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O fotógrafo Erick Peres e sua jornada dentro da noite

Publicado em: 24 de fevereiro de 2021

Foto da série O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã, de Erick Peres, 2016-2019

“Organizando lembranças, intercalando passado e presente, entre fotografias de arquivo, fotografias autorais e cartas trocadas entre meus pais, procurei cruzar a madrugada partindo da imagem de meu pai até o amanhecer na figura de minha mãe”. É assim que o fotógrafo gaúcho Erick Peres resume a ideia por trás da série O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã. Realizada a partir de fotografias antigas de um álbum familiar, de cartas escritas por sua mãe e de registros feitos por ele mesmo da vida noturna do seu bairro, Peres conta que essa narrativa visual nasceu do desejo de descobrir quem foi seu pai.

 

Como surgiu a ideia para a série O choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã?

Erick Peres: Comecei a pesquisa em 2016, quando notei que em meu álbum de infância o meu pai aparecia nas primeiras imagens e ia desparecendo aos poucos, até que no final do álbum ele já não estava mais lá, tanto pela ausência que deixou no espaço físico como também pela ação do tempo ao corroer e apagar sua imagem nas fotografias de arquivo e em minha memória. Então fui descobrir quem foi meu pai. Entre mesas de bar, garrafas de cerveja e suas andanças noturnas, procurar entender quem ele foi através da vida que teve. Organizando lembranças, intercalando passado e presente, entre fotografias de arquivo, fotografias autorais e cartas trocadas entre meus pais, procurei cruzar a madrugada partindo da imagem de meu pai até o amanhecer na figura de minha mãe. Passei três anos produzindo esta série somente para mim, para entender essa situação, sem nunca apresentar para ninguém. Até que um dia, conversando com amigos no bairro, ouvi que essa história era a mesma de meus amigos e de tantas pessoas que vieram de lugares periféricos, onde o aborto masculino parece ser um sintoma recorrente junto do recorte de classe, em que mães criam suas famílias sozinhas. Percebi que era só mais um personagem dentro deste meio, e aos poucos fui entendendo que organizar isso em uma sequência fotográfica era como sair para caminhar pela madrugada no meu bairro, contando a história de qualquer pessoa que mora por aqui.

 

 

A narrativa resultante da edição, que entrelaça fotografias e textos curtos, nos leva tanto a acreditar como duvidar da história que está sendo contada. Você entende assim também? Se sim, de onde veio a ideia de contar a história sem fincar o pé na ficção ou no documentário?

EP: Com certeza. Costumamos preencher as lacunas da memória com ficção. Lidamos com a traição da memória constantemente, ainda mais quando contaminada por sentimentos ambíguos. E a fotografia como ferramenta de expressão acaba trabalhando como criadora de ficções, pois a verdade se faz diferente para cada um, de acordo com a perspectiva, a realidade e o olhar de cada pessoa sobre uma única situação. O projeto nasce a partir de dúvidas e memórias nebulosas. Passei a fotografar meus incômodos e os lugares que, ironicamente, me remetiam à infância. Por essas questões, imagens ganharam novos sentidos quando atravessadas pelo tempo. Imagens de família, provavelmente produzidas pensando no registro de momentos felizes para a posteridade, com o tempo podem também relatar marcas de ausência em gestos, em sorrisos, e recebem novos sentidos quando partem de olhares doloridos.

 

Ainda sobre a narrativa proposta no trabalho, ela nasce da interação de três “eixos”: as fotografias familiares, os textos e as fotos feitas por você. Qual a origem de cada um desses elementos? E quais os principais desafios para organizar esses eixos dentro de uma narrativa única?

EP: O projeto começou com as imagens de arquivo, que já construíam uma narrativa por si só. Entre estas imagens encontrei duas cartas: uma que meu pai enviou para minha mãe antes de conhecê-la e outra que minha mãe escreveu para ela mesma quando descobriu estar grávida de mim. A partir daí, com os textos das cartas busquei construir uma conversa que na realidade nunca existiu entre os dois. No mesmo período, entre os arquivos, encontrei fotografias de flores, que só depois descobri que haviam sido feitas por mim por volta dos 6 anos, com aquelas câmeras saboneteiras, sem nem saber o que estava fazendo direito. As flores, que pontuam a narrativa como tema do projeto, de alguma forma parecem contar a mesma história, sob a ótica de uma criança vendo um relacionamento conturbado tendo como paisagem meu bairro e tudo que o envolve. Honestamente, cada peça foi se apresentando de uma forma muito fluída diante de mim. Quando percebi já estava imerso neste enredo e organizando as coisas naturalmente.

 

Você pode citar algumas referências que o ajudaram a chegar na edição final da série?

EP: Demorei muito tempo para passar a ter referências fotográficas. Antes disso, a estrutura e as construções narrativas dentro da literatura e de músicas populares me guiaram muito na edição do trabalho. Entender as pontuações de refrão, a escrita sobre romances conturbados em letras de pagode, as histórias e as conversas na esquina do bairro foram me auxiliando na construção. A escrita de artistas como o Kiko Dinucci, as crônicas presentes no trabalho do rapper Ogi, e até mesmo Temporal, do Art Popular, trazem sensações e sentidos semelhantes ao que busquei trazer ao trabalho, ao apresentarem temas complexos de forma sensível, palatável e popular. Com o tempo, dentro da fotografia passei a conhecer o trabalho do Max Pinckers, do Alec Soth e do Sohrab Hura, que também me influenciam bastante.

 

Em que projeto você está trabalhando agora?

EP: Hoje tenho produzido uma nova série que dialoga com o tema de O choro pode durar uma noite… Tenho fotografado o Partenon, meu bairro na zona leste de Porto Alegre, retratando amigos que hoje são pais e mães e estão tentando ressignificar o passado ao entregar afeto na criação de suas famílias. E também donos de mercadinhos e bares que testemunharam o tempo passar e viram crianças se tornarem adultos neste lugar. Tenho trazido diversas pequenas histórias dentro de uma única narrativa, lidando com mais carinho e cuidado para não repetir passos do passado. ///

 

 

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