Sem entrada e sem saída: o diário de viagem da fotógrafa Alice Miceli rumo a Chernobyl
Publicado em: 11 de julho de 2018No dia 26 de abril de 1986, o reator número 4 da usina nuclear de Chernobyl, na antiga União Soviética, explodiu, provocando a maior catástrofe nuclear do século 20. Pouco mais de duas décadas depois, a artista carioca Alice Miceli decidiu documentar o impacto da tragédia de uma forma radicalmente diferente: registrar, por meio da própria radiação, usando câmeras pin-hole de chumbo e técnicas de autorradiografia, a radioatividade ainda presente na chamada Zona de Exclusão de Chernobyl, no raio de 30 km em torno do reator destruído.
Entre 2007 e 2010, foram muitas viagens até a região para conseguir registrar o invisível, já que o filme utilizado por Miceli não era sensível à luz, mas sim aos raios gama, não visíveis pelo olho humano. Após meses de exposição, os filmes eram sensibilizados pela radioatividade ainda existente em troncos de árvores, casas de madeira, janelas e outros pontos escolhidos por ela. Para chegar a esta solução técnica, a artista realizou por oito meses pesquisas preliminares no Instituto de Radioproteção e Dosimetria, no Rio de Janeiro, e em seguida integrou um grupo alemão de pesquisa médica que tinha autorização para visitar a região.
Cerca de 10 anos após as viagens que resultaram no Projeto Chernobyl (que foi exposto na 29ª Bienal de São Paulo, em 2010), ZUM publica uma série de imagens feitas por Miceli e que funcionaram como uma espécie de diário de viagem da artista. Inéditas em sua maioria, as fotos mostram o trajeto até a Bielorrússia, o ambiente de total desolação da Zona de Exclusão e a urgência da fuga das pessoas que lá viviam e tiveram que deixar tudo para trás da noite para o dia.
Dentro do trem Berlin-Moskau Express, partindo de Berlin – Ostbahnhof às 18h50, para saltar em Minsk – Passajirskii às 09h12 do dia seguinte.
Primeira parada após cruzarmos a fronteira para a Polônia, em Rzepin, às 20h15.
Na Polônia, passamos ainda pelas estações Poznan Gl, Warszawa Zachodnia e Warszawa Centralna até chegarmos a Terespol, na foto acima, às 02h58 da madrugada – essa é a última parada na Polônia antes de longa espera para o cruzamento da fronteira bielorrussa em Brest.
Parada na Brest Central às 05h38 da manhã. Vagões içados e troca de trilhos para o padrão russo. Nessa altura da viagem, nenhum encarregado dentro do trem fala inglês nem alemão, só polonês ou russo. Tento pular do vagão para fotografar a troca de trilhos pelo lado de fora, mas não deixam. Os passageiros devem ficar dentro do trem enquanto a troca de trilhos ocorre. Cogito pular de qualquer maneira, mas a possibilidade de talvez me deixarem para trás em Brest me faz mudar de ideia.
Chegada em Minsk às 9h12 da manhã. Nessa cidade, encontro meus parceiros de viagem, cientistas do Instituto de Radiação Otto Hug, de Munique, e seguimos juntos até Gomel, a segunda maior cidade da Bielorrússia, distante 120km (uma hora e meia de carro) da Zona de Exclusão de Chernobyl.
No dia seguinte, partimos ao amanhecer para a Zona de Exclusão, um raio de 30km em torno da usina. No dia 26 de abril de 1986, uma cadeia de eventos resultou em explosões que destruíram a construção que abrigava o reator número 4 da Usina Nuclear de Chernobyl. Foi o maior acidente nuclear do século 20. O reator número 4 é, desde então, o centro da Zona de Exclusão, contaminada pela radioatividade pelo menos pelos próximos 300 anos. A radiotividade aumenta à medida que se avança nesse raio de 30km, e aparecem checkpoints consecutivos. Nessa imagem, nosso time está passando pelo primeiro deles.
Dentro da Zona, avistamos pela primeira vez uma construção abandonada, restos de uma fazenda. A primeira de muitas.
Sinais pela paisagem: “Perigo de radiação – Entrada vetada”.
Dosímetro, instrumento com o qual nos guiávamos dentro da Zona, tanto para saber onde pisar como também para escolher onde montar os experimentos, uma vez que não se percebe a radiação gama de nenhuma maneira. Um dosímetro é um medidor de dose radioativa ionizante absorvida em matérias orgânicas.
Indo em direção ao reator número 4, o “sarcófago”. Hoje em dia, ele ainda é a principal fonte emissora de radiação no local.
Passando por mais uma casa abandonada, decidimos entrar.
O que se vê dentro são restos, ruínas, destroços. Vidas inteiras deixadas para trás, em instantes.
Jornal de março de 1986. Imagem de um futuro perdido, com data marcada. Lê-se: Vida Rural, jornal do comitê central do Partido Comunista da URSS, noticiando o XXVII Congresso do Partido Comunista, que aconteceu de 25/2 a 6/3 daquele ano.
De volta ao exterior, a natureza na Zona de Exclusão é exuberante.
Fim de percurso: imagem produzida do alto de uma torre de observação, que captura, na sua profundidade de campo, a Zona de Exclusão se estendendo sobre a Bielorrússia e passando para a Ucrânia, onde se encontra o reator número 4, logo depois da fronteira. Cruzando a Zona pelo lado bielorrusso, este foi o ponto mais próximo ao reator que conseguimos chegar.///
Alice Miceli (1980) vive e trabalha no Rio de Janeiro. De 1998 a 2002, cursou bacharelado em cinema na Escola Superior de Estudos Cinematográficas, em Paris, e em 2005 formou-se em História da Arte e Arquitetura pela PUC-RJ. Participou da 29ª Bienal de São Paulo (2010); da exposição The Materiality of the Invisible, em Maastricht (2017), Basta! na Shiva Gallery, em Nova York (2016) e da Cisneros Fontanals Grants & Comissions Award, em Miami (2015), entre outras.
* Thomaz Napoleão contribuiu com algumas traduções do russo para o português.
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