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A névoa da guerra: Walter Bosshard, Robert Capa e o conflito sino-japonês

Joaquim Toledo Jr. Publicado em: 17 de dezembro de 2019

Força aérea chinesa (dupla exposição), de Walter Bosshard, anos 1930 © Fotostiftung Schweiz / Archiv für Zeitgeschichte

“Robert Capa, um dos raros mestres da novíssima arte da reportagem fotográfica, cujas fotos da guerra civil espanhola foram um dos principais furos do ano, está agora na China, fotografando outra grande guerra para a Life”, anunciava a edição de 16 de maio de 1938 da revista norte-americana.

Ao contrário das imagens do conflito na Espanha, as fotos enviadas por Capa da cidade de Hankou — a “Chicago chinesa” e então centro militar do país, explicavam as legendas — não mostravam “morte e destruição”, mas a euforia pela primeira vitória militar do generalíssimo (comandante supremo das Forças Armadas) Chiang Kai-shek desde a declaração de guerra ao Japão em 1937, seis anos após a ocupação da Manchúria pelos japoneses em 1931.

Capa da revista Life de 16 de maio de 1938. Reprodução.

A foto da capa, hoje icônica, mostra um jovem soldado chinês em posição de atenção, o rosto rijo de quem aguarda ordens para enfrentar o campo de batalha: “um defensor da China”, diz a chamada. O caráter escultórico, austero e tensamente imóvel do retrato contrasta com o estilo dramático, politicamente romântico, das fotos que o fotógrafo húngaro, então radicado em Paris, tirara do conflito na Espanha.

A fotorreportagem mostrava escoteiros em procissão pelas ruas de Hankou, carregando retratos gigantes de Sun Yat-sen, o pai da revolução republicana de 1911 que encerrara  milênios de dominação imperial na China, morto em 1925 e até hoje um dos principais heróis nacionais do país; mulheres com “pés de lótus”, eufemismo dado à deformação resultante da prática de amarrar os pés de meninas para que se adequassem a padrões de beleza arcaicos, tradição abolida apenas pouco tempo antes; e crianças gritando palavras de ordem da Frente Unida, como ficou conhecido o esforço conjunto de nacionalistas e comunistas, então em trégua provisória, para enfrentar as tropas japonesas. “Lutemos para retomar nosso território!”, “Expulsem os inimigos!”, “O espírito da China é imortal”, exortavam os cartazes.

Crianças com pipas de papel, de Walter Bosshard, 1934 © Fotostiftung Schweiz / Archiv für Zeitgeschichte

No entanto, o entusiasmo com a vitória na batalha de Taierzhuang, se compreensível, era algo exagerado. O governo do Guomintang, partido nacionalista sob o comando de Chiang Kai-shek, estava em retirada, se embrenhando no território chinês em busca de espaço para se reorganizar. Poucos meses antes, navios e aviões japoneses haviam bombardeado Shanghai, episódio imortalizado em Sábado sangrento, fotografia de H. S. Wong, na qual um bebê gravemente ferido chora em meio aos escombros da estação de trem do sul da cidade.

O bombardeio de Shanghai ainda seria ofuscado pela brutalidade da ocupação de Nanquim pelas tropas japonesas. Durante sete semanas, entre dezembro de 1937 e janeiro de 1938, soldados japoneses pilharam a então capital do país, mataram cerca de 50 mil pessoas e estupraram dezenas de milhares de mulheres no que fiou conhecido como o Estupro de Nanquim.

Os editores da Life haviam utilizado o mesmo entusiasmo algo injustificado na edição de 13 de setembro de 1937, na cobertura da batalha por Shanghai. A reportagem sobre A guerra em Shanghai, então território independente que incluía áreas de concessão francesa e inglesa, comemorava a iniciativa dos oficiais chineses em assumir uma estratégia ofensiva, e não meramente defensiva, frente às agressões. “Esquadrões chineses contra-atacaram a partir de 28 de agosto”, diz a reportagem, “mostraram-se eficientes, mas até 3 de setembro não haviam sido capazes de afundar um navio de guerra japonês”.

Uma sequência de seis fotografias do suíço Walter Bosshard, residente na China desde 1931, mostrava escombros de uma aeronave que o governo chinês alegava ser de um bombardeiro Heinkel, de fabricação alemã, pertencente à força aérea japonesa, supostamente derrubado por caças chineses após um ataque à base aérea de Nanquim.

Numa guerra de informação típica dos conflitos modernos, chineses e japoneses exageravam o tamanho dos estragos que infligiam uns aos outros. Embora mantivesse boas relações com o alto comando do governo Nacionalista, incluindo o próprio generalíssimo e sua esposa Soong May-ling — a imperiosa Madame Chiang — Walter Bosshard foi obrigado a entregar seus negativos.

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Walter Bosshard e Robert Capa: A corrida pela China, exposição em cartaz no Museu de Arte da Universidade Tsinghua, em Pequim, tem como premissa a rivalidade profissional dos dois fotógrafos europeus na cobertura do conflito sino-japonês para a imprensa ocidental em 1938. Organizada em seis partes (mais uma sala dedicada a filmagens de Bosshard em sua viagem até o quartel-general dos comunistas em Yan’an), recobre, no entanto, um período mais extenso e levanta, às vezes inadvertidamente, questões sobre o complexo emaranhado entre fotografia, guerra, mídia e propaganda política na primeira metade do século 20.

Cinco das seis seções de A corrida pela China são dedicadas ao trabalho de Walter Bosshard na China, e duas incluem fotos tiradas antes do agravamento da guerra com o Japão. Em 1931 Bosshard registrou a invasão japonesa da Manchúria para a pioneira revista ilustrada alemã Berliner Illustrierte Zeitung. Entre 1933 e 1938, Bosshard teve endereço fixo em Pequim, de onde realizou diversas viagens e trabalhos para agências e publicações norte-americanas e europeias.

Em suas viagens pelo interior da China, Bosshard registrou uma população majoritariamente rural, na qual o corpo humano ainda era a principal força motriz. Uma sociedade que, alheia ao processo de modernização em curso nas grandes cidades costeiras do leste do país — e ignorando por ora os horrores da guerra moderna —, era composta não apenas de trabalhadores braçais como também de artesãos habilidosos, dispersos por milhões de pequenos ateliês, que produziam itens mais raros e sofisticados como agulhas, sal, artigos de papel e brinquedos para crianças, vendidos em feiras esporádicas ou por mascates nas regiões mais isoladas.

Homens puxando barca pelos bancos de lama do rio Wei He, entre Xi’an e Pingliang, de Walter Bosshard, China, 1933 © Fotostiftung Schweiz / Archiv für Zeitgeschichte

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Chama a atenção do espectador mais atento a presença ostensiva, no mesmo ano em que a China comemora os 70 anos da revolução comunista e da fundação da República Popular da China em 1949, de fotos que parecem celebrar as forças armadas dos nacionalistas do Guomintang e suas figuras centrais. Nacionalistas e comunistas disputaram encarniçadamente o controle da China pós-imperial desde o final da década de 1920 até o desfecho da guerra civil em 1949, quando os o Guomintang se refugiou em Taiwan. O que explica essa aparente reconciliação histórica, 70 anos depois?

O passado recente da China foi construído como o triunfo heroico dos comunistas, uma sequência de revoluções que libertou o país da tirania brutal dos nacionalistas, da agressão japonesa e do imperialismo ocidental. A atenção do público chinês por muito tempo esteve focada em eventos como a fundação do Partido Comunista Chinês em 1921; o expurgo de 1927, a comando de Chiang Kai-shek, que deixou milhares de comunistas mortos; a emergência durante a Segunda Guerra Mundial de Yan’an, a capital comunista, como um farol de esperança num mar de corrupção e opressão nacionalista; e a derrota final dos nacionalistas em 1949. A história da Revolução Comunista estava no centro do palco.

Agora, no entanto, é a vitória da China sobre o Japão que parece estar no centro das atenções. A Segunda Guerra Mundial — ou Guerra de Resistência, como ainda é comumente chamada na China — é retratada como a época em que a Nova China nasceu, quando o país conseguiu se unir para prevalecer sobre ameaças externas e salvaguardar uma civilização ameaçada de extinção. A exposição, assim, parece desempenhar um papel nesse processo de revisão histórica.

Soong May-ling, de Walter Bosshard, Hankou, 1938 © Fotostiftung Schweiz / Archiv für Zeitgeschichte

O retrato de Soong May-ling de Walter Bosshard, íntimo e delicado, tirado em 1938 em Hankou, parece flagrar Madame Chiang em um momento de absorção e desatenção ao seu entorno. Ela foi uma das figuras mais importantes do país nos anos 1930, responsável pela máquina de propaganda política nacionalista (de tons abertamente fascistas) e cujo faro político foi determinante na definição da política norte-americana em relação à China durante os anos da guerra (que resultaria em bilhões de dólares e ajuda militar para o país).

Cristã protestante metodista, educada nos Estados Unidos e fluente em inglês com um charmoso sotaque sulista, Soong May-ling e seu marido desfrutavam da amizade e do apoio incondicional de Henry Luce, publisher da revista Life. Em 16 de agosto de 1937, três dias depois do ataque japonês a Shanghai, o artigo central da revista — “May-ling ajuda o marido a governar a China” — apresentava uma fotografia de três quartos de página da mulher do generalissimo, afirmando que ela era “provavelmente a mulher mais poderosa do mundo”. O autor da reportagem de cinco páginas fartamente ilustradas referiu-se ao casal Chiang e May-ling como “George e Martha Washington da China”. No mesmo ano, May-ling dividiria a capa da revista Time, também de Luce, com seu marido, na primeira (e provavelmente única) ocasião em que a revista homenageou “o homem e a esposa do ano”.

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Para Robert Capa, a viagem à China teve algo de decepcionante. O convite para trabalhar no documentário Os 400 milhões, sobre a guerra sino-japonesa, ao lado do diretor Joris Ivens e do operador de câmera John Fernhout, veio em momento delicado: Capa ainda estava em luto por sua companheira, a fotógrafa Gerda Taro, morta em um acidente na Espanha enquanto cobria a Guerra Civil.

Capa e Fernhout partiram de Marselha com destino a Hong Kong em 21 de janeiro de 1938. A bordo do Aramis, a caminho do que intelectuais e militantes europeus haviam passado a chamar de “frente oriental contra o fascismo”, estavam também os escritores britânicos Christopher Isherwood e W. H. Auden.

Soong May-ling estava por trás da produção do documentário, e qualquer passo que Ivens, Fernhout e Capa quisessem dar precisava de sua autorização prévia. Em especial, Madame Chiang restringia o acesso da equipe à frente de batalha, e Capa não teve autorização para visitar o quartel-general dos comunistas em Yan’an até o final. Para Madame Chiang, os nacionalistas eram os verdadeiros heróis da resistência chinesa, embora o “exército camponês” dos comunistas estivesse se provando militarmente superior às forças nacionalistas no enfrentamento aos japoneses. Os cineastas ficaram seis semanas praticamente confinados em Hankou, onde o governo nacionalista se instalara provisoriamente.

Lá Capa trabalharia em reportagens para a Life que não escondem a sua decepção de estar distante da ação. Capa registrou o dia a dia da cidade sob ataque, e suas imagens parecem refletir o sentimento de não poder testemunhar diretamente os combates. Em uma foto de três homens e um menino observando aviões de combate sobre a cidade, o enquadramento fechado, com a luz refletindo de volta de uma janela fechada, mostra apenas os observadores. A profundidade limitada é claustrofóbica. Atentos, os homens parecem totalmente implicados na guerra — mas apenas de forma passiva, como vítimas impotentes.

Multidão assistindo a batalha aérea entre aviões japoneses e chineses sobre Hankou, de Robert Capa, China, 1938 © International Center of Photography/Magnum Photos

Capa recebeu finalmente autorização para ir à frente de batalha em Suzhou no dia 3 de abril, onde os japoneses tentavam assumir o controle da estação de trem. Capa pode observar as linhas japonesas a seis quilômetros de distância, mas por determinação do general encarregado, foi obrigado a permanecer afastado do front até o desfecho da batalha. No dia 7 de abril, ao acordar, Capa recebeu a notícia de que os nacionalistas haviam tomado Taierzhuang. Perdera a primeira derrota das forças armadas japonesas em muito tempo, e a primeira vitória chinesa da guerra.

Um dos registros de Capa mostra soldados feridos retornando da frente de batalha. Como um símbolo ancestral dos horrores indizíveis da guerra, o soldado em primeiro plano tem os olhos quase vendados por um curativo. A frente, agora pacificada, jaz para além do alcance da câmera, como uma batalha em um passado longínquo, irrecuperável.

Os leitores da edição de 23 de maio de 1938 da Life, no entanto, teriam outra impressão. Comparando a vitória chinesa em Taierzhuang a outras batalhas decisivas da história militar — Waterloo, Gettysburg —, os editores da revista de Henry Luce anunciavam, com orgulho, embora com certo exagero, que “o grande fotógrafo de guerra Robert Capa”, cujas fotos ilustravam a matéria, havia sido “testemunha ocular da batalha”.

Soldado ferido, Taierzhuang, frente de batalha de Suzhou, de Robert Capa, China, 1938 © International Center of Photography/Magnum Photos

Além de todos os obstáculos envolvidos na produção de Os 400 milhões, que se revelaria um fiasco, e a falta de liberdade para trabalhar na cobertura da guerra, Capa se deu conta de que estava competindo pela atenção da Life com Walter Bosshard, que, com maior liberdade de deslocamento e acesso ao front, vinha conseguindo as melhores reportagens — em especial, a tão desejada visita aos comunistas em Yan’an.

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Em maio de 1938 Walter Bosshard e o jornalista norte-americano Archibald Steele, do Chicago Daily News, chegaram à “Capital Vermelha”, Yan’an, e Bosshard se tornou o primeiro jornalista europeu a entrevistar Mao Zedong, que durante a “Longa Marcha” (1934-35) — jornada de quase 10 mil quilômetros de Jiangxi a Yan’an que as forças comunistas realizaram, a pé, para escapar da campanha de perseguição de Chiang Kai-shek— se tornara a principal liderança comunista.

“Mao Zedong é o Lênin da China”, relatavam os editores da Life. “Destemido, leitor voraz, indomável”, seus únicos vícios eram o “cigarro e a pimenta”. Embora o publisher Luce fosse aliado de primeira hora dos nacionalistas, a matéria celebrava o papel dos comunistas na resistência ao Japão e afirmava: “os vermelhos dominam o norte da China”. Àquela altura, estava escusado de prever que em pouco mais de dez anos os comunistas estenderiam seu domínio para toda a China continental, e os nacionalistas — incluindo o casal Chiang — teriam de ser refugiar em Taiwan, que Chiang Kai-shek governou até sua morte em 1975. Madame Chiang morreu em Nova York, em 2003, aos 105 anos.

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A figura cultural hoje familiar do fotojornalista-celebridade emergiu relativamente tarde na história da fotografia, tomando forma apenas na década de 1930 e se desenvolvendo rapidamente nas condições únicas oferecidas pela conjunção da nova mídia impressa de massa, centrada na imagem, e a cobertura do conflito global da Segunda Guerra Mundial, da qual a guerra sino-japonesa foi um capítulo central. Demandas políticas e de mercado guiaram o desenvolvimento do fotojornalismo de guerra tanto quanto o faro e talento individuais de figuras como Bosshard e Capa.

 

Os Vermelhos em uniforme azul da China não dão trégua ao Japão. Life, 8 de agosto de 1938. Reprodução.

A Life de Henry Luce criou o modelo de maior sucesso para as novas publicações comerciais e corporativas, e desenvolveu uma estratégia de negócio específica para elevar um punhado dos seus fotógrafos ao olhar do público, estabelecendo assim a figura duradoura do fotojornalista heroico e ousado que conhecemos hoje.

“Moldadas e adaptadas para garantir o máximo efeito persuasivo”, escreve Caroline Brothers em War and photography (1997) sobre a fotografia de guerra e sua relação com  a propaganda política, “essas imagens falam diretamente às preocupações culturais da sociedade a que se dirigem, tanto nos temas escolhidos para representação como na forma como os temas são retratados”. Tais imagens fornecem informações, embora mínimas, sobre o que elas literalmente retratam, E refletem muito mais sobre as atitudes e preocupações da sociedade que as implementa e em que elas têm significado. O emaranhado de pressões e interesses políticos, segredo e propaganda militar, e demanda por liberdade e autonomia artística é apenas mais um dos elementos que tornam ainda mais espessa a névoa da guerra por onde devem se movimentar os fotojornalistas que desejam registrar e comunicar essa experiência extrema, irrepresentável. ///

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Walter Bosshard/ Robert Capa — A corrida pela China.

Mais informações aqui.

 

Joaquim Toledo Jr. é doutor em filosofia pela Unicamp e professor no curso de arquitetura e urbanismo da Escola da Cidade (SP).

 

 

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