A arte e o ofício de German Lorca: uma distinção ainda necessária?
Publicado em: 23 de fevereiro de 2017Em seu ensaio “Pequena história da fotografia”, de 1929, Walter Benjamin dizia que o caráter revolucionário da imagem fotográfica residiria em sua capacidade de revelar um mundo escondido na normalidade visual do cotidiano, apreendendo e dando forma ao que ele nomeava o “inconsciente óptico”, tão importante para o conhecimento do homem moderno quanto o inconsciente pulsional. Boa parte da fotografia moderna corresponde a esse chamado, e ainda hoje somos tocados pelo aqui e agora das imagens despretensiosas de um café parisiense, de uma vitrine em uma grande cidade, de uma esquina vazia, de uma vista aérea da multidão na praça ou de um corpo feminino na contraluz, produzidas nas primeiras décadas do século 20. Sem dúvida, a fotografia moderna ajudou a formar uma nova sensibilidade visual, a que somos devedores ainda hoje.
A exposição German Lorca: Arte Ofício/Artifício, em cartaz até o próximo domingo, 26/2, no Sesc Bom Retiro, em São Paulo, com curadoria de Eder Chiodetto, apresenta uma parcela significativa da produção desse artista que foi um dos pioneiros da fotografia moderna no Brasil. Contador por profissão, Lorca inicia sua produção de maneira autodidata entre 1946 e 1947, trabalhando com uma câmera Welti 35 mm, e se dedicando a fotografar tanto a vida doméstica quanto a cidade de São Paulo e seu cotidiano. Apenas em 1948 ingressa no famoso Foto Cine Clube Bandeirante a fim de aprender o que se chamava de “arte fotográfica”. Envolve-se intensamente com a vida do clube, participando de seminários, concursos, salões e excursões promovidas pelos fotoclubistas.
Se de maneira intuitiva Lorca buscava revelar desde sempre a beleza encerrada no ambiente urbano, na vida da cidade em mutação, é certo que no FCCB aprende a dominar a estética e a técnica que permitem transformar esse sentimento em imagem. Tal estética, comum à fotografia moderna internacional, define-se pela não limitação da imagem final a seu referente. O artista-fotógrafo é aquele que de maneira consciente reproduz o real como imagem plástica, dotada de singularidade própria. Por isso, tão importante quanto o exercício da visão é o momento posterior de experimentação no laboratório, em que diversas intervenções – como solarizações, sobreposições, cortes e intensificações de contrastes – são realizadas a partir do negativo.
O primeiro módulo da exposição, nomeado “Arte”, reúne fotos icônicas da produção de Lorca das décadas de 40 e 50, como Apartamentos (1951), Oca (1954), Fumante (1954) e Curvas cruzadas (1955), nas quais os elementos que formam sua linguagem moderna mostram-se com toda força. Contudo, a exposição não segue exatamente uma ordenação cronológica. Por isso, na primeira parte, em que há apenas fotografias em preto e branco, também podemos apreciar imagens realizadas nas décadas de 60, 70 e 80 que dialogam com aquelas produzidas no âmbito da estética moderna.
Sob o conceito de “Arte”, o curador parece compreender as fotografias mais experimentais que Lorca fez sem finalidade específica (embora no caso de Oca e Aeroporto ambas sejam fruto de encomendas ao G. Lorca Foto Studio). Nesse conjunto inicial prevalece as experimentações que marcaram sua produção fotoclubista, e o apuro formal no qual transparece a visão da beleza como ordenação e abstração das formas a partir das cenas as mais cotidianas. Trabalhos bem conhecidos, mas talvez de caráter mais literário ou literal, como Malandragem (1949), Briga no futebol (1951), Chaveiro (1954), Fotógrafo – Largo da Concórdia (1956), Freiras (1965), entre outras, ficaram de fora da seleção da curadoria.
O segundo módulo, chamado de “Ofício”, reúne algumas imagens de campanhas publicitárias realizadas por Lorca, atividade à qual se dedica a partir de 1954 com grande sucesso quando funda o estúdio de fotografia publicitária Lorca Fotógrafos Ltda. É importante lembrar que nesse momento em que a publicidade estava engatinhando entre nós, Lorca não apenas fotografava campanhas, mas era também responsável pela criação. Por exemplo, foi ele quem teve a ideia de utilizar uma girafa como modelo para uma propaganda de caminhonete, uma de suas campanhas mais difíceis de realizar, conforme testemunha em vídeo presente na exposição.
É evidente que essas imagens publicitárias possuem a inventividade que caracteriza seu trabalho anterior, contudo acredito que hoje elas interessam mais como testemunho documental do que por seu valor propriamente estético, pois no geral a linguagem que apresentam é aquela da publicidade internacional. O que não quer dizer que Lorca se afasta de inovações técnicas. Até mesmo por se tratar de uma atividade que por natureza costuma absorver rapidamente toda forma de novidade, a publicidade foi o lugar que o artista encontrou para também testar esses avanços, como a fotografia colorida e o uso do flash eletrônico, por exemplo. De alguma maneira, podemos pensar que nas propagandas de carros, eletrodomésticos, capas de disco para a indústria fonográfica, lojas de departamentos e supermercados, estamos diante da outra face do Brasil moderno, cuja imagem a publicidade ajuda a construir: aquele que a partir da década de 1960 volta-se ao consumo e à cultura de massas padronizados. E isso sob o comando, na maior parte do tempo, de uma ditadura.
Na última parte da exposição é apresentada a produção fotográfica-artística de Lorca realizada em cores. Nos anos 1970 ele retomou sua produção autoral, voltando a ela definitivamente e de maneira exclusiva em 2003. Cabe perguntar como sua atividade de fotógrafo de publicidade de alguma maneira mudou sua visão da fotografia. O curador não arrisca uma resposta definitiva. Mas é possível perceber como Lorca alia, por exemplo, seu conhecimento de cor adquirido nos anos de publicidade a recursos técnicos presentes em sua produção desde o início, como justaposições, solarizações, a dupla exposição etc. Há, neste sentido, uma enorme coerência em sua visão de fotógrafo autoral.
Lorca retoma os temas urbanos, agora com vistas da cidade de Nova York. O resultado são imagens que cresceram em tamanho, se comparadas com aquelas de décadas anteriores. Aqui fica evidente a busca pela construção da imagem, pela surpresa que ela é capaz de suscitar a partir de um referente conhecido. Neste sentido, chama a atenção WTC (década de 1990), em que o espelhamento das Torres Gêmeas em uma superfície de vidro cria uma sensação de vertigem própria de quem está no alto, e assim confunde nossa certeza em relação à profundidade da perspectiva, que do ponto de vista lógico parece se formar a partir do chão. E também as quase montagens fotográficas Nova York (1992) e Fair Warner (c. 2000).
Nesse conjunto, o procedimento de intensificação de contraste de cor ganha uma nova paleta. Agora não são apenas os pretos, brancos e cinzas que passam por processos de saturação com a finalidade de criar imagens quase abstratas a partir de referentes reais. Lorca brinca com os elementos coloridos em fotografias como Confete (1990), Concreta (1980) e nas poéticas Pipas curvas e paralelas (c. 2000). Há a confirmação nessas imagens recentes do talento muito particular que Lorca tem para reverter a sensação de escala: espaços públicos se tornam íntimos, enquanto cenas muito particulares do cotidiano são ampliadas, transformando-se diante de nós em algo completamente novo.
Por fim, vale notar dois aspectos. O primeiro de ordem prática diz respeito ao espaço reduzido da exposição. Fica-se com a sensação de que haveria muito mais fotografias a serem expostas e que talvez, a essa altura, fosse o caso de Lorca ganhar finalmente uma retrospectiva de maior fôlego, em que o conjunto de suas imagens em preto e branco, já tão conhecidas, fossem confrontadas com um maior número de fotografias de sua produção em cores. Também as imagens em escala maior, realizadas nas últimas décadas, perdem por causa da falta de distância para observação.
A segunda diz respeito a uma distinção que é dada como evidente na exposição, não apenas em relação ao trabalho de Lorca, mas que mereceria maior questionamento: é possível sustentar essa divisão, no caso da fotografia, entre o que é “arte” daquilo que não é? Não seria essa diferença ligada à noção de autonomia que foi colocada em xeque pela própria natureza técnica da fotografia? Como pensar essa divisão hoje? A complexidade da resposta poderia ser encontrada no próprio trabalho de Lorca, já que também as imagens realizadas no âmbito do FCCB muitas vezes eram produzidas seguindo temas definidos em concursos internos. Ou no caso de imagens que foram incialmente realizadas a partir de encomendas remuneradas, como a famosa Pernas (1960), posteriormente incluídas no grupo “Arte”. Insistir nessa separação parece desnecessário, pois ela responde antes a uma demanda do mercado de arte que precisa estabelecer seus valores com base em objetos especiais e únicos, mas que não interessa tanto à teoria. O conjunto da produção de Lorca evidencia que a fotografia é antes de tudo uma linguagem visual e que enquanto tal está o tempo todo em diálogo com a técnica, que é capaz nesse caso de criar novas visadas sobre o mundo, inclusive para fins publicitários.///
Taisa Palhares é crítica de arte, curadora e professora de Estética do Departamento de Filosofia do IFCH-UNICAMP desde 2015. Entre outras exposições, foi cocuradora da retrospectiva da artista Mira Schendel em 2013-14 (Tate Modern/Pinacoteca do Estado). Publicou diversos textos sobre arte e estética, entre eles o livro Aura: a crise da arte em Walter Benjamin (Barracuda, 2006).
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