.

1979 foi o ano da anistia, da grande arrancada da sociedade civil e das forças políticas tradicionais pela redemocratização do país. Na época eu cobria regularmente o Congresso Nacional e, portanto, estava bem a par do apoio da ala progressista do MDB à realização do congresso de reconstrução da UNE. Podemos dizer que essa ação política, na qual estavam engajadas as principais forças de oposição ao regime – no plano político institucional, sindical e das organizações da sociedade civil – funcionaria como uma espécie de teste dos limites do regime na sua proposta de “abertura lenta e gradual”, iniciada no governo Geisel. Assim sendo, a realização desse congresso me pareceu uma pauta obrigatória. A minha grande surpresa foi ver que, afora os fotógrafos da grande imprensa presentes apenas na abertura, ninguém mais cobriu o evento. Só quem documentou tudo do começo ao fim fui eu e a equipe do cineasta Sílvio Tendler.

Antônio Carlos Magalhães, então governador da Bahia, bancou politicamente o evento – que ele tratava como um “encontro de estudantes” – e ofereceu o Centro de Convenções, que havia acabado de construir, para abrigá-lo. Todos nós ali presentes tínhamos consciência de que poderia haver confronto, principalmente com os famosos “bolsões mais radicais” que sustentavam o regime. Basta lembrar que dois anos depois aconteceria o atentado do Riocentro, quando um oficial e um sargento do Exército tentaram explodir uma bomba em um show de música com dezenas de milhares de pessoas.

O congresso da UNE foi a principal manchete dos jornais de Salvador. A cidade estava perfeitamente sintonizada com o evento, a tensão podia ser sentida no próprio pulsar da vida cotidiana. Milhares de jovens chegavam de todo Brasil e mais de três mil famílias se dispuseram a hospedá-los. Salvador se colocava no centro da vida política nacional pelo viés da oposição ao regime pela primeira vez em muitos anos. Apesar do consentimento do governador, visto como uma jogada de oportunismo político, todos sabiam que o que se preparava não era uma simples reunião de estudantes, mas sim a reconstrução de uma instituição proscrita e tornada ilegal pelo regime, justamente por ser uma referência maior das lutas populares no país.

Um dos aspectos que mais me impressionaram no primeiro instante foi o tipo de estudante que apareceu por lá, muito diferente dos militantes clandestinos presos em Ibiúna, 11 anos antes. Eram jovens politizados e seguros dos seus direitos e do papel que desempenhavam na cena política, mas que não tinham medo de se expor, de exigir protagonismo político, todos dispostos a construir uma grande frente pela redemocratização do país.

Retrato de Honestino Guimarães, último presidente da UNE, desaparecido, Presidente de Honra do XXXI Congresso, foto de Milton Guran do livro Encontro na Bahia 79. Cortesia do autor.

Houve momentos de grande tensão, como quando o encontro foi “invadido” por uma entidade gaúcha de direita não credenciada para o congresso. Ou quando houve um corte de luz durante uma sessão plenária e foi jogado pó tóxico sobre os participantes. As tochas de luz da equipe do Sílvio Tendler foram direcionadas para a mesa – sobre a qual pairava um enorme retrato de Honestino Guimarães, último presidente da UNE, preso e assassinado pela repressão – permitindo que a mesa, presidida por Rui Cesar, do DCE da Bahia, com firmeza e serenidade, pudesse evitar o pânico e dar continuidade aos trabalhos.

 

Como foi publicar o livro na época? O que o motivou? 

MG: Apesar de ter bons contatos nas editorias de política dos principais jornais do país, não consegui vender uma única foto. A resposta padrão que recebi dos editores que de alguma forma falariam sobre o Congresso nas suas publicações foi que a matéria ficaria muito à esquerda se tivesse foto.

Eu era bem próximo da presidente do Centro Acadêmico da Faculdade de Arquitetura da UnB, Silvana Louzada, que mais tarde viria a integrar o corpo de fotógrafos da AGIL, e resolvemos fazer uma exposição nas dependências da faculdade. Montamos a exposição durante a noite e abrimos quando o pessoal estava chegando para o primeiro tempo das aulaa. Às dez horas, quando a polícia do reitor capitão de mar e guerra empastelou a exposição, milhares de estudantes já tinham visto a mostra. O sucesso motivou uma notinha no  Correio Braziliense e o repórter me perguntou qual seria o próximo passo para divulgar o trabalho. Foi aí que me ocorreu dizer que faríamos um livro para espalhar milhares de cópias pelo país. Hoje vejo que, naquele momento, também eu queria testar os limites da censura e cumprir com a minha função social de jornalista, que é informar o que deve ser informado.

Recepção dos delegados – Campo Grande/Salvador, foto de Milton Guran do livro Encontro na Bahia 79. Cortesia do autor.

Minha intenção era fazer um livrinho de mil exemplares de tiragem, com impressão barata, para ser distribuído nos meios estudantis. Mas, naquele momento, havia no país uma rede de livrarias de resistência que vendiam, além de livros, os jornais alternativos. Uma delas era a Livraria Galilei, de Brasília. O livreiro soube do projeto, me procurou e se dispôs a encampar a ideia, passando a tiragem para cinco mil exemplares, a maior de um livro de fotografias até então e ainda hoje uma quantidade rara para lançamentos de qualquer natureza. Por sugestão dele, tiramos a palavra UNE do título para driblar a censura nas peças de venda e nas notas fiscais e procuramos fazer uma capa bem careta. Foi assim que o verdadeiro título do Encontro na Bahia 79 passou para a foto – A UNE somos nós – e desenhamos uma capa nos moldes da coleção de fotógrafos da editora americana Aperture, muito difundida na época.

O livro foi lançado apenas três meses depois do congresso, em Brasília, na Livraria Galilei. E a seguir em São Paulo, na Agência Central de Fotojornalismo (primeira cooperativa de fotógrafos nos moldes das que viriam a integrar o movimento das agências), no Rio na Livraria Muro, em Recife na Livraria Livro Sete e em outras capitais, sempre em sintonia com essa rede de livrarias de oposição. Ao que eu saiba, Encontro na Bahia 79 foi a primeira documentação fotográfica do tipo cobertura de evento a ser publicada em livro na íntegra, ressalva feita a Candomblé, de José Medeiros, que é, na verdade, um ensaio sobre tema específico.

As imagens do livro, acompanhadas de legendas concisas e diretas, documentam de maneira cronológica o que aconteceu no congresso, caracterizando uma abordagem jornalística. No entanto, é possível perceber também um envolvimento do fotógrafo com o momento histórico que ali acontecia. Como foi trabalhar nessa fronteira?

MG: Na minha trajetória como repórter-fotográfico, eu muito raramente tinha visto publicada aquela que eu considerava a melhor foto. Nunca tinha sido capaz de emplacar uma legenda. Neste livro, resolvi fazer tudo eu mesmo. Pedi uma apresentação ao fotógrafo Luís Humberto, com quem tinha uma ótima interlocução e que era muito respeitado por todos os fotógrafos, e o livreiro fez o texto da primeira orelha. Tudo mais que está no livro foi decidido e feito por mim.

sem título, foto de Milton Guran do livro Encontro na Bahia 79. Cortesia do autor.

Minha proposta era produzir um documento visual que desse conta da dimensão e da importância política do congresso, um testemunho definitivo que servisse para evitar o apagamento ou a deturpação daquilo que eu considerava marco no processo de redemocratização do pais.

Como disse, cobri o congresso do começo ao fim. Fiz cerca de 500 fotos com filmes Tri-X rebobinados, praticamente tudo com lente normal sem flash. Tive o cuidado de ampliar o material com aquele filete preto feito a partir do próprio negativo, uma tradição do fotojornalismo de documentação usada para indicar que aquela imagem estava reproduzida sem corte e expressava exatamente a informação que o autor queria passar ao leitor. Tem lá no livro até uma imagem na qual falta um pedaço porque, como era o último fotograma de um filme rebobinado, teve uma parte comida pela fita que prendia a película à bobina. Como a considerava essencial, pela informação nela contida, resolvi utilizá-la assim mesmo. Aliás, este livro é tudo o que sobrou das 500 fotos feitas na ocasião, já que todos os negativos foram destruídos no incêndio que a AGIL sofreu nos estertores da ditadura.

sem título, foto de Milton Guran do livro Encontro na Bahia 79. Cortesia do autor.

Minha postura em campo foi além do fotojornalismo habitual, até porque tinha consciência de que cada aspecto do que estava acontecendo, pela sua excepcionalidade naquele contexto político, seria notícia. Agi, então, muito mais como um documentarista com a responsabilidade de responder visualmente a todas as perguntas que poderiam ser feitas sobre o desenrolar do congresso nos seus aspectos políticos e operacionais. Procurei descrever desde as instalações até os diferentes tipos de participantes, incluindo os circunstanciais, e a mecânica de funcionamento do congresso, reunião dos grupos de trabalho, encaminhamento de propostas, sessões plenárias, debates, votações, refeições, ocorrências colaterais, tudo.  Além, naturalmente, de situar o evento na cidade e no momento político que estávamos vivendo.

A montagem do discurso visual seguiu essa lógica de produção de um documento e não de um ensaio de “fotos boas”. A grande “estrela” do livro é o próprio evento, não o autor das fotos. No entanto, não deixa de ser um livro de autor, já que eu, na qualidade de autor, decidi por esse formato e o executei na sua totalidade. De fato, desde a concepção, sempre vi esse livro como um instrumento político, não como uma vitrine para o meu talento de fotógrafo.

Já naquela época, ainda que de forma intuitiva, acreditava que o significado da foto estava na própria imagem – Vilém Flusser me confirmaria isso anos mais tarde – de modo que as legendas deviam cumprir as funções de identificar personagens e locais ou de trazer informações que permitissem uma leitura mais rica da imagem, nada de descrições redundantes. Assim fiz, deixando inclusive muitas fotos sem legenda alguma, porque era desnecessário.

José Serra, gestão 63/64, último presidente vivo e em liberdade, invocando as tradições da UNE, declara aberto do XXXI Congresso, foto de Milton Guran do livro Encontro na Bahia 79. Cortesia do autor.

O que o livro ainda pode ensinar nos dias de hoje?

MG: Hoje, revendo o livro, acho que podemos abordá-lo por dois vieses: o político e histórico; e pelo lado técnico e estético do fotojornalismo e da documentação fotográfica.

A reedição foi motivada pelo fato de que esse livro é o único registro visual desse que foi um dos mais importantes congressos da entidade máxima dos estudantes brasileiros, que neste ano de 2019 completa 81 anos de existência. Como testemunho, lá estão nas fotos representantes de todos os estados brasileiros além do líder do MDB na Câmara Federal, de vários líderes sindicais e do movimento camponês e de ex-presidentes e ex-diretores da UNE que desempenharam papéis de primeiro plano no cenário político desde então.

O livro serve também como indicador de uma postura profissional que era dominante entre os repórteres-fotográficos engajados no processo de redemocratização dos anos 1970/1980, postura essa que veio a desaguar na fundação de várias agências independentes exatamente nesse momento. Sua publicação, por si só, também nos fornece importantes informações sobre como se organizava a resistência à ditadura na área editorial dentro dos marcos legais, por assim dizer.

Para começar, foi uma edição de autor encampada por uma livraria militante que nunca tinha editado coisa alguma antes. Foi lançado nacionalmente nas livrarias que integravam uma rede de resistência ao regime, em sindicatos e associações de fotógrafos independentes, ou seja, em um circuito de oposição ao regime militar. Contornando a autocensura dos grandes meios de comunicação e a censura explícita do governo, o livro permitiu a difusão de uma informação de peso para a oposição.

No esteio do livro foram produzidas uma exposição encapada em plástico que a UNE fez rodar o país e um sem número de camisetas com a imagem da capa, sem falar na apropriação de muitas fotos pelos mais diversos segmentos das organizações estudantis e da imprensa alternativa.

Com o plenário constituído só de delegados, votação com crachá, foto de Milton Guran do livro Encontro na Bahia 79. Cortesia do autor.

Esta reedição, por sua vez, foi de iniciativa dos próprios estudantes. No ano passado fui convidado a integrar uma mesa do Congresso da UNE sobre o XXXI Congresso. Bruno Bou Haya, o coordenador desta reedição, me levou para conhecer o projeto de cobertura colaborativa da UNE, uma ação com muitos pontos em comum, na sua forma operacional, com as agências da década de 1980. Esse contato deu frutos na criação do grupo de ação FotografiaPelaDemocracia e no projeto de resgatar a memória visual do congresso de reconstrução. Vale ressaltar que há 40 anos fui o único a documentar o congresso, mas este ano¸ quando a reedição foi lançada na 11ª Bienal da UNE em Salvador, 150 fotógrafas e fotógrafos faziam uploads ininterruptos de todos os aspectos do evento.

Creio que, no plano fotográfico, esse livro pode ser considerado tecnicamente exemplar na sua proposta de cobertura densa de um evento, na linha da melhor tradição do fotojornalismo e da documentação fotográfica de entre guerras, que se consagrou no trabalho dos fotógrafos da lendária agência Magnum, para ficarmos no caso mais conhecido. Meu olhar foi pautado pelo rigor da estética bressoniana e segui à risca o preceito de Capa quando afirmou que “se a sua foto não é suficientemente boa é porque você não estava suficientemente perto (engajado).”

Encontro na Bahia 79 foi o primeiro fotolivro eminentemente político da minha geração. Como disse, o livro não apresentou a reunião das melhores fotos de um autor, pelo contrário, nasceu da necessidade de levar a público um testemunho sobre um fato político de indubitável relevância em um dado momento da história, o qual estava sendo deliberadamente apagado pela mídia e pelo governo. Nele estão registradas cenas indiciais de aspectos hoje corriqueiros da vida social e política, tais como a primeira faixa em defesa da Amazônia, o protagonismo feminino e a busca por uma igualdade de gênero.

Na 11ª Bienal da UNE, em fevereiro deste ano, quando a reedição foi lançada, as fotos apresentadas nos telões da sessão de encerramento foram tiradas do livro. Elas estavam lá para fazer a ponte entre aquela juventude ávida por se expressar politicamente e a tradição de luta da entidade. Elas diziam em linguagem entendida por todos que “a UNE somos nós, nossa força nossa voz”.

sem título, foto de Milton Guran do livro Encontro na Bahia 79. Cortesia do autor.

Qual a importância da reedição desse livro, 40 anos após a sua publicação?

Bruno Bou Haya: É um livro capaz de apaixonar qualquer sociedade apática. Os planos radicais, a grande angular e a captação da imagem à queima roupa nos dá toda a sensação daquele congresso épico. Suas opções estéticas nos mostram a ousadia naquele local: Milton Guran com 10 mil estudantes de todo Brasil contra a ditadura pela liberdade.

No campo fotográfico foi um marco. Foi o primeiro fotolivro com o alinhamento estético e o comprometimento político do país. Foi também, na sua época, o fotolivro com maior tiragem, de 5 mil cópias, porque ele nasceu grandioso.

As experiências pessoais que se formaram a partir deste livro lançado na segunda metade de 79 foram tão profundas ao ponto de determinar a carreira de fotógrafos hoje renomados, de produtores da rede de festivais e intelectuais da área. Os depoimentos que hoje escuto com o lançamento da reedição só nos dá a certeza do importante momento em que passamos de relembrar os duros capítulos sem esquecer da coragem que sempre esteve conosco.

Tenho certeza que frente ao momento político atual essa obra cumprirá novamente um papel decisivo na formação dos fotógrafos contemporâneos tal como a primeira edição. Hoje vivemos não só uma crescente da linguagem fotográfica, mas a predominância dela. Há, em paralelo à efervescência política, uma nova geração de fotógrafos chamada de midiativista que estabelece uma empatia muito forte com o ambiente do seu fotografado. Vejo nessa experiência o mesmo desejo que levou Milton Guran a desenvolver essa grande obra. Não tenho dúvida que o lançamento da reedição é uma chance para que os novos fotógrafos conheçam pela primeira vez um trabalho clássico e claramente atual, uma chave mestra para a formação desses jovens fotógrafos.

José do Carmo Siqueira, líder camponês de Conceição do Araguaia, foto de Milton Guran do livro Encontro na Bahia 79. Cortesia do autor.

Quais os principais desafios para produzir e lançar essa nova edição?

BBH: Eu nunca encarei a primeira edição como mais um livro na estante. Por isso me esforcei para fazer um projeto gráfico único. Busquei utilizar no suporte físico dessa mídia uma forma de ampliação dos canais verbais. Procurei elementos sensoriais e visuais que remetiam àquilo que estávamos trabalhando. O papel kraft e o ilhós da capa em associação aos envelopes confidenciais; o papel jornal no miolo do livro como uma coroação tardia – já que a censura proibiria a publicação das fotos nas capas dos jornais – dando, 40 anos depois, o destaque que as fotos mereciam, são algumas escolhas do projeto.

Recebi a edição de 1979 para digitalizar suas imagens no dia 03 de dezembro. Três meses depois, no dia 9 de fevereiro, já estávamos lançando a nova edição em Salvador, na 11ª Bienal da UNE. Era muito importante lançar a edição especial neste evento da União Nacional dos Estudantes, pois seria com a mesma entidade e na mesma cidade 40 anos depois.

Credencial falsificada, foto de Milton Guran do livro Encontro na Bahia 79. Cortesia do autor.

Mas se fosse só isso, a disposição resolvia. O fato de a ditadura ter incendiado o acervo da agência AGIL também complicou demais meu trabalho. Houve muita necessidade de manipular as imagens, escanear diretamente das antigas páginas do livro. Entender o processo de impressão e a forma que o papel reagiu à tinta na primeira edição foi fundamental para que eu pudesse supor a escala de cinza que havia nos negativos.

Temos na nova edição o fac-símile da antiga. Isso complicou bastante a diagramação. Me interessava ter algo mais gráfico nos novos prefácio e posfácio que incluímos nesta edição especial. Algo que caminhasse com o impacto que as fotografias nos causam. Alinhar esse meu desejo irremediável com o projeto gráfico do livro original foi realmente um quebra-cabeça. Foram alguns encontros com o Guran para que pudéssemos chegar no resultado final.

Se isso já não bastasse, frente a um projeto gráfico muito específico, poucas gráficas toparam a proposta. Algumas não imprimiam a capa em papel kraft, muitas não aplicariam o ilhós, e só uma gráfica de máquina rotativa faria a tiragem de 300 cópias. Se eu quisesse manter o projeto gráfico, teria que rodar o miolo em uma gráfica e levar para outra imprimir a capa e fazer o acabamento. Foi tudo muito tenso. Talvez até irresponsável, devido ao prazo. Mas não pude desapegar do que havíamos criado. O livro chegou em Salvador um dia antes do lançamento.

Digo que as aventuras e incertezas dos estudantes a caminho do congresso da UNE em 1979 foram as mesmas dúvidas e aflições que vivi até lançar essa nova edição. A chance dos jovens daquela época serem presos a caminho do congresso era a mesma do livro não chegar no lançamento. Mas tudo valeu a pena. O encontro de 1979 foi histórico e o nosso lançamento, emocionante.

A segunda plenária, iniciada pela manhã, teve intervalo para almoço e apresentação de teatro, e prosseguiu por 12h consecutivas, foto de Milton Guran do livro Encontro na Bahia 79. Cortesia do autor.

Você tem alguma relação pessoal com o livro?

BBH: Esse livro conta um dos capítulos mais importantes da entidade que dediquei boa parte da minha juventude. Nela aprendi coisas que uso diariamente. Pra mim, essas páginas feitas pelo Guran têm um valor inestimável, pois nelas vejo a UNE por inteiro. Ele fotografou mais que as coisas concretas. Registrou o que era e as possibilidades de um mundo melhor.

Não sei mais o que é a UNE e o que é o livro, pois utilizo os mesmos adjetivos para os dois. As coisas já estão muito misturadas na minha cabeça. Tanto a UNE quanto esta nova edição pediram muita dedicação.  E do congresso da UNE daquela época muito se conservou. Vi ao vivo muitas cenas retratadas no livro. Inclusive, na sua obra, é possível encontrar um personagem muito parecido comigo. Sendo muito franco, há em mim a completa sensação de ter vivido esse congresso de 1979 mesmo sem ter idade para isso.

O que o livro ainda pode ensinar nos dias de hoje?

BBH: Eu e o Vitor Vogel desenvolvemos uma experiência no Circuito Universitário de Cultura e Arte da UNE, o CUCA, que funciona como uma agência escola de fotografia para os estudantes universitários. O livro Encontro na Bahia 79 é, até hoje, um grande balizador sobre o que pode ser feito neste campo dentro do movimento estudantil. Utilizamos essa obra inúmeras vezes para explicar tanto o processo analógico quanto a criação estética. Por mais que tenhamos caminhado para o digital, as escolhas no processo criativo são eminentemente políticas. Entender o subtexto, a edição do livro e tudo que se constrói nessa mídia foi fundamental para que pudéssemos tocar essa agência nas coberturas das agendas do movimento estudantil. A coisa cresceu tanto ao ponto da última cobertura colaborativa feita em fevereiro deste ano na 11ª Bienal da UNE ter 140 pessoas envolvidas.

É difícil dizer onde estaríamos agora sem o caminho dos que passaram antes. Na UNE se aprende a valorizar muito a história e, para nós fotógrafos que vivemos das coisas materializadas, poder mostrar algo tão bem executado como essa série do Milton Guran é de uma sorte ímpar, fundamental para que pudéssemos ter confiança e êxito nessa experiência – que agora é levada por novos coordenadores.

Para além da UNE e do CUCA, esse livro é uma publicização da resistência e da perseverança. Se 11 anos antes os que foram ao congresso de Ibiúna foram presos e torturados na época mais violenta da ditadura, a geração seguinte de estudantes decidiu fazer um congresso de refundação da UNE sem se esconder. O que podemos aprender com o livro é a história que ele nos conta: um enorme post it escrito coragem.///

 

 

Milton Guran é fotógrafo e antropólogo. Em 2016, foi contemplado no programa Rumos Itaú Cultural. Seus trabalhos fazem parte das coleções MASP-Pirelli, do MAM – RJ, MAR – RJ e da MEP – Maison Européenne de la Photographie, dentre outras. Curador na área de fotografia, é coordenador-geral do FotoRio  e membro da diretoria da Rede de Produtores Culturais da Fotografia no Brasil. Atualmente, é vice-presidente do Comitê Científico Internacional do Projeto Rota do Escravo – Resistência, Liberdade e Patrimônio da UNESCO.

Bruno Bou Haya é formado em Relações Públicas na FACHA. Publicou o fotolivro Todo seu Caymmi (2018) e participou das exposições Memórias da democracia (2017) em Fortaleza e Linha de frente (2018) no Congresso Nacional em Brasília. Entre 2015 e 2017 coordenou a pasta artística e cultural do Circuito Universitário de Cultura e Arte (CUCA) da UNE.

 

 

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