Alice Brill: imagens para anticartões-postais
Publicado em: 13 de janeiro de 2016Ao longo da década de 1950, a Editora Melhoramentos lançou uma série de álbuns exaltando partes do território nacional. Isto é o Rio de Janeiro! (1955), Isto é a Bahia! (c. 1953) e Isto é São Paulo! (1951) vinham recheados de imagens de fotógrafos da época, acompanhadas por pequenos textos pautados por uma ideia de difusão de um país que caminhava rumo ao progresso e à modernização. Nessa mesma época, a cidade de São Paulo estava prestes a completar quatrocentos anos e Pietro Maria Bardi, então diretor do Museu Assis Chateaubriand, encomendou a Alice Brill – que já havia publicado algumas imagens nas publicações anteriores – um ensaio fotográfico sobre a nova metrópole. A cidade apresentava-se como um enorme canteiro de obras, com centenas de prédios novos em poucos anos e uma população que crescera de 2 milhões para mais de 3,5 milhões de habitantes. A pretensão era lançar uma publicação comemorativa ao IV Centenário da cidade, em 1954, o que nunca aconteceu.
Após uma temporada nos Estados Unidos com uma bolsa de estudos, onde aprendeu o ofício da fotografia, Alice volta ao Brasil em 1948, e logo surge a oportunidade de acompanhar a comitiva da Fundação Brasil Central em uma inspeção de obras pelo Centro-Oeste do país, o que seria um excelente início para sua carreira fotográfica. No entanto, apenas algumas de suas imagens foram publicadas na revista Habitat, na qual passou a colaborar regularmente com imagens de arquitetura, retratos de artistas e reproduções de obras. Alice também trabalhou como fotógrafa para o MASP e para o MAM-SP, registrando obras de arte e exposições. Seu trabalho de maior destaque realizava-se nos retratos de famílias da elite paulistana, no qual mostrou-se pioneira da fotografia espontânea de crianças. Por essa via, a artista modernizava o gênero, indo na contramão da fotografia de estúdio posada daquele período.
Adentrando o extenso e um tanto disperso conjunto fotográfico de Alice Brill – são mais de 14 mil negativos pertencentes ao acervo do Instituto Moreira Salles desde 2000 – percebe-se uma dimensão que, apesar de ainda pouco conhecida, se faz presente em toda a trajetória da artista. São as impressões de um mundo isento de eufemismos, avessas à idealização de um sonho eufórico de progresso que Alice nunca conseguiria publicar.
Com um olhar humanizado e despretensioso, mas não ingênuo, Alice desviou sua câmera para um cotidiano sem disfarces, ultrapassando as ideias clichês dos álbuns da Editora Melhoramentos. Ela não captou apenas a Cidade Maravilhosa e suas panorâmicas deslumbrantes, mas também o descontentamento e as queixas de seu povo maltratado; na Bahia, registrou, como de praxe, aquele lugar sedutor e eufórico, porém igualmente adentrou e retratou os cortiços pobres; em São Paulo, não valorizou somente o avanço monumental e despretensioso, mas expôs seu lado “não saudável”, para usar a expressão de Lévi-Strauss em Tristes trópicos. Não se sabe ao certo se a realização desses conjuntos fotográficos foi comissionado por alguma editora, talvez pela própria Melhoramentos, ou se eram resultados de viagens pessoais da artista usadas como, mais uma vez, oportunidades para ampliar seu portfólio de apresentação ao mercado editorial.
A partir dessa outra face de Alice, seria possível criar uma espécie de álbum de anticartões-postais, repleto de imagens reveladoras dos paradoxos e das contradições de um país chamado Brasil. Imagens de paisagens por cujas bordas e ruínas a fotógrafa perambulou, apontando personagens que parecem viver desencaixados de qualquer sonho eufórico daquele progresso desmedido. Mas, como diz o Marco Polo de Italo Calvino ao descrever uma das cidades ao imperador Kublai Khan, “para não decepcionar os habitantes, é necessário que o viajante louve a cidade dos cartões-postais e prefira-a à atual”. Eis aí, talvez, o motivo pelo qual a fotógrafa, também viajante e estrangeira, nunca conseguiria divulgar essa dimensão de sua produção.///
Giovanna Bragaglia é curadora da exposição Alice Brill: impressões ao rés do chão, em cartaz no IMS-SP até 7 de fevereiro de 2016.
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