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Depoimento: Claudia Andujar e sua relação com os Yanomami e a floresta

Claudia Andujar Publicado em: 19 de março de 2019

Autorretrato, foto de Claudia Andujar, Catrimani, RR, 1974

Era de manhã e sabia que de tarde viriam me buscar para me levar de jipe na cidadezinha de Caracaraí. Primeira viagem por terra de volta ao outro mundo, o mundo tecnológico e com compromissos diferentes. O mundo no qual nasci e cresci: onde aprendi que para ser respeitada tinha que me impor como pessoa sorridente, com a cabeça limpa, otimista.

Não me despedi formalmente porque não existe “até logo” entre os índios: e, se existisse, também não iria me despedir de qualquer jeito. Se despedir implica um fim: mas a vida é uma continuação eterna das coisas que se ligam, desligam e ligam de novo. Às vezes de jeitos diferentes. Tem mil maneiras de se separar e se juntar: é um processo molecular. As formas são infinitas, as combinações inúmeras, mas essencialmente sempre tudo continua: é o processo da vida. O mistério da existência.  Vida, onde a morte é só um processo complementar, uma outra forma de continuar. Um processo de transfigurações de momentos em fluxo.

Embrulhei minha rede, saco para dormir, máquina fotográfica, canequinha, remédio para malária, calça blue-jeans, camisetas. Estava tudo pronto para deixar os meses de trabalho entre a família extensa do mundo Yanomami. Os Yanomami, que até pouco pensavam ser o único povo do mundo. Eles, a “gente”, e o resto, os “napë”, os que não são Yanomami. A última coisa que fiz, como tinha feito tantas vezes, foi dar remédio a um doente. Mil novecentos e setenta e quatro, o ano em que teve onze gripes e o sarampo, trazido pelos peões da construção da estrada (Manaus–Caracaraí–Venezuela), e malária que não acaba mais.

E o jipe chegou. Havia três ou quatro índios olhando com curiosidade minha parafernália. Ia embora. Falei pouco, estava emocionada. Lá, estava em casa. Me sentia bem, era como se sempre tivesse estado lá, integrada. Esse pequeno mundo na imensidão do mato amazônico era meu lugar e sempre será. Estou ligada ao índio, à terra, à luta primária. Tudo isso me comove profundamente. Tudo parece essencial. E talvez nem entenda tudo, e não pretendo entender. Nem preciso, basta amar. Talvez sempre procurei a resposta à razão da vida nessa essencialidade. E fui levada para lá, na mata amazônica, por isso. Foi instintivo. À procura de me encontrar.

Me acho nas longas caminhadas pelo mato. Fiz várias. Me lembro do suor pingando do nariz, queimando os olhos. Caminhamos horas. Homem, mulher, criança, criança recém-nascida, nas costas da mãe, macaco da noite agarrado no cabelo da índia, as redes, as panelas, o essencial, tudo caminhava. O homem na frente com arco e flecha para defender a mulher e a criança, ou pronto para qualquer caça. Seguindo a trilha, um caminho estreito, coberto por um tapete de folhas. Igarapés, paus caídos, mil dificuldades, um mato virgem. O mato que para o índio  é como uma cidade para nós. Ele conhece cada cruzamento, supera-os como nós atravessamos as ruas.

Eu me senti cansada, de horas de caminho. E o mato todo, monótono, não enxergava mais. E nós ainda estávamos andando. De repente me desliguei. Sei que estava caminhando, seguindo o outro, colocando um pé em frente do outro, e meus pensamentos foram longe. Me vi criança na Europa. Uma Europa na guerra, uma criança que tenta desesperadamente se ligar a alguém. Amar e ser amada, compreendida, era o desejo de minha infância. E não consegui. Fui para Nova York e procurei a mesma coisa, ainda criança. Gostava de passar horas no campo, nos parques, no cemitério com árvores, porque eram lugares quietos e solitários. Passava horas em igrejas vazias conversando sozinha. Me senti só na grande metrópole.

Mas ainda estava andando no mato amazônico com os índios, uma marcha que virou automática. E senti que a vida estava tomando conta de mim. Era uma caminhada que limpava. Limpava tudo que era dentro de mim. O calor, o suor, a fadiga, o ruído surdo dos passos. Me senti integrada comigo, com o mato, não importava onde ia, quantas horas caminhava. Sabia que me tinha encontrado. Me encontrei no senso de ter encontrado o essencial. São momentos raros que a gente sente às vezes, que resumem tudo. E a gente se sente integral. Dura pouco, são momentos só. E me lembro que suava tanto nesta caminhada, que era toda molhada. A sede me apertou. Quis parar e beber, mas não podia porque era apenas uma entre outros acostumados a andar como se anda numa grande avenida. E se parasse e ficasse para trás, o mato iria me engolir. Então andava e me perdia nos pensamentos. Essa minha primeira viagem no mato durou uns cinco dias. Os índios foram caçar e pescar. O destino geográfico da viagem me era desconhecido, só sabia que era uma procura de comida e queria entender o que significava isso. Tinha dias em que andávamos horas, outros, pouco. O que me levou era o desejo de entender essa busca  pelo alimento tão essencial nessa sociedade. Cada tarde, nós limpávamos o mato para acomodar para a noite. Pendurávamos as  redes entre as árvores, cobrindo-as com um teto de folhas de sororoca (banana selvagem). A noite chegava cedo. No mato onde o sol penetra pouco, a escuridão da noite é total. Pelas sete horas, todos estavam na rede, e só se enxergavam as luzes das fogueiras e dos vaga-lumes. Deitada, escutava as risadas, as conversas dos índios e os barulhos do mato. Porque o mato raramente é silencioso. Dormia e acordava.

O índio de vez em quando levantava para alimentar o fogo. As noites eram compridas, os barulhos misteriosos. Às vezes me dava medo e ficava escutando o barulho dos passos de bichos ou um pássaro noturno a cantar. Às vezes, ouvia um jato bem longe em cima do mato passar e pensava no passageiro na rota Nova York–Rio–São Paulo, tomando seu último uísque que a aeromoça servia. Me sentia entre dois mundos, um bem longe em tempos e mentalidade, e um outro perto, que queria pegar entre as mãos e entender.

Na época não me importava não entender a língua dos Yanomami.  Nós nos entendíamos com gestos e mímica. As respostas, encontrava no olhar. Não sentia a falta de troca de palavras. Queria observar, absorver, para recriar em forma de imagens o que sentia. Talvez o diálogo iria até interferir. Só mais tarde, quando acabei de fotografar, eu procurei a comunicação verbal. Fotografar é processo de descobrir o outro e, através do outro, si mesmo. No fundo, por isso o fotógrafo busca e descobre novos mundos, mas acaba sempre mostrando o que tem dentro de si. Minha busca da interligação homem-terra estava dentro de mim antes de ter ido à Amazônia, e as caminhadas no mato só serviam como catalisadores para reforçar o que estava fundamentalmente lá.

O medo da morte me perseguiu muitos anos. É um pensamento que trouxe da infância: sem dúvida, sentimento de culpa. Durante a guerra, meu mundo foi arrasado de um dia para o outro. Fiquei viva enquanto os outros morreram. Morreram meu pai, morreu minha avó, minhas amiguinhas e um amiguinho que me emocionou e me acordou dos  sonhos da infância.

Os anos passaram. Era madrugada: exausta de dores, apoiei a nuca no travesseiro com gelo na testa. Me senti deslizar no limbo. Estava passando muito mal com a malária. Descobri que a dor era mais terrível que a morte. Meu único desejo era que a dor parasse. E um dia parou: perdi o medo da morte. As folhas podres no solo da floresta, as caminhadas no mato fechado, o encontro comigo nos momentos raros que a vida me propôs num momento de entrega, é o que está comigo, está no meu trabalho. Trabalho que pode se resumir na fotografia, no tratar de um doente, na comunicação, em mil coisas, todas interligadas, porque sou sempre a mesma pessoa com a mesma procura.

O jipe chegou, me levou. Durante a viagem para Caracaraí, me acalmei, sabia que o que tinha feito era certo. Certo para os demais que deixei para trás e certo para mim.///

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Texto publicado originalmente no jornal Ex-, n. 14, set. 1975 e reproduzido no catálogo da exposição Claudia Andujar: A luta Yanomami

Mais informações sobre a exposição aqui: expoclaudiaandujar.ims.com.br

Leia matéria sobre os bastidores da exposição Claudia Andujar: A luta Yanomami

 

 

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