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Olhares, costuras e segredos dos sagrados afro-brasileiros

Hanayrá Negreiros Publicado em: 17 de março de 2020

Festa de Iemanjá em Salvador, de Amanda Oliveira, 2015. Cortesia da artista.

Axó é uma palavra de origem iorubá (asò) que nos ajuda a compreender o significado de vestir as corporeidades que rezam nos múltiplos candomblés no Brasil. Em uma religião pautada por ritos de passagem e iniciações, fundamentada pelas bases do segredo e da oralidade, axó pode significar vestimenta, tecido ou roupa. E contempla o uso de uma indumentária que significa e ao mesmo tempo comunica sobre mitologias, histórias, memórias e estéticas desenvolvidas sobretudo por mulheres negras ainda durante o período colonial, permanecendo através das maneiras de ser e estar em diásporas no século 21.

As vestimentas usadas por adeptos dos candomblés nos contam sobre os diversos graus de senioridade iniciática da religião, posições hierárquicas, memórias da comunidade e diversas influências africanas na formação da identidade do negro no Brasil. É através da roupa que reconhecemos um adepto. É a partir dela, também, que podemos muitas vezes saber o santo de devoção, ou se a pessoa que a veste é iniciada ou se está apenas começando na religião. Assim, a indumentária afro-religiosa dos candomblés pode ser entendida como parte constitutiva do rito.

 

Mãe Riso e adeptas do terreiro vestidas com “traje de baiana” composto por torço (turbante), bata, pano da costa e saias rodadas em início de ritual aberto, antes da apresentação das filhas recém iniciadas em seu terreiro, de José Medeiros, 1951. Acervo Instituto Moreira Salles.

Olhares brancos

Ao visitarmos o acervo do IMS, nos deparamos com uma produção fotográfica que, dentre muitas histórias e memórias, também nos remete à questão da indumentária afro-brasileira. O ano era 1951 e O Cruzeiro, uma das revistas de maior circulação no país, estava prestes a publicar uma matéria que ficaria conhecida em todo território nacional: “As noivas dos deuses sanguinários”. Mesclando sensacionalismo e desinformação acerca das liturgias e rituais do candomblé, as 38 imagens feitas por José Medeiros (cuidadosamente escolhidas para ilustrar o texto de Arlindo Silva) mostravam o que seriam os momentos mais secretos da religião, nunca antes vistos e registrados por um não iniciado.

A matéria seria uma “resposta” a uma reportagem anterior feita pela revista Paris Match, datada de 12 de maio de 1951 e intitulada Les Possédées de Bahia (As Possuídas da Bahia). Escrita e fotografada pelo cineasta francês Henri-Georges Clouzot, em um misto de “fascinação”, curiosidade e exotismo, também acaba por registrar elementos que seriam secretos em um terreiro de candomblé baiano. A notícia de que um estrangeiro teria registrado momentos secretos da religião afro-brasileira – que, desde seus alicerces iniciais datados do final do século 19, sofre com especulações racistas e leituras eurocêntricas – seria o pontapé inicial para que a revista O Cruzeiro elaborasse uma resposta brasileira às opiniões do diretor francês.

 

Filhas de santo vestidas e adornadas com “traje de baiana” em saída de procissão para saudar Iemanjá na década de 1950, foto de José Medeiros do livro Candomblé, 1957. Acervo Instituto Moreira Salles.

Os acontecimentos seguintes, como narrados na pesquisa de Fernando Tacca, que se debruçou sobre a repercussão de ambas as reportagens, contam sobre uma série de problemas que teriam envolvido sobretudo o templo afro-religioso que permitiu a documentação de seus ritos. As lideranças das religiões de matrizes africanas no Brasil, assim como acadêmicos e artistas envolvidos com religiosidades negras, rechaçaram tanto a matéria de Clouzot, como também a do Cruzeiro, considerando as duas reportagens inoportunas e incorretas. Se hoje (parafraseando o compositor, cantor e estudioso das culturas africanas e afro-brasileiras Nei Lopes) os registros veiculados tanto pela Paris Match como pela publicação nacional poderiam ser considerados equivocados e preconceituosos, na época em que foram lançados esses escritos já sofreram uma profusão de críticas. Ao registrar partes secretas e nunca antes reveladas aos que não fazem parte do ritual, as fotografias – por mais que possam servir de documentos históricos – acabaram por ferir a liturgia da religião, baseada na preservação do segredo, reforçando estereótipos e visões colonizadoras.

As imagens que mais ganharam destaque na produção de Medeiros foram as “imagens de roncó”, fotografias feitas dentro do quarto onde seriam realizadas as iniciações e rituais secretos, no qual somente pessoas iniciadas e autorizadas pela mãe ou pai de santo podem entrar. Para este texto, busquei possibilidades de reinterpretação do acervo de José Medeiros escolhendo fotografias que não ganharam projeção nacional e que mostram, em sua maioria, momentos abertos das cerimônias dos candomblés, como a saída da comunidade para saudar Iemanjá (divindade das águas salgadas) e o momento público da festa que celebra o processo de iniciação das pessoas já iniciadas.

 

Filhas de santo vestidas e adornadas com “traje de baiana” em saída de procissão para saudar Iemanjá na década de 1950, foto de José Medeiros do livro Candomblé, 1957. Acervo Instituto Moreira Salles.

Em 1957, José Medeiros lança o livro Candomblé, com as imagens do ocorrido no terreiro de Mãe Riso e outras fotos que não foram usadas na matéria da revista, acompanhadas de anotações do fotógrafo. Em 2005 a produção de Medeiros, composta por cerca de 20 mil fotografias, foi incorporada ao acervo do Instituto Moreira Salles. Com isso, em 2009 o livro Candomblé é relançado em uma edição revista e ampliada, com direito a notas do professor do departamento de Antropologia da USP, Vagner Gonçalves da Silva, esclarecendo algumas das confusões feitas por Medeiros no texto de apresentação e em descrições de algumas das imagens.

 

Festa de Iemanjá em Salvador, de Amanda Oliveira, 2016. Cortesia da artista.

Olhares negros

 Para além das discussões acerca de memória, exploração de imagens, corpos e liturgias negras brasileiras, podemos também falar sobre estéticas que se manifestam por meio das “roupas de santo”, as indumentárias litúrgicas vestidas nas cerimônias de candomblé e que nos remetem aos axós mencionados no início desse texto. Mas já que estamos em 2020, é interessante olharmos também para a produção de imagens realizadas em terreiros e ambientes frequentados por adeptos de religiões negras brasileiras, só que agora por meio de olhares negros, muitas vezes também adeptos dessas religiosidades e retratando as suas próprias comunidades. E, nesse sentido, é interessante pensar a respeito do processo criativo que envolve a feitura de tais imagens/memórias. Pois, se ao nos debruçarmos nas imagens feitas por Medeiros notamos desinformação e um modo colonizador de se produzir imagens, em produções recentes percebemos a tessitura de novas narrativas visuais, produzidas por jovens lentes que, de diversas maneiras, contam sobre fé, estéticas negras e senso de comunidade.

Mudando a perspectiva e trazendo para o centro produções fotográficas negras, temos nomes como Amanda Oliveira, Juh Almeida e Roger Cipó como alguns expoentes do fazer fotográfico que se estabelece na busca pela ancestralidade, elaboração de outras narrativas e resgate de memórias e imagens negras.

Nas fotografias de Amanda Oliveira, carioca de nascimento e baiana de criação, notamos a documentação de cotidianos, tipos de fé e fazeres do povo baiano em uma combinação de registros ora feitos em terreiros de candomblé, ora nas celebrações feitas na rua, como nas lavagens do Bonfim e nos festejos de 2 de fevereiro, data nacional para saudar Iemanjá. A saia rodada, uma herança da indumentária européia herdada das sinhás do século 19, porém apropriada e incorporada pelas mulheres negras, pode nos contar por meio do número de fitas e aviamentos costurados na vestimenta se quem a veste já é uma iniciada com muitos anos de religião ou se ainda é uma novata no terreiro.

Assim como as saias, as chamadas joias de axé, como contas rituais e adornos compostos por trançados de palha da costa, nos indicam também as hierarquias dos corpos que as vestem. O mokan (ou mokã) indica que o seu portador é já um iniciado que entra em transe e que possui menos de 7 anos de iniciação. Ou que, em muitas vezes, por mais que já tenha atingido a sua maioridade na religião, ainda não realizou as suas obrigações rituais.

Também baiana, Juh Almeida possui em seu trabalho combinações de pesquisas em cinema e vivências negras, retratando corporalidades e estéticas afro-brasileiras e africanas. Em sua série intitulada Continuidade, Juh retrata Kaialana Ada e Maria vestidas de branco, a cor primordial para os candomblecistas, referência e reverência a Oxalá – divindade que veste apenas o branco e o prata, aceitando por vezes o azul claro. Na foto, as duas meninas negras representam o futuro da comunidade de terreiro.

Verônica, vestida com turbante elaborado, bata branca ricamente bordada e colares rituais coloridos, conta sobre a indumentária tradicional de mulheres negras da Bahia, o chamado “traje de baiana”, estética essa mundialmente conhecida e vestida por mulheres que, em sua maioria, possuem alguma ligação com os candomblés e que também exercem, desde os séculos passados, o ofício de baianas vendedoras de acarajé e quituteiras.

O paulista Roger Cipó, que ganhou a segunda parte do seu nome por conta das suas vivências na capoeira, além de fotógrafo é iniciado na religião, fazendo do seu trabalho uma cartografia imagética e afetiva da sua e de outras comunidades tradicionais. Com um olhar que pode ser entendido como “de dentro”, Cipó registra os momentos públicos das cerimônias e realiza ensaios encomendados por adeptos que querem eternizar momentos vividos. Em sua série intitulada AFÉTO, registra relações de proximidade e carinho entre comunidade e divindades, uma resposta aos estereótipos que muitas vezes demonizam as religiões afro-brasileiras.

As vestimentas usadas nas “saídas de santo”, momento no qual os recém iniciados são apresentados à sua comunidade, são motivo de orgulho e árduo trabalho para quem os costura. O axé (energia vital) pode ser notado nos cuidados que precedem a feitura das roupas ritualísticas, já que quem as costura precisa de conhecimento prévio e resguardo religioso para fazê-lo.

Nas imagens de José Medeiros, assim como nas de Amanda Oliveira, Juh Almeida e Roger Cipó, percebemos como estética e religiões negras estão ligadas. As roupas que são usadas dentro e fora dos terreiros, ao mesmo tempo em que adornam, também significam e protegem os corpos que as vestem, disseminando narrativas afro-brasileiras. A exploração da imagem da iniciação de três filhas de santo na Salvador da década de 1950 nos alerta para uma produção de imagem pautada ainda nos moldes do colonialismo. Saltando no tempo, com imagens de jovens fotógrafos negros, vislumbramos a possibilidade de construção de outras narrativas, na qual a história é narrada agora por olhares e memórias ancorados em corpos sobretudo negros. ///

 

Hanayrá Negreiros é mestre em Ciência da Religião (PUC-SP), pesquisadora e educadora independente em moda, história cultural e curadoria.

 

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