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Falsas memórias e assassinatos na Islândia dos anos 70 no fotolivro de Jack Latham

Publicado em: 23 de outubro de 2017

Kristjan, fotografia de arquivo do caso publicada no livro Sugar Paper Theories, 2016

Em 1974, em Reiquiavique, capital da Islândia, dois casos de desaparecimento tomaram conta dos jornais locais. Alguns suspeitos foram acusados, julgados e presos, mas a falta dos corpos das vítimas e questionamentos a respeito das técnicas de investigação até hoje são um prato cheio para teóricos da conspiração islandeses. Apesar do fotógrafo galês Jack Latham não ser um deles, teve sua atenção capturada pela história em que “algumas pessoas confessaram um assassinato do qual não se lembram exatamente”. O resultado foi o livro Sugar Paper Theories, ganhador dos prêmios Bar Tur (2015) e Kassel (2017) de melhor fotolivro.

Sugar Paper Theories revisita a investigação sobre um jovem de 18 anos que sai bêbado de uma boate e resolve voltar a pé para casa, numa caminhada de cerca de dez quilômetros e nunca mais é visto. E, alguns meses depois, um pai de família de 32 anos que sai de casa para encontrar um estranho e também não volta. “Nos anos 1970, as teorias em torno dos desaparecimentos se fixavam em temas importantes para a Islândia da época, como contrabando, drogas e álcool. Altos escalões do governo investigaram os dois casos. Mas, no final das contas, um grupo de jovens que vivia à margem da sociedade foi acusado dos crimes. Todos acabaram fazendo confissões que levaram a prisões, mas nenhum conseguiu lembrar com clareza do que aconteceu nas noites dos desaparecimentos”, comenta Latham.

Quase 40 anos depois, Latham voltou à Islândia para fotografar os lugares e pessoas envolvidos na investigação. “Eu utilizei fotografias e materiais de imprensa da época para, com as imagens feitas por mim, criar um livro que discuta a questão de memórias autênticas e/ou construídas”, diz o fotógrafo. De passagem por Santos, onde participou do festival Valongo de fotografia, Latham conversou com a ZUM sobre a investigação, seus livros, a criação de memórias e o papel da fotografia nessa construção.

  

De onde vem o nome do seu mais recente e premiado livro: Sugar Paper Theories?

Jack Latham: Quando comecei o projeto, conheci um teórico da conspiração que tinha passado praticamente todos os dias, desde os anos 1970, quando tudo aconteceu, tentando desvendar o caso. Ele se embrenhou em centenas de documentos, arquivos de provas, recortes de jornais, para tentar construir uma linha do tempo dos fatos. E ele acabou desenhando essa linha do tempo em um “papel de pão” (sugar paper). A primeira foto do meu livro, que também é a capa, é justamente o diagrama feito por ele. Fiquei com essa ideia de que a teoria dele estava no papel de pão. E quando pensei no projeto como um todo, me veio à cabeça: esta é a minha teoria, a minha linha do tempo, a minha teoria no papel de pão. É daí que o título vem. E se você olhar de perto, o diagrama dele tem estrelas, fita crepe, carinhas sorrindo, o que faz parecer uma investigação meio infantil do caso. Foi isso que quis sugerir, porque não sou um jornalista investigativo, sou um fotógrafo que faz uma investigação amadora.

Mesa do teórico da conspiração, fotografia de Jack Latham do livro Sugar Paper Theories, 2016

Em Sugar Paper Theories, fica claro que você não deseja resolver o caso do duplo desaparecimento. Sendo assim, qual sua intenção em contar essa história?

JL: Sempre foi dito que essas duas pessoas foram presumidamente assassinadas, já que seus corpos nunca foram encontrados, assim como evidências ou provas definitivas de um assassinato. Então, se eu fosse fazer um projeto sobre o que aconteceu com eles, trabalharia nele indefinidamente, porque seus corpos nunca foram encontrados. Eles são considerados mortos. Ao contrário do que se imagina, assassinatos ou pessoas desaparecidas não são novidade na Islândia. Para mim, o que há de mais interessante sobre o caso é o fato de que seis pessoas inocentes foram convencidas pela polícia de que haviam cometido um assassinato, a partir de uma história que foi contada pela polícia. Acho interessante o fato que raramente temos memórias vívidas, e que mesmo nossas memórias mais claras não sejam válidas em um tribunal. Nossas memórias são como sensações vagas, cheiros que acabam nos enganando. E com uma fotografia eu acho que é a mesma coisa. Você pode fotografar algo e nós podemos assumir que é verdade, mas a fotografia sempre é enviesada pelo desejo do que o fotógrafo decidiu retratar ou o contexto. As fotografias podem ser bastante enganosas, e acho que acontece a mesma coisa com a memória.

Você acredita que seu livro pode ser lido como um caso de falsa memória em tempos de pós-verdade?

JL: Quando eu comecei o projeto, em 2014, o termo fake news não era tão popular quanto agora. Desde a sua invenção a fotografia era considerada a verdade absoluta e o fato em si. Mas já vivemos tempo suficiente, como sociedade, para entender que não é mais o caso. A maneira como eu fiz Sugar Paper Theories, e onde boa parte do meu trabalho reside, é na zona cinzenta entre fato e ficção. Acredito que seja um lugar bastante interessante, pois quando você se permite essa liberdade, não seguir algo pela verdade, porque no final das contas a fotografia nunca representa a verdade, você se abre para muitas possibilidades criativas. A fotografia é a mídia perfeita para explorar a memória. A beleza de uma fotografia é que ela apresenta o fato e a ficção em medidas iguais. A fotografia é e não é verdade, ela é uma espécie de superposição, é tudo ao mesmo tempo e não é. E você, como espectador, projeta coisas na fotografia. É por isso que adoro essa mídia. Hoje as pessoas se fotografam com celulares. Suas vidas estão sendo documentadas e o que escrevem no Facebook pode não ser a verdade sobre como estão se sentindo ou ser exatamente o que elas são na vida real. As pessoas, por estarem  “autoeditando-se” online, agora começam a entender que a mídia também pode “editar” as histórias que publicam. Culturalmente, como sociedade, estamos acreditando menos nas histórias que nos contam. Seja pela mídia ou pela fotografia.

 

Sobre o projeto, sempre foi sua vontade publicá-lo como livro?

JL: Sim, sempre quis que a maioria dos meus projetos se tornasse um livro, sempre os vi como um objeto físico. E também porque, se observar meu histórico de trabalhos, sou muito influenciado pelo cinema. Meu primeiro livro, A Pink Flamingo, é uma espécie de road movie, e o Sugar Paper me lembra um filme noir em formato de livro. Quando comecei Sugar Paper já imaginava que seria um livro. Além disso, em 2015, ganhei um prêmio de 20 mil libras da Photographer’s Gallery [de Londres] para fazer um livro, o que acabou financiando a produção. Só há duas semanas, na Islândia, abri a primeira exposição sobre o trabalho. Com o apoio da polícia de Reiquiavique e o Arquivo Nacional da Islândia, estamos expondo com minhas fotografias algumas provas originais do caso. Pegamos essa incrível história policial islandesa e a deslocamos para um contexto artístico, dentro de um museu, permitindo que as pessoas re-investiguem o caso com as ferramentas que a polícia tinha na época. A exposição ficou completamente diferente do livro. Eu tentei encontrar novas maneiras de fazer com que as pessoas interajam com a psicologia e com a história. Trabalhei com Gísli Guðjónsson, renomado psicólogo criminal, para que a exposição permita uma exploração física sobre o que é uma evidência. Se alguma coisa é encenada para uma fotografia da polícia, como isso pode não ser uma prova?

 

E qual foi a repercussão do livro na Islândia?

JL: Bem, cerca de um mês antes do meu livro ser impresso, eu ainda estava pesquisando! Foi tudo muito acelerado. Comecei o trabalho em 2014 e resolvi me inscrever em alguns prêmios para ajudar a financiar o projeto. Ganhei o prêmio Bar Tur de Fotolivro em 2015 e fui informado que o livro que tinha que ficar pronto em setembro de 2016, o que me deu cerca de oito meses de prazo. Tive que passar um ano inteiro mergulhado no livro, e quando ele finalmente foi publicado estava exausto criativamente. Para ser honesto, quando meu livro saiu nem quis olhar para ele por um tempo. E quase imediatamente depois ele entrou na lista do prêmio de primeiro fotolivro da Paris Photo-Aperture – e é por isso que estou aqui no Brasil agora. Do nada, alguns dos fotógrafos que eu mais admiro estavam me mandando emails para dizer o quanto gostaram do trabalho. Foi como a história do sapo na panela de água quente, em que se a temperatura é aumentada de grau em grau ele não percebe que vai ferver e morre. Antes que eu me desse conta, o livro esgotou, começou a valer centenas de libras e por alguma razão o mundo da arte se interessou por ele. Na verdade, só agora que estou emergindo e percebendo a explosão que aconteceu. Ainda me belisco para acreditar e espero o dia em que alguém me dê um tapinha no ombro e diga que foi tudo um grande engano. Passei por essa espécie de depressão pós-parto depois que o livro saiu, só agora estou me dando conta do impacto causado por ele.

Temos cada vez mais exemplos de livros de fotografia documental que trafegam pelo universo dos livros de arte. O que você acha deste movimento?

JL: Você conhece o fotógrafo Mark Powell? Ele vive em Brighton, onde eu moro atualmente, e foi quem me disse para insistir no projeto de Sugar Paper Theories. Ele me contou a seguinte história: imagine que você está em um trem e pergunte a todos no vagão se eles comprariam um livro de fotografia. Talvez uma ou duas pessoas, com sorte, diriam sim. Mas se você disser: você estaria interessado em comprar um livro sobre um crime e a síndrome da falsa memória? Boa parte responderia algo do tipo: isso parece bastante interessante. Então foi muito importante para mim fazer um livro sobre psicologia e sobre algo instigante para pessoas fora da fotografia. Meu primeiro livro foi um fotolivro para fotógrafos. Cheguei a me perguntar por que fazer livros que só interessam a outros fotógrafos. Para mim, o maior elogio foi quando Sugar Paper Theories saiu e soube que estudantes de psicologia estavam comprando o livro. Suspeito que eles nunca tenham comprado um fotolivro, mas sinto que cheguei a quem estuda psicologia e está interessado em fotografia e também aos ligados em fotografia e interessados em psicologia. Acho que essa pegada multidisciplinar vai se tornar mais e mais popular. Temos que limitar a produção de fotolivros sobre fotos antes que as pessoas fiquem entediadas. Acredito que o livro é um suporte interessante para introduzir novas ideias ao público. Se eles conseguirem ver além das fotografias, aprenderão algo. Gosto dessa ideia.

 

Falando um pouco das fotos que você fez para o livro: elas são frias, passam uma sensação de congelamento. Têm alguma relação com uma vontade de congelar o tempo e voltar aos anos 1970?

JL: Bem, na Islândia sempre parece que está frio. E está. Nunca vi uma foto quente da Islândia, só os vulcões. Mas é a mesma coisa que aconteceu com A Pink Flamingo: se você folhear meus fotolivros e desfocar o seu olhar, só perceberá algumas cores. Pink Flamingo é marrom e amarelo. E Sugar Paper é muito branco, com o vermelho sempre surgindo. Eu gosto disso, quando as cores se espalham por uma série, dando uma espécie de continuidade. No caso de Sugar Paper, quis que em toda foto existisse uma sensação de algo sinistro.

 

Você disse no início de nossa conversa que os teóricos da conspiração guiaram o seu trabalho de alguma maneira. No entanto, você apenas mostra alguns retratos dessas pessoas, sem dar voz a eles nos textos do livro. Por que essa decisão?

JL: Boa parte do projeto diz respeito às seis pessoas envolvidas no caso, que inclusive ajudaram a definir o design e o sequenciamento de imagens do livro. Os três teóricos da conspiração ajudaram escolhendo os recortes de jornais, me informando quais seriam os mais relevantes. Mas é importante ressaltar que o professor Gísli Guðjónsson, que escreveu o texto, faz o papel da testemunha especialista. Tudo o que ele escreve é factual. Minhas fotos são subjetivas, não factuais. Eu estava tentando fotografar 1970 em 2016. E acontece algo interessante quando essas fotos subjetivas são colocadas lado a lado com textos realmente importantes, porque meu trabalho ganha certa autoridade, que talvez não devesse ter. Mas, ao mesmo tempo, era importante reconhecer esses investigadores amadores, esses teóricos da conspiração. Pensando na autenticidade do livro, senti que as pessoas seriam mais céticas sobre o que aconteceu se a voz fosse a dos teóricos da conspiração. Já Gísli Guðjónsson é um psicólogo criminalista famoso, quase um cavaleiro no Reino Unido. Ele, juntamente a um colega, descobriu o que ficou conhecido como memory distrust syndrome [síndrome da falsa memória, em tradução livre]. Sua palavra é praticamente lei, e com isso não quero dizer que os teóricos da conspiração não estão fazendo um ótimo trabalho. Mas no momento de contar a história para outras pessoas, foi uma escolha entre fontes bem validadas e acreditar demais em conspirações.///

 

Jack Latham nasceu e cresceu no País de Gales e graduou-se em Fotografia Documental pela Universidade de Newport. Possui diversos livros auto-publicados e em 2015 recebeu o Bar Tur Photobook Award pelo seu trabalho Sugar Paper Theories.

 

 

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