Radar

A fotografia é uma música

Mauricio Lissovsky Publicado em: 23 de abril de 2021

 

Página digitalizada do livro Cidade e arredores do Rio de Janeiro – a joia do Brasil, de Erich Eichner, Rio de Janeiro: Livraria Kosmos, [s.d.]. Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, IEB-USP.

Isso foi em 1950 ou 1951. O maestro Heitor Villa-Lobos entrou em uma das turmas do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico no Rio de Janeiro, colocou uma fotografia no quadro e perguntou aos alunos: “e então, que música ela toca?”. Não era a primeira vez que surpreendia os estudantes com uma proposta inesperada. Gostava de improvisar – todo mundo sabia.

Fundada pelo compositor, aquela era a única escola dedicada exclusivamente à formação de professores de música para o ensino público. Vinha gente de todo o país estudar ali. Nesse dia, minha mãe era um desses estudantes que olhava a paisagem fotografada, tentando decifrar as intenções do professor. Àquela altura de sua vida, Villa-Lobos não passava mais de quatro meses por ano no Brasil. Mas sempre que vinha ao Rio, aparecia no Conservatório e percorria as turmas. O curso funcionava no segundo andar do Instituto Benjamin Constant, de educação de cegos. A presença de Villa no prédio era percebida à distância: o odor do charuto subia as escadas e a notícia se espalhava: “o maestro está em casa”.

Minha mãe não devia ter mais de 21 anos. Viera de Recife seis anos antes, para continuar seus estudos de piano na capital com um pianista espanhol que o próprio Villa havia convencido a vir dar classes no Brasil. Depois seguira para a França, para o Conservatório de Paris, e voltou com diploma de pianista. Agora, em um país onde havia poucas salas de concerto, tornar-se professora de música parecia ser uma alternativa conveniente. O diploma francês lhe economizaria dois anos de um curso que geralmente durava quatro.

A fotografia circulou entre os alunos. A silhueta das montanhas era copiada em um papel, e as notas musicais eram distribuídas, a critério de cada um, pelos picos e vales, suas durações e intervalos sugeridos pelo relevo. No final do exercício, cada aluno, de olho na linha melódica que escrevera, cantava a sua “cordilheira”. Encerrada a aula, Villa sugeriu que procurassem fazer a mesma coisa olhando as montanhas do Rio.

O experimento nunca mais foi repetido, e muitos estudantes ficaram com a impressão que essa ideia surgiu como um daqueles tantos lampejos inusitados com que Villa costumava pontuar suas aulas. Mas a relação entre fotografias e música tinha para o compositor quase duas décadas de história. A ideia lhe ocorreu pela primeira vez, em 1934, olhando da janela de casa a silhueta do Pão de Açúcar, o mais fotogênico dos morros cariocas: havia uma melodia “guardada” ali há milhões de anos, pensou. Mas foi a partir de uma fotografia da Serra da Piedade, em Minas Gerais, que emergiu finalmente a Melodia da Montanha, peça para piano, composta em 1937. O método de composição – que era igualmente um instrumento pedagógico – foi denominado “Gráfico para fixar a melodia das montanhas” e consistia em cobrir uma fotografia com papel de seda milimetrado e desenhar nele o contorno das montanhas. Do encontro dessa linha com a grade milimétrica emanava a melodia e, eventualmente, dependendo da habilidade e disposição do estudante ou do professor, o ritmo e a harmonia.

 

Página digitalizada do livro Cidade e arredores do Rio de Janeiro – a joia do Brasil, de Erich Eichner, Rio de Janeiro: Livraria Kosmos, [s.d.]. Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, IEB-USP.

Em 1939, um repórter incrédulo da revista Life pediu a Villa-Lobos (a quem o periódico fez questão de descrever como “exótico” e “selvagem”) que demonstrasse seu método de composição a partir de fotografias. Estendeu-lhe um perfil de Nova York com seus arranha-céus no lugar de montanhas. Segundo o pesquisador brasileiro Rodrigo Felicíssimo, teria sido uma fotografia tirada por Margaret Bourke-White de uma seção do gigantesco diorama de Nova York, que se estendia por quase um quarteirão e era uma das principais atrações da recém-inaugurada Feira Mundial. Em pouco mais de uma hora estava pronto o primeiro esboço de New York Skyline Melody, uma peça para piano cuja versão orquestral estreou na própria feira, em 1940. Enquanto compunha, Villa-Lobos filmava a cidade com sua própria câmera 16 mm. Em 1944, concluiria a Sinfonia no 6 (Sobre a linha das montanhas [do Brasil]), cujos temas, que se juntaram à Serra da Piedade, haviam sido decalcados de fotografias do Pão de Açúcar, do Corcovado e do maciço da Tijuca e da Serra do Órgãos, com o famoso Dedo de Deus apontando para o céu. As fotografias que lhe serviram de inspiração eram de autoria de Sessler, Eric Hess e Walter Geyerhahn, publicadas naquele mesmo ano, creio, no livro do editor Erich Eichner, Cidade e arredores do Rio de Janeiro – A joia do Brasil.

Quase um século antes, o filósofo alemão Arthur Schopenhauer havia se referido à música como “resposta ao mistério da vida”, expressão mais acabada da Vontade. Por isso, à sua maneira, cada uma das artes aspiraria à música. Por que não a fotografia? Praticamente ao mesmo tempo que Villa-Lobos aprimorava seu gráfico, o fotógrafo Ansel Adams chegara à mesma conclusão. Não se tratava para ele, porém, de extrair da montanha ou da arquitetura a música que ali se incrustara, mas de encontrar na musicalidade própria de uma fotografia o fundamento de sua eternidade como obra de arte. Em uma carta, de 1947, Adams escrevera: “Relativamente poucos criadores em nossa época possuem uma ressonância com a eternidade. Eu penso que essa ressonância é algo pelo que se deve lutar – e demanda tremenda energia e sacrifício.”

Adams sabia do que falava quando denominou “ressonância” sua via pessoal de acesso à eternidade. Ele estudou piano e até os 23 anos planejava se tornar um concertista profissional. A opção pela fotografia fez-se em detrimento dessa outra carreira. Quando concebeu o sistema de zonas – método pelo qual os tempos de exposição e de revelação são ajustados de modo a produzir negativos ideais para a ampliação –, Adams o fez a partir de um modelo de relações harmônicas baseado nos intervalos entre os valores luminosos da fotografia. Influenciado por ele, Eric B. Johnson diz que “Tanto o fotógrafo como o músico trabalham com fundamentos similares. A escala de cinzas contínuos do preto ao branco em uma foto é similar à escala ininterrupta de sons e alturas na música. Um telhado brilhante pode ser ouvido como um tom agudo ou uma nota ruidosa contra um tecido de sons ou de tons de cinza”. Esse tecido de fundo serve de apoio tanto para os padrões melódicos quanto pictóricos. Enquanto Villa-Lobos procurava nas linhas da paisagem o inesperado das melodias, Adams concebia fotografias que se davam a ver como arpejos e acordes rigorosamente afinados, em que cada nota, cada cinza, faria vibrar ao infinito os tons da escala a que pertencia. Com a publicação de seu “sistema”, em 1941, ele finalmente transformara o trabalho do fotógrafo em uma afinação da imagem. Por isso, Beamount Newhall, curador de fotografia do MoMA, de Nova York, observara que essa técnica proporcionava ao fotógrafo “um controle similar àquele que um músico tem sobre seu instrumento”.

 

Página digitalizada do livro Cidade e arredores do Rio de Janeiro – a joia do Brasil, de Erich Eichner, Rio de Janeiro: Livraria Kosmos, [s.d.]. Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, IEB-USP.

Estranha passagem essa, que vai do olho ao ouvido, que faz da contemplação uma escuta. Quase um paradoxo, pois afinar um instrumento é algo que a maioria dos músicos faz de olhos fechados. Edward Weston, fotógrafo próximo a Adams, com receio que a analogia musical pudesse abrir algum flanco para os críticos da fotografia como arte, ironizava: “Se os cantores se reunissem em número suficiente, talvez pudessem convencer os instrumentistas que o som que eles produzem através de suas máquinas não poderia ser arte por causa da natureza essencialmente mecânica de seus instrumentos.” Não chega a nos surpreender, portanto, que o repórter da Life tenha recorrido ao mecânico para explicar a seus leitores o método gráfico inventado por Villa-Lobos: tratava-se de uma “máquina de gerar melodias”.

Maquinação musical sobre maquinação fotográfica. Fixador de melodias: máquina ao quadrado. Para que, afinal, um grande compositor, cheio de imaginação, precisaria de máquinas? – perguntavam os críticos. Talvez tudo não passasse de uma anedota, como uma história de Frederic Chopin que o professor espanhol poderia ter contado à minha mãe. Afinal, dizia-se que o compositor das célebres mazurcas divertia- se pregando papéis pautados em árvores e disparando contra eles uma carga de chumbo. Depois, para deleite de George Sand e sua turma boêmia, improvisava melodias no piano de acordo com os buracos. Música disparada, no tempo em que as máquinas fotográficas ainda não faziam clique.

Para Villa-Lobos, no entanto, os cantores jamais se reuniriam em número suficiente. Todo seu trabalho em sala de aula – trabalho que sonhava ver reproduzido em todas as escolas do Brasil – era baseado na voz, sem acompanhamento. Na voz e no improviso, que seus alunos eram instigados a realizar. Frequentemente de supetão, no meio da aula, convocados por um gesto do maestro. Às vezes, em dupla, com um breve intervalo para que preparassem seu exercício. Os alunos se espalhavam aos pares pelo andar – havia muitos banheiros onde podiam ensaiar sem ser molestados. O par mais frequente de minha mãe era um estudante cearense. Um dia, depois de uma apresentação da dupla que agradou especialmente o maestro, Villa, depois do elogio, emendou um “carão”: “Nordestino vem aqui pro Rio, aprende e depois não volta. Tem que voltar para o Nordeste. Ninguém está cantando lá.” Nos tempos de menina, a pequena pianista havia se apresentado dezenas de vezes, sozinha ou com a irmã cantora, na Rádio Clube de Recife. Mas, naquele dia, já sabia que não voltaria mais. Saiu-se com uma mentirinha inofensiva: “Não posso, professor, eu tenho minha família aqui.”

 

Mozart (esq.) e Debussy (dir.), fotos de Ernest Bloch, Roveredo, Suiça, 1931. Impressão de Eric Johson feita em 1975. Arquivo do Center for Creative Photography na Universidade do Arizona, Tucson.

Ao contrário de Villa-Lobos, e a despeito de ser um exímio fotógrafo desde a juventude, o compositor suíço Ernest Bloch desconfiava das máquinas. Poucos meses após emigrar para os Estados Unidos, em 1916, tornou-se amigo de Alfred Stieglitz, paladino da moderna fotografia de arte naquele país. Eric Johnson nos conta que Bloch mudou de opinião a respeito do potencial artístico da máquina em 1922, quando viu a primeira série dos Equivalentes, fotografias de nuvens que o amigo começara a tirar. O compositor, então diretor do Conservatório de Música de Cleveland, as tomou como exemplos de realização do espírito em uma época que já julgava dominada por robôs. Em 1931, Bloch abandona a Graflex em favor da Leica. Mal pode conter o entusiasmo: produz mais de mil negativos em um ano – quantidade excepcional para um amador naquela época. Finalmente, a máquina lhe dava acesso ao que acreditava ser a alma das coisas. Mais precisamente, a alma das árvores, que ele fotografa continuamente em Roveredo, nos Alpes italianos, onde se refugiara para compor Sacred Service, uma de suas obras-primas: “Eu comecei a tirar fotos de uma árvore depois da outra, em meio a um silêncio perturbador. Então, subitamente, era como se a alma de cada árvore aquecesse meu coração e, na realidade, se comunicasse comigo. Foi um momento muito emocionante: eu chorei! Eu mesmo havia me tornado uma árvore! O que é bem melhor do que ser um homem.”

 

Bach (esq.) e Beethoven (dir.), fotos de Ernest Bloch, Roveredo, Suiça, 1931. Impressão de Eric Johson feita em 1975. Arquivo do Center for Creative Photography na Universidade do Arizona, Tucson.

Bloch atribuiu títulos a algumas de suas fotos de árvores conforme a impressão de movimento que lhe era sugerida pelos troncos: Bach, Beethoven, Debussy… Nessas imagens, interpenetram-se, retorcidas, fotografia e música. Um encontro que testemunha a longa história de tensões entre gesto e técnica, criação e reprodução, autonomia e automatismo, que marcou a produção artística do século 20. Quando Villa-Lobos criou seu “Gráfico para fixar a melodia das montanhas”, tratava-se, sobretudo, de sustentar-se nessa tensão, condição da modernidade de sua obra. Na gangorra do século, a música buscava na fotografia a máquina que lhe conferia a atualidade do tempo presente, enquanto a fotografia procurava nos tons musicais a permanência que lhe permitiria aspirar a eternidade.

*****

Minha mãe me contou a história da aula em que Villa-Lobos lhe ensinou a extrair a melodia de uma paisagem há muitos anos. Nunca esqueci. Não sei se por causa da música ou da fotografia. ///

 

*Texto originalmente publicado no CD-Livro Orquestra Pernambucana de Fotografia, de Gilvan Barreto, 2015

 

Mauricio Lissovsky é historiador e roteirista, doutor em comunicação, professor de teorias da imagem e da visualidade na Eco-UFRJ.

+

Ernest Bloch and Alfred Stieglitz: A Sunday Morning Conversion, ensaio pioneiro escrito por Eric Johson.

Estudo interpretativo da técnica composicional Melodia das Montanhas, utilizada nas peças orquestrais: New York Sky-Line Melody e Sinfonia nº 6 de Heitor Villa-Lobos, tese de doutorado de Rodrigo Passos Felicíssimo

 

Tags: , ,