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John G. Morris e a entrevista que não aconteceu

Carolina Arantes Publicado em: 22 de setembro de 2017
John G Morris, novembro de 2009. Foto de Oliver Morris/Getty Images.

John G Morris, novembro de 2009. Foto de Oliver Morris/Getty Images.

Desde o dia 2 de julho de 2014 tento entrevistar o editor e fotógrafo John G. Morris. No início das tentativas, Morris tinha 98 anos e lançava na França seu primeiro livro de fotografias, Em algum lugar na França – verão 1944 (Quelque Part en FranceL’Été 1944), se auto-intitulando, com seu característico senso de humor, “o mais velho dos fotógrafos emergentes”. Achei que seria uma boa ocasião para entrevistar esse homem que atravessou o século 20 no fotojornalismo e foi responsável pela seleção e divulgação de algumas das imagens mais significativas da história contemporânea.

Mas, talvez pela idade já avançada, ou pelo fato de o livro não ter sido publicado no Brasil, não pareceu interessante aos seus assessores encaixar uma entrevista extra na agenda já sobrecarregada. Sem me deixar convencer de que a conversa não ocorreria, tentei outras vezes. No entanto, foi apenas recentemente, em junho de 2017, que nosso encontro se encaminhava para sua concretização: perguntas prontas, sua agente pessoal respondendo atenciosamente aos meus e-mails e Morris, agora a caminho dos 101 anos e num momento mais tranquilo, sem compromissos e datas festivas.

Eram tantas questões importantes sobre ética, jornalismo e imagens na época da pós-verdade. Uma admiração jovem e ávida me movia, e eu ainda pretendia encaixar algo sobre a América Latina. Afinal, ao longo do século passado, ele foi editor de algumas das publicações americanas mais importantes, como Life, New York Times, Washington Post e National Geographic. O que teria a dizer – em respingo dos fatos que vivenciou – sobre nós?

Infelizmente John G. Morris faleceu no dia 28 de julho, deixando comigo uma sensação de frustração. A experiência do paradoxo, que ele mesmo atribuiu como característica inerente ao fotojornalismo, concretizou-se nesse encontro falido, algo entre a imersão na sua vida de jornalista e a busca, em vão, desse contato.

Mas quem era John G. Morris e por que buscá-lo com tanto afinco? Ou, melhor, como definir a importância de alguém cuja atuação foi definitiva para a compreensão do homem neste século? E não se trata “somente” do fato de ele ter sido o editor de fotografia de algumas das mais importantes publicações em momentos históricos – e isso quando o jornalismo movimentava diretamente as linhas políticas. Mas, sobretudo, porque, ao fazê-lo, Morris reuniu na fotografia humanismo, criatividade e informação.

Ainda que detestasse a polêmica em torno das fotos do desembarque dos americanos em território francês na histórica batalha da Segunda Guerra Mundial, o famoso Dia D, ela ficou praticamente órfã com sua morte. Talvez somente ele pudesse elucidar com precisão se as imagens de Robert Capa para a revista Life foram realmente queimadas pelo laboratorista ou se o famoso fotógrafo húngaro se fragilizou enquanto profissional, atuando como civil em um dos momentos mais terríveis da humanidade. Se estas únicas 11 imagens do desembarque ainda são um mistério – criado também pelo próprio editor que mencionou em entrevista ao New York Times, em 2016, a possibilidade de Capa não ter conseguido produzir mais naquele momento –, a responsabilidade de ter carregado sozinho um segredo como esses é real. Morris optou até o último momento por manter a heroicidade dos americanos encarnada na figura do fotógrafo, em detrimento da clareza sobre as condições reais da produção daquelas imagens. Não é fato anódino. Ao contrário, é mostra clara deste métier. Como editor da revista semanal mais lida na América e referência internacional importante, John Morris vestiu a condição profissional que lhe foi atribuída: a verdade jornalística é uma criação baseada em fatos e valores.

E desafios não faltaram na vida desse homem cuja profissão se alinhou à história de guerras e conflitos globais. É possível imaginar os riscos inerentes às decisões de um editor de fotografia recém-chegado ao New York Times, em 1967. O jornal contratara Morris para reformular sua linguagem visual, dando mais destaque e protagonismo às imagens. Poucos antes de 1968, ele talvez não imaginasse que em menos de cinco meses de casa, teria nas mãos a responsabilidade de mostrar a violência crescente da Guerra do Vietnã (que corajosamente denunciou em primeira página com a famosa foto de Eddie Adams do tiro à queima-roupa na cabeça de um prisioneiro vietnamita) e os assassinatos de Martin Luther King e do senador Robert F. Kennedy (Morris estava no Ambassador Hotel, em Los Angeles, no momento do atentado).

Mas antes de assumir o cargo de editor de fotografia de um dos jornais mais importantes do mundo, Morris trabalhou em publicações de menor impacto político. Mesmo assim, deixou sua marca. Como foi o caso da revista feminina semanal Jornal da mulher do lar (The Ladie’s Home Journal), do qual foi editor de fotografia e escalado para transformar a linha editorial da revista, produzindo conteúdos mais leves, mas que questionassem valores conservadores da época. Foi assim com a reportagem “Pessoas são pessoas no mundo todo” (“People are People the World Over”), com retratos de famílias do mundo inteiro. A matéria, que buscou dar uma dimensão internacional ao tema (algo raro naqueles tempos), foi inspiração para a grande exposição A família do homem (The Family of Man), marco na história da fotografia, organizada por Edward Steichen para o Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1955.

Encontro da Agência Magnum em Paris, 1957. Na frente, da esquerda para a direita: Inge Bondi, John Morris, Barbara Miller, Cornell Capa, Rene Burri e Erich Lessing. No meio: Michel Chevalier. Atrás, da esquerda para direita: Elliott Erwitt, Henri Cartier-Bresson, Erich Hartmann, Rosellina Bischof, Inge Morath, Kryn Taconis, Ernst Haas e Brian Brake. © Coleção Magnum | Magnum Photos

John Morris teve o privilégio de observar o mundo por meio do olhar de fotógrafos cruciais daquele período. Trabalhou diretamente com Margaret Bourke-White e também foi diretor executivo da Magnum a partir de 1953, cargo que ocupou por nove anos, na era de ouro da agência. Foi quando desenvolveu uma amizade íntima com Robert Capa (seu “irmão húngaro”, como o chamava), Henri Cartier-Bresson e W. Eugene Smith, entre tantos outros nomes icônicos na história da fotografia.

Segundo amigos próximos, Morris era um homem cheio de entusiasmo pela vida, sempre atento às novidades, de olhar desperto e espírito concentrado, movido por intensa curiosidade e certo gosto por provocações. Em reportagem sobre filhos de mães solteiras publicado na revista Life, usou um retrato coletivo de crianças onde não era possível identificar quais eram os filhos com e sem pais.

Viúvo três vezes, tendo perdido dois filhos, Morris encontrou sua última companheira aos 87 anos, com quem permaneceu até seu falecimento. Internado com infecção pulmonar e outras fragilidades advindas da idade, finalizava seu próximo livro: uma recapitulação dos principais assuntos do século através de todas as matérias e reportagens importantes que publicou enquanto editor. Humanista e pacifista, Morris se mostrava preocupado com os acontecimentos recentes e falava abertamente sobre a guerra como um comércio lucrativo, ponto no qual residia sua força infeliz, sua inevitabilidade.

Nessas minhas tentativas de entrevistá-lo, havia também o interesse de buscar alguns elos com o passado e quem sabe compreender o que será da fotografia no jornalismo. No momento atual, em que a fotografia se transborda em linguagens inesperadas, se transforma ela mesma na mensagem (sobretudo via mídias sociais), se difunde e se multiplica à exaustão, carregaria ela ainda, e sozinha, a experiência do instante fixo? Seria ela a portadora de memória? Ou teria ela se perdido na ilusão da pós-verdade? Em entrevista ao New York Times no ano passado, Morris afirma que “se as pessoas acham que a verdade não é mais importante, então será o fim do jornalismo. E teremos um problema muito sério. Esperando pelo melhor, estou atento a que o pior aconteça”.

John Godfrey Morris levou com ele estas e tantas outras reflexões importantes, cujo fio histórico, a partir da posição de testemunha ocular de tantos fatos, somente ele poderia tecer conosco. Sua vida profissional marcou várias gerações. A frustração dessa não entrevista é como ter, por alguns breves momentos, acesso à memória viva de um homem que viu algumas das imagens mais icônicas do século 20 passar diante dos seus olhos antes de chegar aos nossos.///

 

Carolina Arantes é fotógrafa, jornalista e reside atualmente na França. Desenvolve trabalhos pessoais de longo prazo, além de freelancers para revistas e jornais brasileiros e internacionais. Seu documentário fotográfico, First Generation , recebeu a bolsa da Fundação Lagardère em 2015 e acaba de receber a bolsa Firecracker para mulheres fotógrafas.

 

 

 

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