A outra volta do obelisco: as fotografias em torno do suicídio de Getúlio Vargas
Publicado em: 9 de maio de 2018Uma das fotografias mais memoráveis do movimento que levou Getúlio Vargas ao poder mostra os cavalos dos gaúchos amarrados ao obelisco da avenida Rio Branco, em 3 de novembro de 1930. Fundada um ano antes, a Revista do Globo, na época o melhor periódico ilustrado do Rio Grande do Sul, coloca a foto na capa com a seguinte legenda: “No famoso obelisco da avenida Rio Branco, durante tanto tempo convertido pelos reacionários em pelourinho do fundador do Rio Grande, os gaúchos amarram afinal os cavalos, na manhã de 1° de novembro de 1930”. O obelisco não era exatamente um símbolo de poder presidencial, e sim um emblema da modernização aristocrática que caracterizou a reforma urbana da capital federal, sob os auspícios do prefeito Pereira Passos. Se hoje pouca gente compreenderia a imagem do obelisco como representação do martírio do “fundador do Rio Grande”, é porque o brigadeiro Silva Pais não participa dessa legenda como sujeito, mas também como símbolo, mais precisamente como efígie dos sofrimentos do povo gaúcho nas mãos de uma República Velha, tão velha quanto um pelourinho.
Os cavalos no obelisco são um tapa na cara da oligarquia republicana, a bota enlameada de um peão na sala de visitas, uma caca no cartão-postal. Remetem também a um dos aspectos dominantes da memória gráfica da Revolução de 1930, que, além de exaltar os líderes militares (e civis vestidos como militares, como o próprio Vargas), valoriza as ruas, as multidões que empastelam jornais conservadores, os protestos e celebrações nas praças. Meio século depois, quando o ciclo Vargas se encerra, em 24 de agosto de 1954, quase não nos lembramos da imagem das ruas. Lembramos de Lacerda, dito “Corvo”, carregado por correligionários e oficiais da Aeronáutica, com um tiro no pé; lembramos do enterro de Getúlio em São Borja; e lembramos sobretudo do pijama com o pequeno orifício ensanguentado na altura do coração – pijama que já é em si mesmo uma fotografia, vestígio de um disparo instantâneo, e que por isso esteve muito tempo emoldurado junto ao leito de morte do presidente no Palácio do Catete, hoje Museu da República, no Rio de Janeiro.
À exceção do gigantesco cortejo que acompanha o embarque do corpo de Vargas, cuja dimensão conhecemos graças à magnífica imagem de Campanella Neto para A Noite, as multidões de agosto quase sumiram da memória. A mesma Revista do Globo publica em 1954 uma foto da tradicional rua da Praia, tomada pela massa que abre uma clareira onde caem grandes móveis de escritório, arremessados do segundo andar dos sobrados comerciais. Os móveis estropiados empilham-se sobre um mar de papéis e ofícios. A marchinha-jingle da campanha presidencial de Vargas pedia que o retrato do “velho” fosse posto “outra vez” no mesmo lugar, pois o “sorriso do velhinho” fazia “a gente trabalhar”. Agora que o retrato é um pijama ensanguentado, o batente ainda vale a pena?
Há inúmeras fotografias da comoção e da revolta popular no Rio Grande, onde parte da liderança política, entre as quais o deputado estadual Leonel Brizola, convocava a resistência contra um possível “golpe militar”. Ao contrário de outras capitais do país, praticamente não há confronto com a polícia em Porto Alegre. O alvo principal da multidão são os jornais oposicionistas – entre eles, a sede dos Diários Associados de Assis Chateaubriand e o jornal Estado do Rio Grande, devidamente incendiados. Algumas empresas estrangeiras também não escapam de umas boas pedradas. Mas a fotografia a que me referi acima possui um elemento estranho. A faixa estendida sobre a rua, ainda incólume, apesar da chuva de móveis que se precipita, anuncia o VI Salão de Arte Francisco Lisboa, que seria inaugurado em seguida, em 26 de agosto de 1954.
A série dos salões da Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa estava interrompida havia alguns anos, sendo retomada em 1951 com o V Salão, cuja principal motivação era fazer frente à I Bienal de São Paulo, realizada no mesmo ano. O salão gaúcho afirmava o regional em contraposição ao internacional, o realismo em contraposição ao abstracionismo – realismo socialista, inclusive, como o do Clube de Gravura de Porto Alegre, de Carlos Scliar e Vasco Prado. A revista Horizonte, que entre seus colaboradores contava com vários simpatizantes do recém-proscrito Partido Comunista, comemorou, na retomada do Salão, em outubro de 1951, a demonstração de autonomia dos artistas gaúchos: a “mostra da Associação Francisco Lisboa foi uma prova de vitalidade e independência dos nossos artistas, no momento em que a Bienal de São Paulo pretende estabelecer a total subordinação da arte ao controle inepto e interessado dos grandes capitalistas”. Três anos depois, o Salão seguinte coincide com o suicídio de Vargas. Acima dos estudantes e trabalhadores sindicalizados que marcham em direção ao Palácio Piratini, paira a convocação à resistência dos artistas à moda cosmopolita e burguesa “imposta” por Rio de Janeiro e São Paulo. Ali, ao lado, alvo preferencial dos manifestantes, o consulado dos Estados unidos, que, tal como o de Belo Horizonte, terminará por ser inteiramente destruído.
Enquanto isso, no Rio de Janeiro, as manifestações que se seguiram ao suicídio tomam proporções épicas. O tom da revista O Cruzeiro, logo após o acontecimento, é predominantemente de luto, consternação popular e silêncio, mas na edição da semana seguinte abre-se página dupla para a batalha campal no centro do Rio, com direito a bombas de efeito moral nas cercanias do aeroporto Santos Dumont, em 25 de agosto. Uma semana depois dos episódios, a revista já consolidou uma narrativa acerca deles. A revolta popular seria fruto da comoção não apenas espontânea, mas também insidiosamente orquestrada. O quebra-quebra no Rio tinha sido insuflado por agentes comunistas cariocas e outros tantos “embarcados” em São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas. São como fotos “quentes” que surgem as imagens das revoltas urbanas da semana anterior, agora editadas, para apoiar a tese da infiltração esquerdista que se aproveitava e desvirtuava “o justo sentimento do povo”, com a intenção de tomar o poder pela via revolucionária.
Mas, ao contrário do que sugeria a revista, os “vermelhos” que comandavam a “desordem” não pareciam dispor de um plano assim tão bem urdido por “Moscou”. A multidão não tinha alvos estratégicos e estava longe de visar ao poder. Ainda na manhã de 24 de agosto, move-se do largo da Carioca para a sede do jornal O Globo, que escapa do empastelamento por ter sido prudentemente fechado, mas tem duas caminhonetas tombadas e incendiadas. O próprio fotógrafo do jornal, refugiado em um dos andares superiores do prédio, fez a foto. Algum tempo mais tarde, quando um dos carros já está ardendo em chamas, o corte da foto é mais fechado e não conseguimos saber se a multidão permaneceu observando as labaredas ou se já havia partido para seus próximos alvos: o jornal O Mundo, que teve dois jipes de reportagem incendiados; a Rádio Globo, cujos microfones serviram aos discursos de Lacerda contra a corrupção e exigiam a renúncia de Vargas, devidamente apedrejada; e a Tribuna da Imprensa, jornal do próprio Carlos Lacerda, cujas portas reforçadas resistiram afinal à invasão. A mesma narrativa será acionada para dar conta dos acontecimentos em outras cidades, como São Paulo, onde o “luto silencioso” e sincero foi transformado em “motim” por grupos interessados na “baderna”. São esses baderneiros que não escapam ao “tabefe” bem dado pelo policial civil, flagra captado por Luis Ballot que a revista comemora – tanto o clique como o tapa –, concedendo-lhe a glória de uma página inteira.
Na edição de número 48 de O Cruzeiro, de 11 de setembro de 1954, vemos uma das mais interessantes sequências fotográficas daqueles dias agitados, posicionada como um rodapé da matéria “Explorando a morte de Vargas: os bolcheviques agitaram o povo carioca”. A tira, em página dupla, compõe-se de seis fotografias em formato quadrado. Não foram legendadas, apenas alinhadas sob o título “Sucederam-se as arruaças planejadas pelos comunistas do largo da Carioca até a embaixada americana”. As fotografias mostram, pela ordem: jovens destruindo alguma coisa (talvez uma banca de jornal); um carro, com militares ou policiais, que observam uma ação à distância (parece haver um corpo no chão); os veículos de O Globo, incendiados, agora sob o olhar da multidão; uma fogueira com cartazes de propaganda política da UDN no Tabuleiro da Baiana (terminal das linhas de bonde para a zona sul, no largo da Carioca); um plano próximo de entulho carbonizado liberando fumaça (sugerindo que o fogo havia sido recentemente apagado) com alguns homens de braços erguidos, como se estivessem se rendendo; e, encerrando a sequência, um blindado do Exército e soldados fortemente armados posicionados diante da embaixada norte-americana, sem nenhuma sombra de manifestantes por perto. Essa sequência é particularmente reveladora, porque não respeita nem a cronologia dos fatos, nem a geografia da cidade, mas prenuncia (e conclama), em seis imagens silenciosas, uma intervenção militar que só viria a acontecer, de fato, uma década depois.
Essas fotografias não servem apenas para ilustrar uma nova narrativa das comoções populares que sucederam ao suicídio de Vargas, mas também para conferir-lhes força de evidência. Setas são adicionadas às imagens da “massa ignara” para assinalar a presença, em Porto Alegre, de um “orador do PTB” e, no Rio de Janeiro, de um dos “famigerados agitadores comunistas”. Em São Paulo, as imagens dão conta da detenção pela polícia de agitadores que “tentavam a mazorca”. As setas são necessárias porque os tumultos são majoritariamente fotografados à distância. Os rostos próximos, contorcidos pela dor e desespero, estão reservados para cenas do velório e dos funerais, acompanhadas de títulos sentimentais, como a “dramática hora da derradeira despedida” ou “a última viagem a S. Borja”.
Facilmente reconhecemos junto ao caixão e à sepultura as feições de Oswaldo Aranha, João Goulart, Tancredo Neves, tomadas pela dor e pela paixão, entre tantos personagens que marcaram a cena política brasileira durante e depois da era Vargas. Mas o arquivo também nos traz alguns rostos anônimos, cujas expressões nos permitem adivinhar a complexa trama dos sentimentos em jogo nos dias que se seguiram ao suicídio do presidente. No Rio de Janeiro, rapazes afastam-se às gargalhadas após a chegada estridente do “choque” do Dops – a temida tropa antidistúrbio da polícia política carioca. Em São Borja, em meio à multidão que acompanha o cortejo fúnebre, alguns homens têm lenços ao redor do pescoço que suponho vermelhos. Não seriam lenços comunistas, mas lenços federalistas, lenços maragatos – os mesmos com que Getúlio e outros “revolucionários” de 1930 desembarcaram no Rio de Janeiro para libertar o Rio Grande do pelourinho da avenida Central. Mas olhando bem, os lenços têm bolinhas. Procuro uma explicação racional. Talvez o lenço de bolinhas, que, claro, imagino brancas, expresse um desses raros momentos de união entre chimangos e maragatos, republicanos e federalistas, colorados e gremistas, que às vezes se viu no Rio Grande. Símbolo de conciliação ou mero acaso, esse toque de delicadeza perturba e contrasta com o olhar desconfiado e mesmo indignado que alguns desses homens lançam ao fotógrafo: teria sido esse que agora fotografa mais um dos detratores do presidente?
Na história que a maioria da imprensa procurou contar com o auxílio de fotografias, os polos do “luto” e da “luta”, da melancolia e da mazorca, correspondem a sentimentos e atitudes antagônicas e habitam páginas separadas. Eram estados excludentes da massa, que exigiam um agente externo para que o primeiro entrasse em ebulição e se transformasse no segundo. Mas nas próprias fotografias encontramos indícios de que, em larga medida, a disputa se dá em torno do próprio luto. De quem é o luto, afinal? Das revistas ilustradas ou dos jovens que, sorridentes, travam sua guerra particular com as tropas do Dops? Dos fotógrafos das revistas da capital ou daqueles que em São Borja não se conformam à melancolia e os encaram com indignação, ou mesmo raiva?
Observemos esta fotografia das notórias arcadas do largo São Francisco, da Faculdade de Direto em São Paulo. A ação de um estudante no alto de uma sacada é acompanhada por uma pequena multidão. A notícia do suicídio de Vargas acabara de chegar. A agitação tomou conta das salas de aula. Muitos acadêmicos vão para a rua e olham as bandeiras que encimam a famosa fachada. Um deles, apoiado pela maioria dos colegas, desce a bandeira do Brasil a meio pau. O momento é tenso, pois a morte do presidente era, para alguns, motivo de legítimo e patriótico regozijo: uma ocasião para desfraldar bem alto as bandeiras, não para recolhê-las. Mas nessa primeira hora, o luto nacional prevalece. Um outro estudante pretende fazer o mesmo com a bandeira de São Paulo. Foi nesse instante, dizem, que alguém gritou: “Esta daí, não!”. A bandeira paulista não teria direito a luto, deveria ser retirada imediatamente do mastro. É isso que vemos nessa fotografia que, de tão precisa, poderia ter sido coreografada. Dois estudantes sustentam a escada, o herói do dia equilibra-se sobre a balaustrada e a flâmula de São Paulo é arriada até o chão. Outro caso entrou para o folclore do dia: no Rio de Janeiro, a multidão enfurecida está pronta para depredar mais um órgão de imprensa, mas é contida por um oficial de polícia que providencialmente subiu no prédio e arriou a bandeira do vespertino a meio pau. O luto da bandeira valeu por uma rendição do edifício, e a multidão foi embora quebrar alguma outra coisa em algum outro lugar. Talvez a Rádio Globo, pois circulara a informação de que o veículo, indiferente ao pesar da nação, continuava a “tocar música”.
A fotografia mais conhecida de Vargas em seu leito de morte é resultado da perícia criminal, realizada no próprio quarto do presidente. O dorso está desnudo e vemos o pequeno orifício na altura do coração. Não há um plano próximo do ferimento, mas o perito detalhou o buraco, queimado de pólvora, na camisa do pijama, bem ao lado do monograma bordado com as iniciais GV. Sempre me impressionou esse pequeno e último cuidado: não manchar, no ato de tirar a vida, o próprio nome.
A disputa em torno do luto de Vargas é também uma disputa das imagens. Naquele mesmo dia, o fotógrafo da polícia fez mais uma chapa do corpo. O presidente é visto deitado na cama, à distância, vestindo casaca escura, camisa de punhos engomados e os sapatos engraxados, como se comparecesse a uma recepção diplomática. Por que não se matou, naquela manhã, nesses trajes de estadista? Por que não com o velho uniforme que usava ao desembarcar no Rio de Janeiro em 1930? Ou de botas, bombachas e um lenço vermelho, como um legítimo maragato? Na literatura e no cinema, as autoridades costumam envergar seus melhores trajes no momento de enfrentar a morte que lavaria sua honra. Suicídio de pijama é coisa de aposentado, não de presidente. A oposição, na política e na imprensa, certamente teria preferido um suicídio de fraque e cartola. Sairia melhor na foto e manteria o luto das massas respeitosamente à distância. Mas Getúlio escolheu o pijama e, assim, deu mais uma volta ao obelisco.///
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Mauricio Lissovsky é historiador e roteirista, doutor em comunicação, professor de teorias da imagem e da visualidade na Eco-UFRJ.
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