Hildegard Rosenthal, Alice Brill e Judith Munk: A nova mulher imigrante e a fotografia moderna brasileira
Publicado em: 8 de março de 2018Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, as mulheres sempre tiveram um papel importante na história da fotografia. Desde a chegada da nova técnica e o estabelecimento de estúdios fotográficos nas grandes capitais mundiais, até o predomínio da imprensa ilustrada a partir de meados do século passado, as mulheres estiveram em grande número praticando a fotografia como profissão. E no Brasil não foi diferente.
No entanto, é curioso notar que não apenas no Brasil, mas também na América Latina, algumas das mais relevantes fotógrafas do início do século 20 foram imigrantes alemãs e húngaras, forçadas a deixar seus países de origem por conta da ascensão do nazismo entre as duas grandes guerras.
É o caso, por exemplo, da fotógrafa de origem húngara Kati Horna (1912-2000), que imigrou para o México, e as de origem alemã Annemarie Heinrich (1912-2005) e Grete Stern (1904-1999), que foram para a Argentina. Para o Brasil, vieram três importantes nomes: Hildegard Rosenthal (1913-1990), de origem suíço-alemã, a alemã Alice Brill (1920-2013) e a húngara Judith Munk (1922-2004). Todas elas fazem parte de um momento específico da fotografia latino-americana e brasileira, que certamente não foi o de inauguração da presença feminina nesse métier, mas sim da consolidação da linguagem visual da fotografia moderna, um momento bastante marcado pela presença de estrangeiros, sobretudo de mulheres estrangeiras.
Neste período, entre o fin-de-siècle e a década de 1930, indo até os anos de 1950, aconteceu uma transformação da multifacetada construção cultural da figura e do papel social da mulher. Ao redor do mundo, surgia o termo nova mulher (neue Frau em alemão, new woman em inglês, garçonne em francês), e algumas novas denominações, como flapper, trampky e sufragista, para dar conta da mulher moderna.
Essa transformação foi impulsionada pela entrada de um número grande de mulheres na esfera pública e no mercado de trabalho durante a Primeira Guerra Mundial. E foi disseminada em boa medida pela imprensa ilustrada de massa, atravessando fronteiras e oceanos especialmente durante as décadas de 1910 até 1930.
É neste novo contexto social, político e cultural que saem da Europa as fotógrafas Alice Brill, Hildegard Rosenthal e Judith Munk. Brill chegou ao Brasil em 1934, ainda adolescente. Seu pai era um artista alemão que se viu obrigado a fugir do nazismo com a família. Seguindo seus passos, Alice também se tornou artista, circulando entre grupos paulistas durante a década de 1940. A fotografia veio em uma viagem de estudos aos Estados Unidos, entre 1946 e 1947. Quando retornou, passou a trabalhar para a imprensa ilustrada paulistana, retratando a metrópole em toda sua modernidade. Sem abandonar a produção artística, Brill realizou importante trabalho fotográfico, além de acadêmico e crítico.
Hildegard Rosenthal chegou ao Brasil em 1937. Apesar de ter nascido na Suíça, viveu até 1933 em Frankfurt, na Alemanha. Por um breve período, entre 1934 e 1935, morou em Paris. De volta à sua cidade natal, frequentou um curso de fotografia onde aprendeu a lidar com as modernas câmeras de pequeno formato, como a Leica, e também técnicas de laboratório. Logo que chegou a São Paulo, conseguiu trabalho em um laboratório fotográfico, passando, pouco depois, a trabalhar como repórter fotográfica para a agência Press Information, retratando diversos artistas e espaços urbanos, em especial a capital paulista.
A última destas fotógrafas a chegar foi Judith Munk, em 1949. Húngara como Kati Horna, e judia como quase todas estas imigrantes, Munk havia aprendido o ofício da fotografia em um estúdio em seu país natal. Ao chegar ao Brasil, conseguiu trabalho com o fotógrafo austríaco Kurt Klagsbrunn, ele também imigrante fugido da guerra na Europa. Trabalhando no Rio de Janeiro, Munk logo se tornou sócia de Klagsbrunn, retratando a vida social e o cenário político carioca a partir da década de 1940 para diversas revistas ilustradas, segundo indica o pesquisador Mauricio Lissovsky.
Com idades muito próximas, o trio Rosenthal, Brill e Munk, e incluindo Kati Horna, Annemarie Heinrich e Grete Stern que emigraram para México e Argentina, têm diversos pontos em comum em suas biografias. Estas imigrantes europeias fazem parte de uma mesma geração de mulheres que conseguiu se utilizar das possibilidades de estudos e independência financeira oferecidas pela fotografia. Com exceção de Heinrich, que aprendeu o oficio em família, Horna, Stern, Rosenthal e Munk tiveram uma educação formal e abrangente em fotografia na Europa, ou, no caso de Brill, nos EUA.
Nesse sentido, o desenvolvimento da nova mulher foi especialmente significativo para a história da fotografia brasileira e latino-americana, por ser um traço cultural forte na Alemanha do período entreguerras, de onde vieram ou por onde passaram boa parte das fotógrafas que terminaram por se estabelecer aqui durante as décadas de 1930 e 1940. O ofício da fotografia foi muito procurado por estas novas mulheres, uma vez que era dos poucos já franqueados à participação feminina naquele período.
A Alemanha, em especial, conseguiu neste período reunir uma sobreposição de fatores que influíram na importante presença de mulheres atuando como fotógrafas. Uma educação mais liberal e também uma maior liberdade de costumes – inclusive com o reconhecimento do direito ao prazer sexual – permitiu às jovens da classe média alemã uma formação mais livre e uma maior busca de expressão criativa. E a fotografia era, nas primeiras décadas do século 20, uma das poucas possibilidades de continuidade dos estudos, além de uma carreira profissional socialmente aceita para mulheres.
Na maioria das vezes, essas jovens deixavam suas cidades natais e viajavam para estudar nos grandes centros. Na Europa continental do início do século passado existiam importantes escolas de fotografia em Viena, Hamburgo, Dresden, Berlim e Paris. No caso específico da Alemanha, já havia instituições educacionais voltadas para o ensino da técnica e da impressão fotográfica para mulheres antes da virada do século 19 para o século 20. No entanto, é significativo que este treinamento era voltado para o mercado e para o trabalho em estúdio, especialmente o retrato, incluindo a feitura das cópias fotográficas e o trabalho no laboratório, além do retoque manual das imagens. A fotografia era ensinada para elas como um ofício, que era aberto para as mulheres justamente porque na época ainda predominava a visão de que a fotografia não era arte. As academias de Belas Artes só foram admitir mulheres décadas depois.
Assim, quando o antissemitismo, as perseguições políticas e as crises econômicas derrubaram a segurança financeira de muitas famílias europeias de classe média, estas jovens puderam assumir a fotografia como profissão para seu próprio sustento em países para os quais emigraram. A fotografia surgiu como um métier perfeito nesses casos, por ser um trabalho especializado, mas autônomo. E também pela não necessidade de o imigrante recém chegado ser fluente na língua do novo país. Isso tudo em um momento em que se consolidava a formação de uma indústria de comunicação de massas baseada na imagem.
Isso não quer dizer que todas as fotógrafas mencionadas neste texto se encaixavam na denominação de nova mulher. Ou que todas as mulheres fotografadas por elas a estivessem incorporando. Mas este novo protagonismo da mulher era uma questão política, social e cultural que se apresentava a estas fotógrafas naquele momento, e que pode sim, por vezes, ser identificada nas suas imagens. Nesse sentido, as trajetórias destas fotógrafas acabam se tornando casos paradigmáticos dentro desta geração de fotógrafas modernas, ajudando a avançar os debates sobre gênero e fotografia.
Mulheres como Hildegard Rosenthal, Alice Brill e Judith Munk, entre muitas outras, fazem também parte de um momento de transição da história da fotografia, em que predominaram as evoluções técnicas, em especial as câmeras compactas, e a enorme presença das revistas ilustradas e da linguagem da reportagem fotográfica, que acabaram por suplantar em grande parte a fotografia de estúdio. Nesse sentido, apesar de não serem as primeiras fotógrafas mulheres a praticar a reportagem fotográfica, elas participaram ativamente, e foram fundamentais, para o desenvolvimento da fotografia moderna no Brasil.
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Leia mais sobre a vida e a obra de Alice Brill e Hildegard Rosenthal do site do IMS
Erika Zerwes é doutora em História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP e pós-doutora pelo Museu de Arte Contemporânea da USP.
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