O fotógrafo Tuca Vieira lança livro de ensaios sobre o mundo das imagens contemporâneas
Publicado em: 30 de abril de 2021Lançado no início de 2021, o livro Salto no escuro é uma coleção de ensaios escritos pelo fotógrafo paulistano Tuca Vieira nos últimos anos, segundo ele “para entender melhor o que estava acontecendo no mundo das imagens e com a atividade a que me dediquei por 30 anos, como quem toma distância para ter uma ideia mais completa do quadro”.
Os temas e assuntos dos ensaios misturam pensamentos e sensações sobre o fazer fotográfico nos dias de hoje, em um mundo altamente digitalizado, globalizado e virtualizado. Indo além da fotografia, Vieira cruza suas impressões sobre o lugar da imagem com a literatura, o cinema, a poesia, a land art: “eu tento confrontar o modo de produção fotográfico com esses outros, exploro diferenças e semelhanças, tentando ver o que há de único em cada um deles. Quantas imagens há numa peça de teatro, numa poesia, numa escultura, em nossa memória?”
Não é muito comum termos fotógrafos que também escrevam sobre questões do mundo das imagens. Como surgiu a ideia para escrever Salto no escuro?
Tuca Vieira: Eu percebi que a transformação gigantesca que aconteceu no modo de se produzir imagens nos últimos 20 anos teve consequências muito grandes não apenas para a indústria e para a difusão da fotografia, mas também para o próprio ofício do fotógrafo. A digitalização foi responsável por uma imensa popularização da fotografia, e colocou em xeque o papel do fotógrafo como principal produtor de imagens fotográficas. Aquele profissional, que até então detinha com exclusividade o domínio da técnica e o acesso ao equipamento de qualidade, perdeu esse monopólio. Diante disso, fiz a mim mesmo a pergunta: o que significa ser fotógrafo nos dias de hoje?
Para mim, ser fotógrafo significa não apenas ter a capacidade técnica de produzir imagens, mas também provocar, junto com a imagem oferecida, uma reflexão sobre o próprio ato de se produzir imagens. É isso o que torna a fotografia de um fotógrafo diferente das imagens produzidas apenas com a finalidade de comunicação imediata entre as pessoas. O fotógrafo (Vilém Flusser já falava disso nos anos 80), paradoxalmente, é aquele que não se deixa seduzir pelos encantos da fotografia. Em outras palavras, é aquele que tem a responsabilidade de produzir uma imagem crítica.
Senti a necessidade de refletir melhor sobre essas questões, me afastei um pouco do fazer fotográfico propriamente dito e resolvi voltar a estudar. Mas fiz isso justamente para entender melhor o que estava acontecendo no mundo das imagens e com a atividade a que me dediquei por 30 anos, como quem toma distância para ter uma ideia mais completa do quadro. Com o tempo, acabei achando esse lugar de trânsito, entre a câmera e a escrita, entre a rua e a biblioteca, entre a imagem e a palavra, e quero acreditar que essas coisas são complementares. Tudo isso acabou resultando neste livro, fruto da pesquisa que venho desenvolvendo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Navegar, mapear e imaginar cidades e mundos são pontos/temas que aparecem em vários ensaios do livro. Você os considera elementos-chave da sua fotografia também?
TV: Sem dúvida. O Salto no escuro surge logo depois de eu ter realizado o trabalho que se chama Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores, recentemente publicado, onde essas questões aparecem com clareza. Eu percebi que, para além das questões práticas, as ideias de mapeamento, navegação e localização implicam uma postura, uma determinada maneira de estar e agir no mundo.
O livro inclusive tem como subtítulo Leituras do espaço contemporâneo. Ele se refere tanto às leituras que eu faço de obras da literatura e das artes visuais que tocam nesse tema, quanto às leituras que os próprios autores citados fazem do espaço ao redor. Em todo caso, o livro procura levantar essa possibilidade de “ler o espaço”. E o que são o mapeamento e a navegação senão formas de leitura do espaço?
Tudo isso se torna complexo e relevante no mundo contemporâneo, com todo o novo território virtual, os novos espaços de circulação do dinheiro, o gigantismo das megalópoles, os deslocamentos instantâneos, as ferramentas online de geolocalização e mapeamento. Umas das contradições que eu trago no livro é que o mundo nunca foi tão bem mapeado, ao mesmo tempo em que nós nunca estivemos tão inseguros de nosso lugar no meio disso tudo. Procuro mostrar que isso tem implicações sociais e políticas importantes, e faço um alerta no sentido de recuperarmos uma capacidade de mapeamento que parece perdida. Se eu pudesse resumir a preocupação do livro numa só pergunta, seria: onde estamos?
Cinema, poesia, videogames, fotografia, land art, cartografia. A profusão de abordagens e temas abordados nos ensaios é vasta e muito variada. Você vê isso como uma impossibilidade de se explorar uma visão única e “pura” para uma teoria da imagem contemporânea?
TV: Sim. Mas a questão não está exatamente em mostrar diversas fontes para demonstrar os limites de uma determinada teoria da imagem. O problema está justamente em perseguir uma teoria universal, como se fosse possível estabelecer regras que serão obedecidas por todas as imagens. Temos que lembrar que as imagens têm algo de dionisíaco, de erótico, é através dos olhos que nos chegam estímulos poderosos e imaginativos. É um universo que nos aproxima daquilo que ainda temos de selvagem. É difícil estabelecer regras para isso.
Nesse ponto, talvez seja útil diferenciarmos imagem e fotografia. Às vezes a gente esquece que a fotografia é apenas um dos muitos modos de se produzir imagens, e um dos mais recentes historicamente. E como invento, como um produto cultural dotado de certa história e submetido a certo uso, ela pode ser fonte inesgotável de estudo. No livro, eu tento confrontar o modo de produção fotográfico com esses outros, exploro diferenças e semelhanças, tentando ver o que há de único em cada um deles. Quantas imagens há numa peça de teatro, numa poesia, numa escultura, em nossa memória?
Então não me preocupei exatamente com uma teoria da imagem. Essas referências todas vieram de artistas e obras que eu admiro e que fui colecionando ao longo do tempo. Há mesmo algo de pessoal nesse livro, sempre quis escrever sobre esses temas do ponto de vista do fotógrafo. Eu tenho consciência de que não tenho as ferramentas teóricas de alguém que dedicou a vida toda a estudar isso, mas achei que a minha experiência de fotógrafo poderia ser algo que esses autores não possuem. É essa a contribuição que eu posso dar para o debate, trazendo a experiência de quem já esteve do lado de cá da câmera. Quando eu vejo a obra de Atget, de Militão, de Marc Ferrez ou do casal Becher, por exemplo, consigo entender boa parte das inquietações e das alegrias desses fotógrafos.
O seu livro trata de imagens. Por que a decisão de não utilizar nenhuma imagem em todo livro, mas deixar “reservado” o espaço a ser ocupado por elas na diagramação do livro, inclusive com a legenda?
TV: A professora Giselle Beiguelman chamou isso de “imagens ausentes”, e acho que ela toca no ponto certo. A principal razão é que o livro pretende ser um convite à imaginação, lembrando que imagem e imaginação são palavras próximas. Você pode olhar para aqueles retângulos vazios e preenchê-los com o auxílio das legendas, que estão ali justamente para provocar a imaginação. Algumas dessas imagens realmente existem, outras não. Outra razão é que o livro também fala do excesso de imagens no mundo de hoje e, como tento mostrar, essa avalanche de estímulos visuais leva a uma espécie de cegueira, não pela escuridão, mas pela claridade, como numa fotografia superexposta.
Há também um dado objetivo nesta escolha. Seria impossível fazer um livro cheio de ilustrações, que ficaria muito caro e inviabilizaria a publicação. Em todo caso, fiquei contente com o resultado, e espero que os leitores não devolvam o livro achando que está com defeito.
Os ensaios de Salto no escuro são divididos em quatros blocos: “Novos espaços”, “Mapas, Territórios”, “Arte e mapeamento” e “A cidade como laboratório”. O que o levou a definir e explorar esses grandes temas?
TV: É um livro de ensaios, mas esses ensaios são complementares, se contaminam, conversam entre si. Há um número grande de notas de rodapé, algumas enormes, que remetem umas às outras. Quis fazer um livro que não fosse linear, que pudesse ser lido a partir do meio, de trás pra frente, com interrupções, hipertextos, idas e voltas. É como se as partes e o índice fossem instrumentos de navegacão, e o próprio livro um território à espera de ser mapeado pelo leitor. Não por acaso, o designer Lucas Kröeff e eu recorremos ao O jogo da amarelinha, do Julio Cortázar, como inspiração para a estrutura do livro.
Na primeira parte eu apresento um problema, que é a dificuldade que temos hoje de fazer a leitura desse espaço contemporâneo, fragmentado, veloz, complexo, justaposto, e falo da importância de fazer isso, inclusive com implicações políticas e sociais. Na segunda parte, tento mostrar como a ideia de mapeamento pode nos ajudar nessa tarefa, e como ela difere de outras técnicas de localização, como o próprio mapa e a perspectiva. Na terceira parte, vou buscar no universo das artes (literatura, pintura, fotografia, cinema) exemplos de obras que enfrentaram esse problema espacial e que podem nos apontar caminhos – lembremos que a arte é o território da imaginação, onde podemos encontrar respostas originais, poéticas e ousadas diante de problemas aparentemente sem solução. Na última parte, defendo a ideia de que uma megacidade contemporânea, como São Paulo, é o laboratório ideal para qualquer experimento de mapeamento. Ou seja, se formos capazes de mapear um território tão vasto como esse, talvez sejamos capazes de nos localizar com mais precisão nesse mundo complexo.
Nas décadas de 1970 e 1980, o filósofo francês Jean Baudrillard teorizava sobre nossas relações com imagens utilizando conceitos como o hiper-real e o simulacro para discutir a relação entre realidade, símbolos e sociedade. Você acredita que Baudrillard pode ser uma boa chave para olharmos o mundo de hoje?
TV: Baudrillard fez bastante barulho no final do século passado, com as teorias do simulacro, do hiper-realismo, da “tela total”, e depois foi meio esquecido. Era uma celebridade. Lembro que ele frequentava as páginas de jornal, perguntavam a ele sobre tudo: a internet, a Guerra do Golfo, o 11 de Setembro.
Na minha opinião, o pensamento dele, como também de boa parte dos teóricos do pós-modernismo (Jameson, Harvey, Lyotard) permanece bastante vivo. O simulacro e a hiper-realidade são ferramentas preciosas para analisarmos o estado da imagem no século 21. Diria até que houve um aprofundamento na distância entre realidade e aparência que ele identificou no início dos anos 80. Se, naquela época, ainda havia formas de resistência à transformação de tudo em imagens vazias de sentido, hoje o mundo virtual é aceito com uma naturalidade espantosa. O simulacro não é apenas mais uma estratégia de sedução ligada ao consumo ou à publicidade – ele tomou conta de tudo o que nos rodeia. Chegamos a um ponto perigoso, onde preferimos as imagens falseadas no computador, o futebol do videogame, os amigos virtuais, as fakenews, as fotos do Google Street View, do que as coisas reais às quais isso tudo se referem. A imagem agora se desprende definitivamente de qualquer referente e ganha vida própria. O problema é que, manipulando as imagens, fica muito mais fácil subverter a realidade. Nesse sentido, podemos entender o simulacro de Baudrillard como o equivalente, no mundo das imagens, das ideias de pós-verdade e de negacionismo que ameaçam o mundo.
Isso tudo pode parecer muito teórico, muito abstrato, mas, para mim, vai ficando cada vez mais claro que, ter consciência dessas coisas, mesmo que adquirida pela prática e pela experiência, será fundamental para quem quiser produzir imagens que nos ajudem a entender melhor o mundo em que vivemos. ///
Salto no escuro
de Tuca Vieira
n-1 edições
Tags: Ensaios sobre fotografia, filosofia da imagem, livro