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O trivial jamais: retratos da noite paulistana dos anos 1990 por Claudia Guimarães

Paula Sacchetta & Claudia Guimarães Publicado em: 12 de agosto de 2019

 

Andréa De Mayo & Al Capone, 1997, foto de Claudia Guimarães, São Paulo, SP. Retrato para o acervo pessoal da artista.

Uma boa parte das fotos da paulistana Claudia Guimarães foram publicadas durante os anos 1990 em um dos jornais de maior circulação no Brasil: a Folha de S. Paulo. Ali, quebrou tabus e rompeu estereótipos tirando corpos “fora do padrão” do armário. Para além da coluna Noite Ilustrada, assinada pela jornalista Erika Palomino, Claudia fez também fotos de moda, retratando modelos internacionais com poodles gigantes e muita ironia.

Em editoriais de vestidos de noiva para uma revista feminina, colocou homens barbudos e peludos dentro das roupas brancas rendadas, que acabavam por ficar de zíper aberto por conta do tamanho deles. Uma foto que representasse o futuro da moda? Dudu Bertholini, mas sem roupa, afinal, “o futuro da moda para mim não estava em uma roupa, mas naquelas pessoas novas na cena”, conta. Em fotos para um editorial de maquiagem foi, mais uma vez, a única que fotografou um homem. O trivial? Jamais. Claudia nunca topou fazer o básico. Na noite paulistana, registrou sobretudo amigos e gente do seu entorno. As fotos podem chocar os mais conservadores, mas conseguem ser, ao mesmo tempo, leves e afetuosas: ela buscou dar dignidade e força aos fotografados, tirando-os de um lugar sempre super sexualizado e erotizante.

Na exposição Cara, Corpo, Voz!, em cartaz na Casa da Imagem (SP), a curadoria de seus antigos chefes, Erika Palomino e Eder Chiodetto, também chama a atenção. Na mesma parede, fotos de 1995, 1997 e 2018 parecem feitas na mesma ocasião e retratam uma androginia e corpos não binários em diferentes momentos. O título da exposição foi Erika quem deu: ela lembrou de Grace Lesada, uma drag que chegava nas boates à noite e gritava: “meu amor aqui tem cara, corpo, voz”. O bordão daquele tempo trazido para as paredes do museu com as fotos de Claudia soa como um grito de liberdade e resistência nos dias de hoje.

 

Johnny Luxo, 1995, foto de Claudia Guimarães, São Paulo, SP. Foto para o acervo pessoal da artista.

Como você foi parar na fotografia? Pode contar um pouco da sua trajetória?

Claudia Guimarães: Quando eu tinha 17 anos comprei uma câmera, mas não tinha tempo de treinar porque trabalhava e estudava. Então comecei a fotografar o meu entorno, que eram os meus amigos da loja onde eu trabalhava. E à noite eu costumava sair para dançar. Eu só frequentava noites gays, shows de drags e travestis. Tinha uma festa em especial chamada “Enterro dos ossos”, na boate Gents, que eu amava. O mais legal era ficar na rua, em frente à boate. Eu chamava as pessoas para o boteco ao lado e fotografava lá. E como eu não tinha flash, usava só a luz do lugar. Eu mesma revelava, tinha um mini laboratório em casa. Nem imaginava que seria uma profissão, só queria guardar lembranças. Com 18 anos eu entrei na faculdade e comecei a me interessar mais por fotografia. Depois de dois anos tranquei a faculdade e fui morar um ano na França. Lá eu fiz um curso de fotografia e quando voltei fui ser assistente do Edu Brandão e depois da Vânia Toledo. Foi então que a Folha de S. Paulo criou a coluna Noite Ilustrada, assinada pela Erika Palomino. Eles não tinham fotógrafos que quisessem fotografar na madrugada, então o Edu Brandão me indicou. Ele já conhecia minhas fotos e sabia que eu conhecia as noites mais fervidas daqui. Foi então que criei coragem para começar a me chamar de fotógrafa.

 

Dudu Bertholini, 2002, foto de Claudia Guimarães, São Paulo, SP. Retrato para exposição no SPFW.

Nessa exposição, quem são as pessoas que você fotografou, como você as descreveria? É um grupo homogêneo?

CG: Essa exposição tem retratos que fiz há 25 anos até outros mais recentes, desse ano. Talvez seja um grupo homogêneo no sentido de a maioria serem gays ou trans e estarem no movimento da noite e da cena fashion alternativa.

Como você quis retratar essas pessoas? Lembro de você ter falado durante nossa visita à exposição de dignidade e não estigmatização.

CG: Eu sempre quis retratar as pessoas de forma que a imagem falasse mais dos outros do que de mim. Nas minhas primeiras fotos da noite, principalmente depois que eu tive grana para comprar um flash portátil, eu levava um fundo e fazia um mini estúdio na boate ou na rua, na tentativa de deslocar o olhar dos estigmas que acompanhavam as travestis nos anos 1990. Procurei colocar esses corpos em outro lugar, com a preocupação de não supererotizá-los, num lugar de direito e orgulho. Naquele momento, a maioria das imagens de travestis se concentrava no universo pornográfico de consumo de massa. Eu tentei inverter essa ordem.

 

Natasha Dhumont, 1999, foto de Claudia Guimarães, São Paulo, SP.
Retrato para o acervo pessoal da artista.

Foi o que você fez com aquela foto da Miss Brasil Transex, que é toda riscada…

CG: Isso! Fotografei ela para uma matéria sobre jeans. Parecendo uma menininha, com coroa e um buquê de rosas, parecendo uma foto antiga. Tirei de um lugar super sexualizado. Ainda cortei um pouco com um estilete a ampliação e dei uma amassada, para que passasse a sensação de que eu tinha tirado de um álbum de fotografias ou do fundo de uma gaveta, como se fosse uma foto de família mesmo.

Em que sentido suas fotos invocam resistência, sobretudo nos dias de hoje? Corpos fora do padrão, relações afetivas fora do padrão, etc…

CG: Não sei se seria pretensioso dizer que minhas fotos invocam resistência, talvez… Eu sempre fui fora do padrão, então externar isso no que fotografo é muito natural. Ser gay nos anos 1990 era muito foda, a gente tinha que ficar se disfarçando mesmo nos meios ditos “intelectualizados”. Então fotografar corpos e relações afetivas fora do padrão era um meio de afirmar essa existência e também me afirmar como mulher, gay e fotógrafa.

 

Por que você decidiu fotografar essas pessoas, nesse contexto, seguindo essa “tradição” da fotografia da noite paulistana, com Vânia Toledo e tantos outros?

CG: Era o meu meio, sou gay e fotografava as boates que eu frequentava. Não ia especificamente a um lugar fotografar uma comunidade, eu faço parte dessa comunidade. Sempre fui a boates de gays e travestis, das mais chiques às mais obscuras, não gostava de boates só de mulheres, achava super careta. Depois frequentei muito clubes de música eletrônica, que tinha muita gente montada, muitos trans, gays, etc. Legal você ter citado a Vânia, gosto muito dela, do trabalho dela. Fui assistente dela e aprendi muito, mas nós nos encontramos não por afinidade de trabalho e sim por sermos mulheres. Eu havia sido recusada por diversos fotógrafos, inclusive no estúdio Abril, pelo fato de ser mulher. E a Vânia estava exatamente procurando uma assistente mulher, porque sabia como era difícil uma menina começar a fazer assistência.

Como você era recebida ali? Era fácil fotografar a intimidade dessas pessoas ou só te davam o que queriam mostrar? Você fotografou a intimidade delas?

CG: Eu era muito conhecida nessa comunidade específica (trans e da música eletrônica) e eu sempre fui tímida. Então estar com a câmera me aproximava das pessoas. Fotografei muito a intimidade no sentido de estar na casa das pessoas em after hours. Estava ali igual a todos, tomando ecstasy, dançando, rindo, beijando, sendo feliz. A única diferença era que eu tinha uma câmera. Não tinha intenção profissional e muito menos artística nessas fotos. Colecionava álbuns de fotografias, sempre falava que era para me lembrar deles quando ficasse velhinha.

 

Paulo Martinez, 1997, foto de Claudia Guimarães, São Paulo, SP. Foto para o acervo pessoal da artista.

Por que essas fotos só poderiam ser feitas em São Paulo? O que a noite paulistana tem de especial, de diferente?

CG: A noite paulistana é eclética, viva, deliciosa, cheia de gente linda, elegante e sincera. Hoje, pra completar, estamos vendo um movimento de ocupação das ruas com festas e o carnaval mesmo ganhou um tom muito político. Estamos afirmando: estamos aqui e não vamos embora.

Na coluna Noite Ilustrada suas fotos saíam na grande imprensa. Você acha que essas suas fotos que, digamos, quebram tabus e rompem estereótipos, teriam esse mesmo espaço hoje? O que acha? Por que? O que mudou?

CG: A coluna Noite Ilustrada nunca foi vista com bons olhos por outros jornalistas e foi várias vezes criticada dentro do própria Folha, mas resistiu por conta do talento jornalístico da Erika Palomino e porque a direção do jornal a bancou, já que via ali um nicho jornalístico. Foi incrível um jornal como a Folha ter essa coluna, foi muito importante. Mas a Folha sempre foi moderna. Hoje as mídias sociais fazem esse papel, mas sempre precisamos pôr a cara no sol e “performar” diante das câmeras, aparecer cada vez mais, afinal, quanto mais aparecemos, mais resistimos.

Publicar essas pessoas nesse espaço era tirá-las do armário de certa forma? Assim como hoje, expostas em um museu, como na exposição? Qual a importância disso?

CG: Não era só tirar as pessoas do armário, era me tirar do armário também. E não só isso. Quando você fotografa uma travesti que faz show na noite, uma drag que trabalha na porta da boate, artistas da noite, djs, clubbers e coloca uma foto dessas pessoas num jornal como a Folha você legitima, dá força, dá orgulho, dá corpo. Muitas pessoas vinham me falar que seus pais ficavam orgulhosos e aceitavam que os filhos se “montassem” porque saíam na Folha, numa coluna social, como artistas. Hoje estar num museu, ainda mais na Casa da Imagem, que é uma instituição voltada à fotografia, é muito importante também.

 

Ana Claudia Michels & Lola, foto de Claudia Guimarães, São Paulo, SP. Foto para a revista Speed.

Hoje suas fotos podem ser olhadas com um certo saudosismo? Como fotos que marcaram os anos 1990?

CG: Não sei se são fotos que marcaram os anos 1990, mas são fotos que se incluem numa forma de fotografar que vem de uma escola dos anos 1990. Eu acho que o que marcou foi o fato de essas fotos estarem em um grande jornal. As pessoas estavam acostumadas com coluna social, e não com uma coluna de comportamento de noite.

Já te compararam com a Nan Goldin? Ela é referência para você? Quem é referência pra você na fotografia?

CG: As pessoas não eram tão gentis ao me compararem com a Nan Goldin, elas diziam que eu a imitava mesmo. Mas eu não ligava, nunca liguei, porque não é verdade. Eu conheci o trabalho da Nan Goldin em 1993. A coluna é de 1992 e eu já fotografava desde 1990. Conheci em 1993 quando uma amiga que tinha chegado de Nova York me deu de presente um livro dela. Essa minha amiga conhecia minhas fotos e achou que eu iria gostar do trabalho dela. Foi então que todo um mundo novo se abriu para mim, não só com a Nan Goldin, mas com o trabalho de outros fotógrafos contemporâneos a ela da Faculdade de Artes de Boston, como David Armstrong e Philip-Lorca DiCorcia. Comecei a estudar todos eles. Eu não era tão conhecedora de fotografia contemporânea, minhas influências eram Robert Mapplethorpe, Robert Frank e Cartier Bresson, eram esses os livros que eu tinha. Com a Nan Goldin comecei a conhecer toda uma nova escola. Mas não tem como comparar o trabalho dela com o meu, ela é muito foda, o trabalho dela é muito político. Aqueles autorretratos então… Ela fala de feminismo, relações abusivas, solidão, AIDS, morte. O trabalho dela é muito profundo, meu trabalho não é tão fantástico assim. Em 1994 eu fui para a Bienal no Whitney Museum, em Nova York, e vi o trabalho da Nan Goldin mais de perto. Mas o que mais me impressionou foi a série chamada Being and Having, da fotógrafa Catherine Opie, que fez uma série de retratos de homens trans com uma técnica e um formalismo estético muito impressionantes, era muito lindo. Na moda eu tive uma influência muito pontual da fotógrafa inglesa Corine Day. Ela pegou essa escola da Nan Goldin e usou nas fotos de moda, tirou aquele look saudável das modelos dos anos 1980 e inaugurou o look “heroína”.

O que você descobriu desse mundo e dessas pessoas ao fotografá-las de perto? E preconceito? Havia muito? Ainda há?

CG: Sabe que eu achava que esse tema já estava saturado, ultrapassado? Que já tínhamos conquistado direitos que nunca mais seriam tirados? Mas eis que estamos diante de uma onda de moralismo retrógrado no país que mais mata homossexuais no mundo. E então eu penso “como podem fotos que fiz em 1990 ainda chocar?” Só rindo mesmo. E preconceito eu sofri muito, sim, por ser mulher num meio machista. Por ser fotógrafa e não beber da escola formalista de fotografia e por ser gay. Ai, isso tudo é muito chato.

 

Onika Flores, 2018, foto de Claudia Guimarães, São Paulo, SP. Retrato para o acervo pessoal da artista.

E hoje, o que você anda fotografando? Ou quem? E o que mudou nesse mundo especificamente que você fotografa?

CG: Eu continuo fazendo fotos que nem sei ainda para onde são. Me cansei bastante de moda e publicidade e hoje só quero ser artista. Ando fotografando millenials e toda essa nova geração que está aí. Por um lado tem uma grande diferença, sim: a geração dos anos 1990, que abriu caminho para essa geração que está aqui agora, precisava ter o corpo marcado pela mudança. Não bastava ter um nome feminino e um corpo meio andrógino, precisavam das mudanças físicas e corporais. E a Andrea di Maio, por exemplo, morreu em decorrência de complicações dessas mudanças. Hoje existe um meio termo. Nesses corpos não binários, cada um pode ser só o que quiser ser. E meu mestrado [na ECA-USP, com orientação de Dora Longo Bahia] é exatamente sobre isso: parto da ideia de que o gênero não possui um significado fixo nem uma essência absoluta ou imutável. São retratos de pessoas não binárias, corpos “transgêneros”, ou corpos “trans”, que refletem questões de identidade, sexualidade, gênero e orientação sexual por meio da afirmação da performatividade de seus próprios corpos.///

 

Paula Sacchetta é documentarista. Formada em jornalismo pela ECA-USP, escreveu durante algum tempo sobre fotografia para o caderno Aliás, do Estadão, e colaborou com outras publicações da área, além de ter mediado mesas de debate no festival Paraty em Foco.

 

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