A 32a Bienal de São Paulo e a imagem fotográfica
Publicado em: 10 de novembro de 2016
Katia Sepulveda, Dispositivo doméstico, 2007-2016. Obra comissionada pela Fundação Bienal de São Paulo
Charles Darwin, em uma das frases que resumem seu pensamento, diz: “Não existe diferença fundamental entre o ser humano e os animais em termos de faculdades mentais. A diferença entre a mente de um ser humano e a de um animal é certamente em grau, e não em tipo”. E reitera: “os animais, como o homem, demonstram sentir prazer, dor, felicidade e sofrimento”.
Talvez todos os seres e as formas matéricas que vivem na Terra sejam sencientes, isto é, todas as formas de vida – as florestas, as plantas, os insetos, os microrganismos, os plânctons e assim por diante – têm sensações, todos sofrem e reagem quando há algum tipo de agressão. E o homem acha-se imune às transformações que ele mesmo provoca, por se considerar acima da natureza.
É a partir dessa proposição que surge o título da 32a Bienal de São Paulo, Incerteza Viva, que pretende refletir sobre e debater os paradoxos, conflitos e contradições deste convívio homem-natureza, tendo a arte como resultado dessa interação. Os temas (ou “problemas”) da contemporaneidade estão todos aqui, em uma mostra, com menos artistas do que de costume em um evento desse porte e cuja arquitetura rizomática cria relações entre as obras.
E a fotografia, em suas diversas formas – foto impressa, fotocolagem, videoarte, documentário e cinema –, está presente, à deriva, e é quase “meramente” documental. Não é daquelas de se expor em paredes. Está em contínuo movimento.
Na grande oca do artista Bené Fonteles, construída logo na entrada, ela aparece em porta-retratos, em uma montagem melancólica que fala da atuação dos retratados – personalidades artísticas, intelectuais, políticos e indigenistas. Um texto do xamã e líder do povo Yanomani Davi Kopenawa é exposto sob a forma de poema gravado em uma coluna do prédio no meio da exposição, que atravessa verticalmente a oca. Ele dá o tom da curadoria, revelando o conflito entre dois universos culturais distintos – o do homem branco e o do povo indígena.
Como o homem branco fez com quase tudo a seu redor, a arte também foi transformada em mercadoria. Nesta Bienal, porém, a arte parece querer resistir a ser mera mercadoria. O que se vê não é a mesma arte das galerias comerciais e feiras de arte. A fotografia, por sua vez, está aqui diante do espelho do poder. Não são os fotógrafos ou os fotojornalistas a dar uma nova dimensão à fotografia, e sim os artistas que dão à imagem fotográfica um novo sentido, a da fotografia como registro da ação política e como ação política em si.
Olhando para a 32ª Bienal do ponto de vista fotográfico, poderíamos dividi-la em duas frentes principais: a primeira contempla trabalhos imagéticos que denunciam as ações humanas devastadoras do meio ambiente; na segunda, um viés mais poético se impõe, em trabalhos feitos com imagens fantásticas, visões telúricas da vida e do mundo exploradas pela fotografia, pelo vídeo e pelo documentário.
Longe da discussão do que é a fotografia hoje, de se o que fazem os artistas ainda pode ser considerado fotografia, ou ainda de se a fotografia suplantou as outras linguagens artísticas no século XXI, o fato é que nesta Bienal de Arte a imagem fotográfica, sobretudo em seu formato em vídeo, predomina sobre as demais formas de arte.
Perto da oca de Bené Fonteles nos deparamos com o homem ribeirinho (que reaparecerá em outros trabalhos em exposição) de O peixe (2016), filme algo surreal de Jonathas de Andrade. São imagens e situações ficcionais de pescadores com suas presas: peixes viscosos que tentam manter a respiração fora d’água, até a morte, amenizada pelas carícias dos homens que os pescam à maneira tradicional, com arpão, linha e rede. Há uma sensualidade dúbia que brinca com os corpos e as carícias, impensáveis na vida real, entre predador e presa.No vídeo Estás vendo coisas (2016), de Bárbara Wagner e Benjamin de Burca, surge outro conflito, entre precariedade e ostentação. Uma moça e um rapaz cantam uma música do brega funk recifense, enquanto gravam clipes, maquiam-se e vestem-se ostensivamente. Com cores exuberantes e uma linguagem de videoclipe, as cenas se sobrepõem e tornam visível um universo de imagens que poderia habitar a periferia de muitas grandes cidades brasileiras. Carros de luxo modificados, mulheres-objeto com roupas sumárias e sensuais e os homens com roupas largas e correntes de ouro no peito. Tudo isso em meio a uma paisagem desoladora, que tem como protagonista o lixo acumulado em terrenos baldios. É também de Bárbara Wagner a série de fotografias emolduradas e dependuradas ao lado [vencedora da Bolsa de Fotografia ZUM/IMS 2015], que registra os mesmos personagens e seu universo vistos no filme.
A fotografia em molduras na parede aparece ainda algumas vezes na mostra, porém mais discretamente, como Colina Índio Morto (2016), foto de Pierre Huyghe, artista francês radicado no Chile. O que se vê é um deserto desolador, uma paisagem cosmogônica que tem em primeiro plano uma caveira em repouso. Atrás, o deserto de pedras que traz um monte piramidal desenhado com delicadeza pela linha do horizonte.A norte-americana Rachel Rose apresenta o vídeo Um minuto atrás, de 2014, em que trabalha imagens híbridas em associação, que sobrepõem fotografia e pintura sobre vídeo, entremeados por imagens de uma tempestade que se aproxima. Em uma colagem com outro vídeo, exibe a icônica Casa de Vidro de Philip Johnson, e o arquiteto aparece inserido na própria residência, como um fantasma espectral. Ainda nessa mesma videocolagem, uma pintura de Nicolas Poussin, pertencente ao acervo do MoMA de Nova York, surge ao fundo. A tela está em exposição permanente nesta residência, e é uma referência à utopia da arquitetura modernista.
Seu segundo trabalho exposto é Tudo e mais um pouco, de 2015. A videoinstalação une a entrevista com um astronauta que se desloca da Terra a imagens de formas abstratas, e tudo é projetado sobre uma mesma tela translúcida, deixando perpassar o que está no exterior do prédio da Bienal, a paisagem do parque Ibirapuera. O silêncio “pesa” nesta instalação imagética de baixa tecnologia, uma grande camara obscura, e nos faz pensar sobre os primórdios da fotografia.
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Um minuto atrás, 2014. Cortesia Gavin Brown’s Enterprise, Nova York e Pilar Corrias Gallery, Londres” width=”2048″ height=”1149″>
Rachel Rose, Um minuto atrás [still], 2014. Cortesia Gavin Brown’s Enterprise, Nova York e Pilar Corrias Gallery, Londres
Cecilia Bengolea e Jeremy Deller, O sonho de Bombom [still], 2016. Obra comissionada pela Fundação Bienal de São Paulo
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Nan, Berlim, 1992, da série Hoje não julgarei nada que ocorrer, 2015-2016″ width=”2048″ height=”1366″>
Lyle Ashton Harris, Nan, Berlim, 1992, da série Hoje não julgarei nada que ocorrer: Arquivo Ektachrome, 2015-2016Já o paulistano Antonio Malta Campos faz em suas Misturinhas exercícios de fotografias “sujas” (publicadas originalmente em revistas e jornais), que em sua maioria são recobertas com a pintura, característica mais conhecida do trabalho de Malta. Essas colagens, “sujas” de tinta e desenhos, no conjunto, parecem traduzir novamente, como em Bárbara Wagner, o caos imagético que habitamos.
A lista é longa de artistas que trabalham com a imagem fotográfica. O dinamarquês Henrik Olesen e a chilena Katia Sepúlveda também exibem colagens. No primeiro, o resultado é estranho, parecido ao de Malta, um trabalho que leva película adesiva, marcador edding, tinta acrílica, tinta a óleo e painel de fibras, resultando em uma imagem “suja”. Uma mistura de fotografias reconhecíveis de lixo, esgoto, carne, guerra.
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Henrik Olesen, 2, 2016. Cortesia do artistaJá Sepúlveda trabalha com imagens de mulheres extraídas da revista Playboy. Em tom feminista, suas colagens falam de sexismo, desejo e da violência moral e física contra o corpo da mulher. Há um forte apelo surrealista, meio nonsense, como a imagem de um macaco olhando para um crânio humano, colada sobre uma mulher se equilibrando em cima de um cavalo.
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O Brasil dos índios: um arquivo aberto, 2016″ width=”2048″ height=”1532″>
Vídeo nas Aldeias, O Brasil dos índios: um arquivo aberto [still], 2016
Recall de produtos: Um índex da inovação, 2014-2015″ width=”2048″ height=”1366″>
Maryam Jafri, Recall de produtos: Um índex da inovação, 2014-2015A 32ª Bienal é uma enorme sobreposição de imagens investigativas do estado de emergência do ser humano. Este texto se alongaria muito caso fosse comentar todos os trabalhos que lidam com a fotografia na sua versão em movimento. São muitos, e dão o tom de denúncia e urgência às questões sociais, indígenas, culturais, científicas e ecológicas a esta edição da mostra. A imagem fotográfica assume seu papel mais potente e mostra seu valor artístico documental: ela é documento que mostra tudo, fatos reais ou não, todos parte do imaginário humano.///
Ricardo Resende é curador do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.
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