“A fotografia deve ser política e poética”: entrevista com o paraguaio Fredi Casco
Publicado em: 16 de junho de 2016O paraguaio Fredi Casco, coordenador do IV Fórum Latino-Americano de Fotografia ao lado de Iatã Cannabrava, abre hoje a série de três entrevistas da cobertura do evento pela ZUM. O artista plástico, poeta e editor fala de seu trabalho e afirma que o Fórum serve muito mais para suscitar novas perguntas do que para responder aquela que é tema desta edição – “A Fotografia como Pensamento: É possível que o chamado ato fotográfico – ou, mais ainda, a imagem fotográfica – exista, permaneça ou circule, como ocorre com um conceito ou uma ideia?”.
Paula Sacchetta: Eu gostaria que você começasse falando da sua trajetória. Como um artista visual e poeta foi parar na fotografia?
Fredi Casco: Eu venho da literatura, mais especificamente da poesia. Foi em um momento no fim dos anos 1990, quando já não encontrava mais imagens nas palavras, que comecei a trabalhar com as imagens propriamente ditas. E aí passei a trabalhar sobretudo com vídeo e fotografia dentro da arte contemporânea. A linguagem da fotografia me interessou pela possibilidade de se poder construir uma imagem técnica. A partir daí, segui meu trabalho como artista, abordando as várias autolinguagens dentro da arte.
Tenho, já há algum tempo, certa militância no meio da fotografia. Primeiro como editor de uma revista no Paraguai, depois como cofundador, ao lado de Jorge Sáenz, do festival de fotografia El Ojo Salvaje e também como membro do comitê editorial da revista Sueño de la Razón. Minha primeira aproximação com o universo da fotografia latino-americana ou pelo menos com essa rede que começava a se formar foi no I Fórum Latino-Americano, que aconteceu aqui em São Paulo, em 2007. Participei da exposição coletiva Sutil violento, que foi curada pelo Iatã. Para mim, foi uma descoberta. Até então eu estava limitado ao circuito da arte contemporânea, sem tanto acesso ao meio fotográfico. Foi meu primeiro encontro com fotógrafos e ativistas da fotografia.
Por que você usa termos como militância e ativismo?
Diferentemente do que acontece na arte contemporânea, na qual os artistas trabalham muito de forma solitária e se encontram nas bienais ou no circuito das galerias, a fotografia está menos ligada ao mercado. Parece-me, assim, que há uma rede de colaboradores que se conforma, pessoas que estão tentando criar conexões sólidas, e isso já data de muito tempo atrás. Os antecedentes desta rede foram os Colóquios do México, nos anos 1970, e isso foi se solidificando com o tempo. De modo que vejo uma militância mesmo nessas conexões entre os fotógrafos e os produtores da fotografia na América Latina. É algo que não vejo com a mesma intensidade e eficácia em outras partes do mundo, esse desejo de se juntar para pensar o que está sendo feito por aqui. E o melhor – algo muito importante, a meu ver – é que essas iniciativas não vêm de lugares institucionais ou de poder, e sim principalmente dos próprios fotógrafos.
Em seu trabalho como artista plástico, você desenha em cima de documentos do século XIX, recupera fotos antigas, faz colagens com jornais já amarelados pelo tempo. Por que essa busca pelo arquivo, esse retorno ao passado?
Um dos meus interesses em trabalhar com a fotografia, do meu lugar de artista, era a possibilidade de poder interrogar a própria fotografia não só como imagem, mas também como material, documento, matéria. Poder indagar a história de uma fotografia – perguntar a ela sobre sua história e sobre a história geral, e não apenas no que diz respeito à imagem representada que aparece ali. É uma busca pela história do meu próprio país, pela história da América Latina, mas, sobretudo, pela história política. Walter Benjamin dizia que o historiador deveria ser arqueólogo e um pouco trapeiro. Pesquisar nos documentos fotográficos políticos do meu país é fazer isso, é ter a possibilidade de pentear a história a contrapelo. Pentear de uma maneira que as pulgas saltassem.
E o que são essas pulgas que você quer fazer saltar?
São os feitos marginais da história, os momentos esquecidos da história oficial. Porque aqui na América Latina há uma história oficial política que oculta mais do que mostra. Então eu quis trabalhar sobre documentos marginais, ou, melhor dizendo, laterais, esquecidos e secundários. Porque aí existe a possibilidade de aparecerem pequenas luzes que podem ter sido apagadas pelo grande refletor da história oficial.
Essa busca arqueológica em documentos e arquivos antigos é política? E a fotografia, deve ser política?
A fotografia deve ser política e poética. Esse é um dos aspectos mais potentes da fotografia e é exatamente por isso que hoje em dia o mundo da arte contemporânea e do pensamento estão tão interessados na fotografia, por esse caráter político, por essa possibilidade de se tomar posição. O fotógrafo toma posição, fisicamente até, para documentar um feito. É como uma metáfora: olha através da objetiva, toma posição e, ao tomar posição, deixa de ser objetivo. Mas toma posição a partir de uma distância, e isso é importante. É o momento político do fotógrafo. Eu acredito que esse momento seja essencial em um cenário político latino-americano no qual as democracias estão débeis e, mais que isso, são permanentemente ameaçadas. Temos histórias de violência política recente e de violência social evidente. A arte na América Latina deve ser e é consciente disso.
Podemos recontar histórias, ou mesmo recriá-las, a partir de documentos antigos? O documento determina algo ou é apenas uma versão da história?
Acredito que há um velho engano sobre a ideia do que é fotografia, que vem dessa ligação inicial da fotografia com a ciência, com a evidência. E que não tem só a ver com a questão do arquivo, mas sobretudo com a fotografia documental. Essa superstição da verdade fotográfica já foi suficientemente desmontada. No entanto, me parece interessante o documento fotográfico, o arquivo, não para mostrar o oculto, mas para trazer à luz, como falei, coisas que foram classificadas, deixadas de lado e manipuladas pelas versões da história. Para encontrar outras representações que talvez estejam nesses relatos. Não para buscar a verdade, mas para virar o tabuleiro do relato e do discurso histórico construído.
O fotógrafo já é hoje, também, alguém que faz outras coisas, que propões outras formas e que apresenta seu trabalho em outros meios?
O fotógrafo hoje não é mais apenas aquele que faz o clique. A fotografia tem sido uma das linguagens que mais conseguiu ultrapassar suas fronteiras e que foi atravessada por outros campos do conhecimento. Ela tem essa característica de ser ciência e arte. Ser documento, e, ao mesmo tempo, poesia. O fotógrafo hoje entende qual é a linguagem da fotografia e como pode aplicá-la em outras instâncias. Fotografia é a escrita com luz, e essa definição, por si só, já amplia os campos de ação do fotógrafo e abre outras possibilidades. O fotógrafo não se reduz mais ao sujeito que usa aquela caixa: ele olha para o mundo de uma forma que está relacionada à fotografia. To click or not to click, that is the question, é uma pergunta que fazemos, um pouco à guisa de piada, usando como referência a famosa frase de Shakespeare e o Manifesto Antropofágico. Perguntas como essa são as que nos levam a propor um tema como o do Fórum deste ano, colocando o fotógrafo num lugar não somente de documentarista e artista, mas também de pensador.
“É possível que o chamado ato fotográfico – ou, mais ainda, a imagem fotográfica – exista, permaneça ou circule, como ocorre com um conceito ou uma ideia?” é a pergunta tema do Fórum deste ano. Por que essa escolha? A resposta ainda não está dada?
A fotografia continua em muitos aspectos sendo considerada documento, sendo apenas a ilustração ou representação de um pensamento ou de uma ideia, algo acessório. Uma imagem dialética não pode ser pensamento ou gerar pensamento por si, em vez de só acompanhar ideias e conceitos? É uma pergunta que nos interessa e nos tocou fazer. Será que a câmera ou a imagem – ou o arquivo – podem gerar conhecimento sem estar necessariamente atados a um pensamento em palavras? Essa pergunta não está respondida totalmente. Temos algumas respostas soltas, elementos que surgem para respondê-la, propostas de pensadores e teóricos que tentam abordá-la, mas ela certamente ainda está em aberto. Há indícios de que o fotógrafo já não seja somente alguém que registra objetivamente os fatos, mas alguém que intervém na realidade e que pode pensar os fatos do presente e do passado. Mais do que respondida durante o Fórum, a pergunta vai ser debatida. Esperamos que possamos aqui debater, refletir e, sobretudo, formular mais e novas perguntas.///