Ensaios

Arquiteturas do desejo

Régis Amora & Anna Ortega Publicado em: 9 de novembro de 2023

Foto da série Cine Casa, de Régis Amora, 2015-2022

Uma flor repousa sobre o azulejo azul da cozinha. Um ventilador de teto refresca o calor do quarto. Corredores estampam uma tinta verde limão. É casa. Um colchão de casal envolto por um plástico aguarda os visitantes. Telas de televisão de tubo exibem filmes em que homens gays sentem prazer. Legendas em inglês dizem “he’ll loved it”. É cinema.

Há oito anos, o fotógrafo cearense Régis Amora descobriu, andando pelas ruas do centro de Fortaleza, que um perímetro específico da região concentrava cinemas de filmes eróticos LGBTs. Percebeu mais uma semelhança entre eles: muitos eram antigas residências, casas da década de 30 e 40, transformadas em espaços de convivência LGBTs e majoritariamente visitados por homens-cis gays.

Já interessado pela temática queer e dedicado a investigar as relações entre memória e performatividades de gênero, Régis passou a fotografar periodicamente esses espaços. Assim nasceu a série fotográfica e o projeto de fotolivro Cine Casa, vencedor do Prêmio Imaginária 2022, organizado pela editora Lovely House. Desde então, vem trabalhando na finalização do livro em conjunto com grupos de estudos e residências artísticas.

O encontro do artista com esses cinemas acompanha sua pesquisa de mais de uma década sobre vivências LGBTQIAP+ no espaço urbano, como também acontece no fotolivro Atlas Drag, publicado em 2022 pela editora {Lp} Press. Em Cine Casa, Régis busca aproximar os leitores da experiência de visitar estes cines caseiros. Por isso, ao passar as páginas, o livro será visto de uma forma por olhos atentos e de outra para quem passar as páginas rápido demais. O mesmo acontece com os transeuntes do centro de Fortaleza, que no passo apressado da cidade talvez nunca desconfiem que sobrados antigos foram transformados em cinemas eróticos.

Foto da série Cine Casa, de Régis Amora, 2015-2022

As fotografias da série pedem um olhar lento, assim como é o processo fotográfico de Régis, pois guardam detalhes que contam histórias – paredes riscadas e suadas, televisões plastificadas. Nas imagens, há lugar para um mistério, ora fantasmagórico, ora terno, que recusa um imaginário fetichizado e explícito sobre o erótico dissidente. “Eu acho que os cines eróticos, lugares que me incluo como fotógrafo para criar o trabalho, são movimentos de resistência às lógicas de organização do espaço urbano. A pesquisa vem desta pergunta: de que forma esses corpos desejantes vão em busca de um espaço que os acomode?”, questiona Régis.

O artista se aproxima do desejo, mas não para resolvê-lo ou explicá-lo. Adentra, espia as portas e janelas, olha para a água que escorre pelas frestas. E procura trazer para o fotolivro essa mesma experiência. Um voyeurismo que não busca flagras, mas sim o que já está ali. O que permanece no tempo e que na arquitetura descascada se revela. Em Cine Casa, as paredes falam.

Foto da série Cine Casa, de Régis Amora, 2015-2022

Como surge a pesquisa do Cine Casa?

Régis Amora: Eu morei muitos anos no centro de Fortaleza, então já tinha uma relação enquanto pessoa LGBT com o espaço urbano. Várias questões me inquietavam quanto a isso, como por exemplo, a atuação dos mecanismos de repressão que tem o objetivo de tornar o corpo LGBT disciplinado, civilizado para caber na cidade.

No centro, eu sempre via algumas placas falando de ‘cines’. Há oito anos, entrei em um deles, porque achava o sobrado muito bonito. Dentro percebi que a arquitetura era de uma casa mesmo, e comecei a entrar em outros e notar que isso se repetia. Foi quando passei a fotografar. Primeiro vivenciei e depois entendi que eu poderia, a partir dali, articular um trabalho fotográfico que documentasse isso. Eu me entendo enquanto fotógrafo há pouco mais de 10 anos, sendo que oito deles são fotografando e pesquisando o Cine Casa.

Me interesso em pensar nesse mecanismo de repressão que define o nosso corpo como perverso. E os cines mostram que para viver os nossos desejos, a gente precisa se confinar. Você percebe ao longo da paisagem urbana de Fortaleza, e de outros centros urbanos também, os esforços de civilizar e “deserotizar” esses espaços, delimitando fisicamente os corpos. Eu acho que os cines eróticos, lugares que me incluo como fotógrafo para criar o trabalho, são movimentos de resistência às lógicas de organização do espaço urbano. A pesquisa vem dessa pergunta: de que forma esses corpos desejantes vão em busca de um espaço que os acomode?

Foto da série Cine Casa, de Régis Amora, 2015-2022

Você comentou que sua aproximação inicial com os espaços se deu por uma proximidade física a eles. E ao entrar pela porta, como é seu processo fotográfico?

RA: Os cines têm uma característica interessante em Fortaleza, porque se localizam em um perímetro específico da cidade. São espaços comerciais, onde você vai à bilheteria e paga o ingresso para entrar. Tem até catraca. Só que 99% deles – não sei por que – acontecem dentro de residências. São casas bem antigas da década de 30 e 40, que se transformaram em cinemas de filmes eróticos.  São espaços de convivência agora com outra característica, não mais de moradia, mas de fazerem acontecer de forma efêmera os desejos.

Eu fotografava muito pela manhã, porque precisava de uma condição de luz legal, já que os cinemas são ambientes escuros. Com a claridade, a gente consegue ver um pouco da arquitetura das residências e as camadas de tempo das casas. A própria arquitetura original, muitas vezes, é preservada. Vemos a cozinha, o quarto, o quintal.

Eu trabalho com a fotografia digital, mas com a velocidade da analógica. Faço poucos cliques e eles precisam ser muito bem pensados e cuidados, porque estou dentro de um espaço que não gostaria que as pessoas me vissem com a câmera. Então, eu vislumbro a imagem e espero o momento em que eu consiga construi-la para depois fotografar. É um clique que precisa ser muito certeiro.

Eu nunca pedi autorização para entrar nesses cinemas, porque eu queria que a experiência enquanto fotógrafo fosse mais ou menos a mesma de alguém que adentra o cine: essa pessoa não quer ser vista e não quer que ninguém saiba que ela está frequentando. Então, eu, enquanto fotógrafo, me colocava dessa forma também como alguém que está ali desbravando aquelas arquiteturas do desejo.

Foto da série Cine Casa, de Régis Amora, 2015-2022

A sensação das imagens é mesmo sinestésica, de quem adentra os corredores. De que forma você se coloca em relação às pessoas que encontra nos Cines?

RA: A movimentação é muito silenciosa. Os cines são os mais discretos possível – se tem placa, ela é muito pequena. Nunca fotografei a fachada, até para não identificar, mas elas têm uma coisa curiosa: a maioria tem jarros de planta na frente, palmeiras, exatamente para que a pessoa que vá passando pela calçada entre por entre as árvores e ninguém saiba para que lado foi.

Eu não fotografava as pessoas, porque acho que os espaços falam muito por si só. Pensei muito em como inserir o elemento humano, sem expor a identidade de quem frequentava os cines, porque esse não era meu objetivo de forma alguma. Então, comecei a fotografar as telas das TVs. É engraçado que os filmes são exibidos em telas de TV de tubo. Não são de LED, ou LCDs. Esses corpos estão plastificados e cristalizados nas telas. O elemento humano aparece no trabalho dessa forma: plasmado nas telas. Durante leituras de portfólio, já me perguntaram ‘onde está o sexo?’. Queriam que fosse menos subjetivo, mais escancarado. Já ouvi até que eu era muito “pudico” – o que acho, de alguma forma, violento também.

Foto da série Cine Casa, de Régis Amora, 2015-2022

Que efeitos esses comentários tiveram em você e no trabalho?

RA: Eu entendo que quando você lê uma fotografia você está dizendo mais de você do que da própria fotografia. Eu acho que o sexo está nas imagens, sim, mas dessa forma, plasmado nas imagens, em muitas camadas de leitura. Não me interessa falar de sexo explicitamente ali, mas falar de tempo, memória, repressão, espaços sexo-dissidentes do século 21. Não é um trabalho sobre sexo, nem nunca vai ser. Mas também pode ser a partir da relação com o outro. Mesmo que seja a partir da falta que sente, porque isso é importante também. Antes eu ficava mais incomodado com indagações sobre o sexo, mas eu acho que é um debate interessante de se levantar, porque se espera perversão, se espera a coisa quente – e vai ter, mas não só.  Eu quero dar cada vez menos o que esperam da gente.

Eu sinto muitas faltas também de, por exemplo, de não precisarmos nos adequar ao espaço urbano. As cidades foram construídas majoritariamente por homens brancos, hétero-cis, e até o estatuto da humanidade nos é roubado. Nosso amor é visto como perversão. Ele precisa estar dentro dos cinemas, das saunas, das boates, dos espaços de cruising. Vejo essa ocupação como resistência.

Foto da série Cine Casa, de Régis Amora, 2015-2022

Seu trabalho nos leva a refletir sobre qual imaginário que temos em relação a corpos LGBTQIAP+ e o próprio lugar do erótico queer. Como você acha que esses questionamentos que você levanta estão presentes nas imagens?

RA: Tem uma imagem que é de um jarro de flores de plástico e que lembra muito uma casa de vó. Você pode não entender por que aquilo está ali, em um lugar destinado a encontros sexuais entre homens. Mas eu acho que existe essa poesia, essa evocação de um lugar que realmente seja de pureza, de uma casa que acolhe as pessoas, como a gente se sente em uma casa de vó. Por que não? Por que sempre que tudo que está relacionado a LGBTs tem que ter sexo? Eu acho que não é por aí. O livro traz isso. Eu percebia que as pessoas iam para os cinemas nem tanto com destinação de ter sexo de alguma forma, mas de trocar afeto. São pessoas que estão buscando, dentro daquela escuridão, um pouco de liberdade. É um lugar em que elas conseguem se ver melhor.

Lógico que as imagens passam muito pela questão sexual, pelo registro das paredes e do que é escrito nelas. Passam por sensações mais fantasmagóricas, mas também por esse lugar cândido, de pureza, que me interessa muito. O livro tem muita cor, muito contraste, muito preto – um desafio grande quando falamos em impressão. Ao mesmo tempo, é vibrante, porque essas casas revelavam-se muito coloridas.

A gente tem um desafio cromático interessante de trazer as cores do nordeste, de casas cearenses para o espaço. Tem verdes muito bonitos, azul, amarelo, cores que vemos muito aqui. A gente não tem cinza, mas cores mais abertas. Até isso traz um pouco da sensação desse percurso de adentrar os espaços, porque a gente vai esperar que sejam lugares muito inóspitos – e eles não são, tem muita vida.

Foto da série Cine Casa, de Régis Amora, 2015-2022

Outro ponto forte da série são os enquadramentos, que muitas vezes jogam entre o relevar e o ocultar

RA: Enquanto fotógrafo e artista, não me coloco no dever de responder questões ou de trazer o que o público quer ver, como por exemplo, o sexo. ‘Tô falando de cinemão, então vai ter muito pau, cu, porra”. Mas não. Não quero me colocar no lugar de reforçar o fetiche, nem mesmo de ser o cara referência para falar de espaços sexo dissidentes na contemporaneidade. Eu acho que sou uma pessoa LGBT que vivencia esses espaços e que de alguma forma quer criar uma narrativa. Acredito que essas histórias precisam ser contadas. E eu não gostaria que um homem, hétero, cis, fosse contar sobre os cinemas.

Fotografia é o tempo todo inclusão e exclusão. É um processo de escolha, muitas vezes inconsciente, de excluir algumas dessas informações. E daí eu me perguntava: será que eu quero uma imagem de uma camisinha usada no chão? Ou será que eu quero mostrar uma TV com tela de tubo que a gente não sabe o que as pessoas estão fazendo? Me interessa muito a subjetividade. 

O Cine Casa também trabalha a memória e o direito à cidade. Como esses temas foram entrando no trabalho?

RA: Eu não sei por quanto tempo essas casas irão existir no centro da cidade com uma destinação afetivo-sexual, então tem um marco temporal importante. O processo do Cine Casa passa também pela história da cidade. O centro de Fortaleza na década de 20, 30, era ocupado por grandes aristocratas, pessoas da alta sociedade.

Me inquieta pensar por que o bairro deixou de ter status social para ser um lugar que não tem o mesmo valor por ter outros corpos ocupando aquele espaço. Ao mesmo tempo que tem uma desocupação, tem uma ocupação maior de pessoas LGBTs que se encontram por essa diversão e possibilidade de convivência. É um processo em que pessoas saem pela porta da frente e outras entram pela porta dos fundos dessa casa. Além disso, o centro de Fortaleza de dia é uma coisa, e de noite é outra.

Página do fotolivro Atlas Drag, de Régis Amora, 2021

O quanto seus trabalhos fotográficos anteriores, como o fotolivro Atlas Drag, estão presentes nesse?

RA: Se eu for pensar em uma conexão entre esses dois trabalhos, diria que em ambos a minha vivência está ali. O Atlas é um trabalho de muitos anos na arte drag, em performatividades de gênero, e não posso falar sobre isso sem mencionar os lugares onde acontecem, que geralmente são boates e saunas. Então, mais uma vez a gente está trazendo uma delimitação de até onde a pessoa LGBT pode ir no espaço urbano. Lógico que eu não trago isso dentro do trabalho, mas é uma camada que se discute. Só que o Atlas não tem um recorte específico da cidade de Fortaleza, enquanto o Cine Casa tem.

No Atlas Drag a presença dos rostos e das identidades é mais constitutiva do livro também

RA: Isso. No Cine Casa a gente tem uma performance que está nas entrelinhas, nas camadas de memória que existem ali. No Atlas, o elemento humano e a performatividade estão nas linhas, nas costuras, em tudo que envolve a performatividade de gênero. Mas há um entrelaçamento entre os dois trabalhos, porque nos dois são pessoas ocupando determinados espaços de forma efêmera.

Se você for perceber, no Cine Casa a gente tem pessoas que vão em busca de prazer, encontros afetivos-sexuais, mas que são efêmeros – tem data e hora para acabar. A performance drag também tem data e hora para acabar. Ela acontece em determinado momento, quem viu, viu, quem não viu, perdeu. Então, quem está ali testemunhando a afetividade dentro do cinema também sabe que não é sobre uma longevidade. Fica muito mais na memória de quem vivenciou. Não tinha pensado sobre isso ainda, mas talvez a gente tenha dentro na experiência enquanto pessoa LGBT uma relação com o tempo e com a efemeridade das coisas que é muito presente.

Foto da série Cine Casa, de Régis Amora, 2015-2022

Você sempre pensou que o Cine Casa se transformaria em um fotolivro?

RA: Não, na verdade não tinha pensado. Imaginava participar de exposições. O Cine Casa já participou de salões de arte e alguns festivais de fotografia, mas quando eu fotografava não pensava na dinâmica do fotolivro. Isso veio depois.

Vi no fotolivro a possibilidade desse trabalho circular de uma outra forma, porque através de uma exposição tem uma limitação, de que as pessoas precisam entrar na galeria para ter acesso. Nos últimos quatro anos, o livro tornou-se algo que me interessa muito como suporte para o meu trabalho. Venho experimentando através de fotolivros, fotozines, e o Cine Casa veio nessa esteira de experiências.

O livro tomou forma tanto no grupo de estudos que participei, conduzido pelo fotógrafo André Penteado, quanto no Dobras de Si, um curso de livro de artista da Estela Vilela e da Ana Francotti. Foram espaços onde eu pude parar e pensar como funcionaria o Cine Casa. É outra narrativa, porque daí pensamos o livro enquanto objeto e em como comunicar.

Foto da série Cine Casa, de Régis Amora, 2015-2022

E como foram as escolhas formais do livro enquanto objeto, como a inserção de dobras francesas que entrecortam as páginas?

RA: Pensei no livro como se fosse uma caixa preta, no desejo de trazer um pouco dessa escuridão que estamos imersos. As dobras francesas vêm a partir da ideia de construir uma narrativa a partir dos espaços, dos corredores, das janelas, das portas, da arquitetura de casa, para que o leitor possa ir se esgueirando, caminhando por esses caminhos escuros dos cinemas. É como se eu desse a mão para o leitor e fosse guiando. A gente para e contempla uma TV, depois volta para escuridão, depois passa por uma sala, por uma cozinha. Foi uma brincadeira de edição que começamos a fazer. 

As dobras francesas entram no sentido de proporcionar para o leitor uma experiência de voyeur, porque ele tem que abrir a dobra para contemplar o que tem dentro – se tiver curiosidade. Elas ficam em páginas escuras, envoltas em outras páginas escuras. Então, quem vê pode passar sem perceber, que é exatamente o que acontece com muitas pessoas que estão no espaço urbano. Os cinemas são invisibilizados e meio camuflados na paisagem. Um leitor mais desavisado pode passar batido por essas imagens, ao mesmo tempo que pode ver a fresta e abrir.

A ideia é fazer com que o leitor tenha a experiência de desbravar um pouco desse universo, de entrar na tela e no filme. O fotolivro acaba sendo um pouco uma experiência de cinema, com fades e espaços de respiros. O Cine Casa procura trazer essa pulsão, esses momentos de vertigem, fotos tremidas subindo e descendo uma escada, como se estivesse com pressa, para voltar para o trabalho porque estava dando uma escapada no horário do almoço para ir ao cinema. Eu acho que ele procura trazer essas imagens que estão por trás das imagens. São histórias que eu via acontecendo ali.

Foto da série Cine Casa, de Régis Amora, 2015-2022

Para fechar, qual a previsão para o lançamento do Cine Casa?

RA- O livro foi o vencedor do Prêmio Lovely, durante o Festival Imaginária 2022, e a gente está em busca agora de recursos para publicação. Com o prêmio, ganhei também uma residência com profissionais envolvidos no universo do fotolivro para que a gente pudesse afinar algumas questões e agora estamos na versão final. A ideia é que até o segundo semestre de 2024 a gente esteja com o livro aí. ///


Anna Ortega é repórter, interessada na escuta e escrita de processos artísticos. Trabalha com jornalismo cultural e cobre temas relacionados a direitos humanos e educação. Tem textos publicados em veículos como UOL, Revista Select, Nonada Jornalismo e outros. É também artista e fotógrafa.