A 32a Bienal de São Paulo e a imagem fotográfica
Publicado em: 10 de novembro de 2016Charles Darwin, em uma das frases que resumem seu pensamento, diz: “Não existe diferença fundamental entre o ser humano e os animais em termos de faculdades mentais. A diferença entre a mente de um ser humano e a de um animal é certamente em grau, e não em tipo”. E reitera: “os animais, como o homem, demonstram sentir prazer, dor, felicidade e sofrimento”.
Talvez todos os seres e as formas matéricas que vivem na Terra sejam sencientes, isto é, todas as formas de vida – as florestas, as plantas, os insetos, os microrganismos, os plânctons e assim por diante – têm sensações, todos sofrem e reagem quando há algum tipo de agressão. E o homem acha-se imune às transformações que ele mesmo provoca, por se considerar acima da natureza.
É a partir dessa proposição que surge o título da 32a Bienal de São Paulo, Incerteza Viva, que pretende refletir sobre e debater os paradoxos, conflitos e contradições deste convívio homem-natureza, tendo a arte como resultado dessa interação. Os temas (ou “problemas”) da contemporaneidade estão todos aqui, em uma mostra, com menos artistas do que de costume em um evento desse porte e cuja arquitetura rizomática cria relações entre as obras.
E a fotografia, em suas diversas formas – foto impressa, fotocolagem, videoarte, documentário e cinema –, está presente, à deriva, e é quase “meramente” documental. Não é daquelas de se expor em paredes. Está em contínuo movimento.
Na grande oca do artista Bené Fonteles, construída logo na entrada, ela aparece em porta-retratos, em uma montagem melancólica que fala da atuação dos retratados – personalidades artísticas, intelectuais, políticos e indigenistas. Um texto do xamã e líder do povo Yanomani Davi Kopenawa é exposto sob a forma de poema gravado em uma coluna do prédio no meio da exposição, que atravessa verticalmente a oca. Ele dá o tom da curadoria, revelando o conflito entre dois universos culturais distintos – o do homem branco e o do povo indígena.
Como o homem branco fez com quase tudo a seu redor, a arte também foi transformada em mercadoria. Nesta Bienal, porém, a arte parece querer resistir a ser mera mercadoria. O que se vê não é a mesma arte das galerias comerciais e feiras de arte. A fotografia, por sua vez, está aqui diante do espelho do poder. Não são os fotógrafos ou os fotojornalistas a dar uma nova dimensão à fotografia, e sim os artistas que dão à imagem fotográfica um novo sentido, a da fotografia como registro da ação política e como ação política em si.
Olhando para a 32ª Bienal do ponto de vista fotográfico, poderíamos dividi-la em duas frentes principais: a primeira contempla trabalhos imagéticos que denunciam as ações humanas devastadoras do meio ambiente; na segunda, um viés mais poético se impõe, em trabalhos feitos com imagens fantásticas, visões telúricas da vida e do mundo exploradas pela fotografia, pelo vídeo e pelo documentário.
Longe da discussão do que é a fotografia hoje, de se o que fazem os artistas ainda pode ser considerado fotografia, ou ainda de se a fotografia suplantou as outras linguagens artísticas no século XXI, o fato é que nesta Bienal de Arte a imagem fotográfica, sobretudo em seu formato em vídeo, predomina sobre as demais formas de arte.
Perto da oca de Bené Fonteles nos deparamos com o homem ribeirinho (que reaparecerá em outros trabalhos em exposição) de O peixe (2016), filme algo surreal de Jonathas de Andrade. São imagens e situações ficcionais de pescadores com suas presas: peixes viscosos que tentam manter a respiração fora d’água, até a morte, amenizada pelas carícias dos homens que os pescam à maneira tradicional, com arpão, linha e rede. Há uma sensualidade dúbia que brinca com os corpos e as carícias, impensáveis na vida real, entre predador e presa.No vídeo Estás vendo coisas (2016), de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, surge outro conflito, entre precariedade e ostentação. Uma moça e um rapaz cantam uma música do brega funk recifense, enquanto gravam clipes, maquiam-se e vestem-se ostensivamente. Com cores exuberantes e uma linguagem de videoclipe, as cenas se sobrepõem e tornam visível um universo de imagens que poderia habitar a periferia de muitas grandes cidades brasileiras. Carros de luxo modificados, mulheres-objeto com roupas sumárias e sensuais e os homens com roupas largas e correntes de ouro no peito. Tudo isso em meio a uma paisagem desoladora, que tem como protagonista o lixo acumulado em terrenos baldios. É também de Bárbara Wagner a série de fotografias emolduradas e dependuradas ao lado [vencedora da Bolsa de Fotografia ZUM/IMS 2015], que registra os mesmos personagens e seu universo vistos no filme.
A fotografia em molduras na parede aparece ainda algumas vezes na mostra, porém mais discretamente, como Colina Índio Morto (2016), foto de Pierre Huyghe, artista francês radicado no Chile. O que se vê é um deserto desolador, uma paisagem cosmogônica que tem em primeiro plano uma caveira em repouso. Atrás, o deserto de pedras que traz um monte piramidal desenhado com delicadeza pela linha do horizonte.A norte-americana Rachel Rose apresenta o vídeo Um minuto atrás, de 2014, em que trabalha imagens híbridas em associação, que sobrepõem fotografia e pintura sobre vídeo, entremeados por imagens de uma tempestade que se aproxima. Em uma colagem com outro vídeo, exibe a icônica Casa de Vidro de Philip Johnson, e o arquiteto aparece inserido na própria residência, como um fantasma espectral. Ainda nessa mesma videocolagem, uma pintura de Nicolas Poussin, pertencente ao acervo do MoMA de Nova York, surge ao fundo. A tela está em exposição permanente nesta residência, e é uma referência à utopia da arquitetura modernista.
Seu segundo trabalho exposto é Tudo e mais um pouco, de 2015. A videoinstalação une a entrevista com um astronauta que se desloca da Terra a imagens de formas abstratas, e tudo é projetado sobre uma mesma tela translúcida, deixando perpassar o que está no exterior do prédio da Bienal, a paisagem do parque Ibirapuera. O silêncio “pesa” nesta instalação imagética de baixa tecnologia, uma grande camara obscura, e nos faz pensar sobre os primórdios da fotografia.
Cecilia Bengolea e Jeremy Deller apresentam o vídeo O sonho de Bombom, feito para esta edição da mostra, que versa sobre a linguagem corporal como um fenômeno popular. É o hip hop, o break, o voguing e o twerk, novas formas de música e dança de rua. Como no trabalho de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, há uma vontade ficcional aqui, à maneira de um videoclipe, ou de uma HQ de super-heróis. A heroína é Bombom, uma performer japonesa que dança nas ruas, nas festas e nas matas jamaicanas. O som e a dança são inebriantes, com alta carga sexual, e as imagens fotográficas são poderosas e jogam com o erótico e o fantástico. Uma vez, uma vez (2016), do norte-americano Lyle Ashton Harris, é uma instalação multimídia apoteótica, com imagens de seu arquivo em ektachrome feitas entre 1986 e 1998. São reproduções fotográficas dos diários do artista, ora vídeos, ora fotografias, em uma mescla de ativismo com vida cotidiana, sexo e sensualidade, família, abordando questões como o público, o privado e o passado. A sala de exposição é tomada por imagens por todos os lados e por projeções frente e verso em cortinas que dividem o espaço.Já o paulistano Antonio Malta Campos faz em suas Misturinhas exercícios de fotografias “sujas” (publicadas originalmente em revistas e jornais), que em sua maioria são recobertas com a pintura, característica mais conhecida do trabalho de Malta. Essas colagens, “sujas” de tinta e desenhos, no conjunto, parecem traduzir novamente, como em Bárbara Wagner, o caos imagético que habitamos.
A lista é longa de artistas que trabalham com a imagem fotográfica. O dinamarquês Henrik Olesen e a chilena Katia Sepúlveda também exibem colagens. No primeiro, o resultado é estranho, parecido ao de Malta, um trabalho que leva película adesiva, marcador edding, tinta acrílica, tinta a óleo e painel de fibras, resultando em uma imagem “suja”. Uma mistura de fotografias reconhecíveis de lixo, esgoto, carne, guerra.
Já Sepúlveda trabalha com imagens de mulheres extraídas da revista Playboy. Em tom feminista, suas colagens falam de sexismo, desejo e da violência moral e física contra o corpo da mulher. Há um forte apelo surrealista, meio nonsense, como a imagem de um macaco olhando para um crânio humano, colada sobre uma mulher se equilibrando em cima de um cavalo.
A colombiana Carolina Caycedo exibe o documentário A gente rio – Barrado seja (2016), resultado de pesquisa em arquivos de imagens de campo e atividades com as comunidades ribeirinhas atingidas pelas construções das usinas hidrelétricas de Itaipu, Belo Monte, pelos sistemas híbridos do Vale da Ribeira e também pela maior tragédia ecológica de que se tem conhecimento na atualidade no território nacional, o rompimento das barragens de rejeitos da mineradora Samarco em Mariana. Uma inversão das imagens de beleza incomum cria situações surreais; há grande potência visual, enquanto que o relato das pessoas é doloroso. A obra fala dos direitos retirados, dos desmandos políticos, da destruição da natureza, do desrespeito às pessoas e a essas entidades sobrenaturais que são os rios. Em outra sala, a dupla Ursula Biemann, suíça, e Paulo Tavares, brasileiro, mostra em um videodocumentário a audiência em que o povo indígena Kichwa de Sarayaku, do Equador, vence a batalha na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2012, contra uma grande empresa argentina que planejava realizar testes sísmicos explosivos na área indígena dos Kichwa. Os índios venceram e deram às florestas direitos universais jurídicos, não humanos. Tudo isso nesse mesmo vídeo. Por fim, em outra exposição dentro da Bienal, a fotografia também é política nas imagens de “naturezas–mortas” de Maryam Jafri. São fotos publicitárias de produtos ligados à indústria farmacêutica e de alimentos justapostas a legendas informativas. Os objetos e suas imagens resultam no significado do “produto” e suas consequências ao serem consumidas. Imagens e textos denunciam a manipulação da vida por essas indústrias.A 32ª Bienal é uma enorme sobreposição de imagens investigativas do estado de emergência do ser humano. Este texto se alongaria muito caso fosse comentar todos os trabalhos que lidam com a fotografia na sua versão em movimento. São muitos, e dão o tom de denúncia e urgência às questões sociais, indígenas, culturais, científicas e ecológicas a esta edição da mostra. A imagem fotográfica assume seu papel mais potente e mostra seu valor artístico documental: ela é documento que mostra tudo, fatos reais ou não, todos parte do imaginário humano.///
Ricardo Resende é curador do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.
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