Entrevista: Christoph Wiesner, novo diretor do Encontros de Arles, fala sobre os rumos do festival, que começa hoje
Publicado em: 5 de julho de 2021Começa hoje em Arles, no sul da França, a 52ª edição do festival Encontros da Fotografia, um dos maiores eventos do gênero no mundo. O cancelamento da edição de 2020 por conta da pandemia da covid-19 coincidiu com a troca do diretor do festival, agora nas mãos do franco-alemão Christoph Wiesner, que deixou a direção artística da Paris Photo para assumir o festival de Arles 2021. A curadora e pesquisadora Marcella Marer conversou com Wiesner alguns dias antes da abertura do evento sobre os engajamentos do festival, o diálogo da fotografia com práticas artísticas híbridas e as relações institucionais envolvidas nos desafios em assumir a direção do evento, em meio a um contexto que exige mudanças.
Você deixa a Paris Photo com Zanele Muholi como imagem promocional da feira e chega ao Encontro de Arles com Smith como imagem principal do festival. Além disso, você apresenta o festival afirmando que “a urgência do presente exige acima de tudo um compromisso”. Quais são os seus compromissos como novo diretor do festival?
Christoph Wiesner: Ah! É verdade, eu não tinha pensado nisso sobre as duas imagens. Trata-se da importância de ter um gesto forte. Nós estamos aqui por duas razões: pelos artistas fotógrafos e pelo público, junto com todos que estão em volta. O mais importante é que a programação do festival esteja ao lado dos artistas. Quando eu cheguei já existia uma programação para 2020. Mas como foi uma edição cancelada, eu deveria analisar o que parecia importante de manter e o que eu poderia adicionar de minha parte.
Eu já conheço Smith há bastante tempo, antes como Dorothée Smith e agora como Smith apenas. Estivemos juntos em alguns júris e eu sempre gostei do seu olhar e de suas fotografias. Quando eu conheci o seu projeto [Désidération], ficou evidente a sua relação com o festival, pois ele também trata de uma forma de renascimento. É isso que vemos no cartaz do festival: uma abertura para algo que conhecemos ou não, pouco importa. É um grande começo. Uma abertura que nos convida a pensar em outras coisas, a refletir diferentemente. Smith faz uma relação com o cosmos, mas podemos entender como uma metáfora ampla.
Nesse sentido, é muito simbólico que você tenha citado O artigo dos vaga-lumes, do Pier Paolo Pasolini, no seu texto de lançamento da edição de 2021, texto que também inspirou Georges Didi-Huberman.
CW: Sim, não podemos esquecer desse livro do Pasolini. Somos todos nós meros vaga-lumes. Eu não tinha feito essa relação, mas se olharmos a configuração do festival, que está espalhado por toda a cidade, é como as luzinhas dos vaga-lumes, que se acendem por todos os lados. Evidentemente, ele fala de um engajamento político contra a grande luz do poder central, que na época de sua escrita era o fascismo. O interessante é que temos muitas vozes no festival e, como são todas muito distintas, ocorre um certo tipo de polifonia.
De fato, nesta edição, percebe-se uma grande diversidade, com uma expressiva presença feminina e LGBTQIA+. Essa será, à partir de agora, uma marca do festival ?
CW: Dentro da programação principal do festival temos dez exposições que já estavam previstas na edição anterior, e penso que elas respondem questões da nossa época. Nós estamos vendo uma tomada de consciência muito forte com relação às minorias, o que é, na verdade, um assunto muito recente. Sempre houve reivindicação, mas nunca com uma tomada de consciência dessa forma global. Os artistas são como amplificadores do que se passa no mundo, então esse direcionamento é quase que lógico.
Com relação à presença das mulheres, é uma questão que sempre me interessou. É uma luta real para dar a mesma representatividade dos homens e eu quero tentar seguir nessa linha. Para o próximo ano estamos trabalhando numa programação para reconhecimento das artistas mulheres. Junto com a Kering [um dos grandes patrocinadores do festival], temos um prêmio para a fotografia que se chama Women in Motion [Mulheres em movimento], e que ano passado foi dado à Sabine Weiss, uma grande figura da fotografia que vai fazer 96 anos e está presente nesta edição do festival. Esse ano o prêmio vai para Liz Johnson Artur.
Paralelamente, temos o Women in Motion LAB [LAB Mulheres em movimento], um programa de pesquisa que produziu o livro Uma história mundial das mulheres fotógrafas e que deverá ter uma tradução para o inglês em breve. Nós continuamos a trabalhar nesse projeto sobre as mulheres que foram invisibilizadas na sua carreira. Vou dar apenas uma pista, mas não vou dizer o nome: é possível que a gente tenha uma grande fotojornalista que não teve um reconhecimento digno do seu trabalho. O fato de retornar aos arquivos nos permite articular uma outra narrativa, que faz com que olhemos as imagens de uma maneira diferente e, finalmente, façamos as questões avançarem. É interessante que as imagens por si só sejam muito importantes, mas a maneira como nós as organizamos permite percebê-las diferentemente. Não se trata de refazer a história, mas de revisar a maneira como a contamos.
Esse ano também vemos uma maior quantidade de jovens artistas e curadores, muitos vindos de países não europeus.
CW: A minha ideia para o festival é poder desenvolver parcerias no modelo como fizemos com a China e a Índia, por exemplo. Com o Festival Jimei temos a possibilidade de enviar quatro exposições para lá e de receber o ganhador do prêmio Descobertas. Vamos fazer a mesma parceria com o Festival Serendipity, de Goa, na Índia. Já temos o vencedor, que está trabalhando em seu projeto para se apresentá-lo no nosso festival de 2022. A ideia é ter outros projetos complementares como esses, e que não sejam isolados, colocados numa “ala exótica”, mas que façam parte de todo o contexto. A América Latina é uma grande região, que ainda temos o desafio de dar uma maior visibilidade, mesmo que como brasileiros vocês tenham maior destaque que outros países menores da região.
Percebi que nessa primeira edição você não é o curador de nenhuma exposição em particular.
CW: Eu farei sistematicamente nas próximas edições, mas nesse ano já tinha muita coisa a fazer. Algumas exposições não têm exatamente uma curadoria e eu acompanho com o meu olhar as trocas que acontecem durante as suas concepções e também participo das montagens. Eu considero que se é curador quando se desenvolve o projeto inteiramente. O Sam Stourdzé, antigo diretor do festival, realizou projetos que ele próprio pesquisou, como por exemplo a exposição da revista Variétés. Ele descobriu um arquivo com cópias originais dessa revista do período entre-guerras e se aprofundou nessa pesquisa. Eu não fiz esse tipo de projeto esse ano, veremos nas próximas edições. Mas isso, para mim, não é uma obrigação.
Você tem uma experiência de 18 anos no mercado da arte contemporânea, em galerias. Veremos, a partir da sua direção, um festival que dialoga mais com a arte contemporânea, envolvendo outras práticas artísticas?
CW: Sim, isso faz parte do que me interessa. É o caso de Smith, por exemplo, que dialoga com outras práticas, com a performance e faz uma transversalidade com o coletivo Diplomates, que constrói as estruturas e pensa com Smith toda a cenografia da sua instalação. É algo que quero continuar a trabalhar. Para o próximo ano tenho algumas ideias nesse sentido. Arles está localizada no meio de uma região em que acontecem outros grandes eventos que envolvem diversas disciplinas, então é interessante ver a possibilidade de construir algo com eles. Só não será de forma sistemática, porque não faria sentido.
Nos últimos cinco anos você foi o diretor artístico da feira de fotografia Paris Photo. De acordo com a sua experiência, quais seriam os principais desafios que a fotografia enfrenta no mercado da arte?
CW: Para começar, já se tem uma primeira etapa importante cumprida, que é um reconhecimento da fotografia muito maior do que antigamente. Depois, a fotografia é multiplicável, o que evidentemente influencia no seu preço. Mas o importante é o real reconhecimento da fotografia como meio já há algum tempo, talvez desde quando a Paris Photo foi criada em 1997, pois na Europa não havia outra feira de fotografia. O Jean-Luc Monterosso, fundador da MEP [Casa Europeia da Fotografia], dizia na época que a fotografia já tinha atingido uma posição institucional e o que ainda faltava era conseguir um lugar no mercado da arte. Ela conseguiu esse lugar, de forma progressiva. Teve um momento da história que foi mais difícil. No início dos anos 1990 a fotografia não tinha o mesmo status que outros meios. Agora não se questiona mais se a fotografia é considerada arte ou não. Muitos artistas usam esse meio como qualquer outro. Não estou falando aqui do fotojornalismo, pois isso é outra categoria, mesmo se vemos que a prática da fotografia, dentro do campo artístico, é muitas vezes inspirada pelo fotojornalismo, sobretudo na forma de construir uma narrativa. Tem fotógrafos que trabalham no campo do fotojornalismo e também no campo artístico. O Mathias Bruggmann, por exemplo, que ganhou o Prix Elysée [edição 2016-2018], é repórter fotográfico e também expõe em galeria. Trata- se de uma outra forma de narrar a história, através de imagens com um peso enorme, mas que têm uma continuidade na maneira com que se relacionam.
Quais são as principais diferenças entre o mercado da arte (galerias e feiras de fotografia) e um festival de fotografia, que não tem um objetivo direto de comercializar fotografias, mas que também depende financeiramente da receita de bilheteria e de patrocinadores ?
CW: Eu penso que o mercado e os festivais são complementares, na verdade. A diferença está na natureza dos projetos expostos. Para alguns projetos que apresentamos e queremos vender, o artista tem que ter um certo “renome” para podermos vender a um certo preço. Mas num festival temos uma liberdade maior de expor artistas que não são conhecidos, o que também é um pouco do nosso papel. Se fizermos um paralelo com a arte contemporânea, nós somos como as bienais ou os centros de arte. Se eu sou galerista e exponho alguém completamente desconhecido e o mostro sozinho, vai ser complicado. Nós podemos fazer isso, mas precisamos chegar nos pequenos nichos. Esse ano temos a exposição sobre a revolução sudanesa, com oito jovens fotógrafos. Apenas dois deles são profissionais, com vivência internacional. Os outros são desconhecidos, que começaram a fazer fotografia há pouco tempo. Num festival podemos mostrar esse tipo de projeto, mas seria mais complicado num contexto de feira. Esse é um extremo. Outro extremo é a performance, que é difícil de vender, assim como uma instalação muito complexa. Por exemplo, a instalação de Smith, em que o público entra através de uma passagem montada especificamente para a sua exposição, podemos trazer para dentro de um festival. É uma obra que poderíamos mostrar num centro de arte ou num museu também, mas numa feira é mais complicado. Ou então podemos apresentar projetos com dimensões especiais, mais complexos, mas que estão diretamente ligados aos seus custos. Ou seja: é a complexidade de apresentar versus a probabilidade de poder vender a peça. Nessa questão, tem- se mais liberdade num festival. Por isso comentei que podemos vir a fazer colaborações com outras instituições nos próximos anos. Agora, eu não estou mais diretamente ligado às vendas, em que quando não se vende, é uma catástrofe. O que é uma grande sorte!
Na sua opinião, qual é a pertinência dos festivais de fotografia, para além do público ligado à fotografia?
CW: A base da fotografia é o real. Nós podemos manipular, fazer fotos abstratas, etc. Mas de uma forma geral, ela parte do real. Um fator importante é a acessibilidade do meio. Quase todo mundo tem uma câmera no bolso, no seu telefone celular. Fora o acesso através das redes sociais. Se há um meio que virou planetário é a fotografia. Outro ponto é o contexto. O Encontros tem mais de 50 anos, é reconhecido internacionalmente e se somarmos aos acontecimentos recentes na cidade de Arles, com a inauguração da Luma [um “campus criativo” de arte contemporânea, de 11 hectares], o público tende a progressivamente se ampliar. Hoje, entre os dois públicos, o diretamente ligado à fotografia e o interessado na arte contemporânea, não temos mais do que 30% que se interessam igualmente pelos dois universos.
Mas a ideia é que esse número aumente, o que acontece na medida em que se incluem práticas mistas. Muitos fotógrafos viram artistas e vice-versa, então surge essa espécie de porosidade de disciplinas, o que influencia bastante no interesse do público.
E esse público já não é pequeno, o festival chegou a atrair 145.000 pessoas na sua última edição de 2019.
CW: Por sorte, esse ano o festival pôde ser mantido. Foi muito complicado os últimos três meses, porque antes disso não sabíamos se poderíamos manter o festival. Não era uma questão só nossa, mas todos os grandes eventos. Agora sabemos que podemos fazer. Tivemos o suporte necessário que nos possibilitou manter o festival. Sabemos que, pelo menos em termos de Europa, as pessoas conseguem se movimentar e viajar. De todo modo, nós pensamos o festival esse ano para estar mais concentrado no centro da cidade. Foi uma das minhas preocupações, principalmente com relação à cena emergente. O prêmio Descobertas Louis Roederer nos outros anos era no Ground Control [ galpões desativados próximo à estação de trem da cidade ] e pensei que o mínimo que eu poderia fazer era trazê-lo para o meio da cidade. Então esse ano será exibido atrás da Praça do Forum, na Igreja dos Frères Précheurs. E também o Photo Slam, que será no Teatro Antigo. Tudo isso foi pensado para se adaptar ao tamanho do festival. É importante também se organizar no nível financeiro, pois nós nos preparamos em relação ao número de ingressos vendidos. Nós dependemos de 75% da bilheteria do festival, de uns 20% de parceiros e mecenas e o restante é de suporte local. Foi necessário ajustar a programação em função do que imaginamos como público potencial que virá ao festiva. Redimensionamos o festival, porém mantendo o que é mais forte. Ainda que esse ano seja mais concentrado, temos uma bela programação.
Presumo que você esteja contente com o resultado.
CW: Sim, muito contente! ///
Christoph Wiesner integrou, em 1997, o time da galeria Esther Schipper, em Berlim, deixando o posto de diretor para ingressar na galeria Yvon Lambert, em Paris, em 2012. Nos últimos cinco anos atuou como diretor artístico da feira de fotografia Paris Photo. Em setembro de 2020 foi nomeado diretor do festival Encontros da Fotografia – Arles.
Marcella Marer é mestranda em Artes e Linguagens na EHESS, Paris. Atua como pesquisadora e curadora, contribuindo com instituições nacionais e internacionais e com projetos de artistas visuais. Colaborou com os festivais FotoRIO, Paraty em Foco, Valongo e ZUM.
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