Livros

A viagem continua

Horacio Fernández Publicado em: 3 de dezembro de 2021

 

O maestro, da série Viagem pelo fantástico, de Boris Kossoy, Caieiras, SP, 1970 © Boris Kossoy. Cortesia do artista

Uma das principais referências da fotografia brasileira e latino-americana, o fotolivro Viagem pelo fantástico, do fotógrafo e historiador da fotografia Boris Kossoy comemora 50 anos com uma segunda edição. Lançado em 1971, o livro explora de forma pioneira uma gama de possibilidades de construção de narrativas por meio de imagens, emprestando ideias e estratégias visuais do cinema e da pintura. Acompanhando a nova edição, o caderno Revisitando Viagem pelo fantástico contextualiza a trajetória e a obra de Kossoy em textos escritos por nomes como Horacio Fernández, Helouise Costa, Ana Paula Vitorio, Diógenes Moura e o próprio Kossoy, entre outros. Em parceria com a IpsisPUB, publicamos aqui a íntegra do texto A viagem continua, do pesquisador espanhol Horacio Fernández.

 

Aeroporto, da série Viagem pelo fantástico, de Boris Kossoy, São Paulo, SP, 1971 © Boris Kossoy. Cortesia do artista

O livro abre com uma visão distante, aproximada por binóculos potentes, capazes de atravessar paredes. Em uma das lentes, aparece um fantasma cujos olhos são muito separados, uma espécie de lula flutuando em sua tinta. Na outra, há um relógio que atesta que logo serão quinze para as sete. Em um mundo barroco, esse par seria uma vanitas. Estaria em boa companhia ao lado das velas prestes a apagar, das flores e das borboletas que os pintores usavam para sugerir a brevidade quase instantânea de certas coisas e a permanência de outras. O relógio da foto, assim como o fantasma, tem dois olhos que nos devolvem um olhar fixo. Talvez haja mais, é possível que sejam três pupilas atentas. O fantasma, que pode produzir um transe hipnótico em alguém que o observe demasiadamente, é do tempo dos cinemas e dos sonhos de lençóis brancos.

A seguir vem o texto, impresso em papel cor de tabaco. Nos créditos há detalhes sobre Boris Kossoy, residente à rua Marquês de Itu, em São Paulo, e todos os direitos são reservados. Kossoy tem – isto é, tinha, meio século atrás – trinta anos, é casado, acaba de ter uma filha, é arquiteto e tem um ateliê-oficina em um sétimo andar na referida rua. Na verdade, o ateliê é sobretudo um estúdio fotográfico. Chama-se Ampliart Criação e Fotografia. Seu logo é um olho atento entre nuvens e tramas, um olho muito mais simpático que o divino que tudo vê nos dólares norte-americanos. A Ampliart é versátil. Não só faz cartazes para vender em bancas, como produz anúncios ou resolve com presteza encomendas de revistas e empresas. Também é o laboratório profissional que faz as cópias e as ampliações para Viagem pelo fantástico.

Antes de entrar no assunto, precisamos nos deter no prefácio, assinado por Pietro Maria Bardi, diretor do Museu de Arte de São Paulo, que busca explicar sua viagem particular pelo fantástico a partir da sequência de fotos de Kossoy. Uma excursão que começa na própria imagem da capa, uma moça que talvez esteja indo se casar, como indicam suas vestes brancas, mas certamente não o fará, a julgar por sua solidão. Bardi não cumpre sua promessa e se conforma com uma anotação sobre certa “alma vagante na tétrica estação de estrada de ferro”. Entre outras possibilidades, poderia ter escrito que a mulher não era a noiva sedotta e abbandonata do filme siciliano de Pietro Germi de 1964, “mas seria oferecer um problema resolvido unilateralmente”. As fotos e o conjunto do livro em si são “um problema de infinitas soluções, uma para cada um de nós”.

De acordo. O leitor é o autor. E o espectador também. É o assunto do momento: Umberto Eco havia encontrado obras abertas e em movimento em músicos como Luciano Berio e poetas como Stéphane Mallarmé: “Nommer un objet c’est supprimer les trois quarts de la jouissance du poème, qui est faite du bonheur de deviner peu à peu: le suggérer” [1].

 

A noiva, da série Viagem pelo fantástico, de Boris Kossoy, Franco da Rocha, SP, 1971 © Boris Kossoy. Cortesia do artista

Mallarmé tem muita razão. A maldição da arte é o sentido único, a obrigação da literalidade. Nas obras abertas, o leitor adivinha passo a passo com a ajuda de sua imaginação e de suas emoções, escapa das tiranias do correto e do proibido, do verdadeiro e do falso, entra sem mapas nas areias movediças da indeterminação e da ambiguidade, inventa suas próprias normas e é, de uma só vez, aquilo que não pode ser quase nunca e em praticamente nenhum lugar: livre. Eco descobriu a obra aberta na música. Para ser mais preciso, nos músicos. No jazz, as interpretações dos temas são diferentes a cada noite, e até pode ocorrer de serem inéditas em uma madrugada qualquer. Ou seja, novas. Puras invenções dos intérpretes, dos músicos e dos atores tanto quanto dos leitores ou dos espectadores.

Se nomear elimina a maior parte da potência poética, mostrar é ainda pior. A evidência da imagem fotográfica está muito mais próxima à literalidade do que às sugestões. Não obstante, há uma forma simples de resolver o problema: eliminar a informação, o texto. Como já anotou Susan Sontag, a legenda é “a voz ausente” de uma fotografia, e esperamos que ela “diga a verdade”, o que não é precisamente o objetivo quando se quer apenas sugerir.

Sem legendas as coisas podem melhorar, como demonstrou um fotolivro de Larry Sultan e Mike Mendel, cujas fotos se tornavam claramente obras abertas, somente por se ocultar seu contexto. Uma solução drástica, logo transformada em norma ainda vigente. Porém, algo se perde quando não há palavras. Alguns fotolivros parecem filmes mudos sem legendas nem cartelas entre os planos.

Os fotolivros têm muito a aprender com o cinema. E não apenas com o cinema. Os meios visuais expandiram as leituras mais que respeitáveis de sempre. Na velha arte, cada autor era um especialista em seu campo, em seu instrumento, em sua técnica. O pintor começava desde criança em um ateliê moendo as cores que no fim o matavam, envenenado, em seu último ateliê. Mas no século XX não há fronteiras entre os campos e as técnicas.

Kossoy nunca teve dúvida de que “a proximidade da fotografia ao teatro, à literatura, ao cinema” era mais que uma obviedade. Tinha como mestres tanto fotógrafos como cineastas (Kubrick, Hitchcock, Buñuel), pintores (Hopper, Escher) e escritores (Borges, Calvino, Bioy Casares). E, com esses mestres, não poderia se conformar com a assepsia da documentação pura e simples. Precisava de algo mais. “Não consigo pensar e criar imagens fotográficas sem drama, sem mistério, sem ousar certo desequilíbrio em relação à ordem estabelecida.”

Viagem pelo fantástico é a apresentação de suas ideias e propostas, um fotolivro tão aberto quanto uma jam session, embora esteja dividido em capítulos aparentemente fechados, cada um com seu título e uma sequência tão cuidada como em uma fotonovela, um filme ou um conto. Nas palavras do próprio Kossoy, o livro é “uma série de ‘contos’ fotográficos que exploram o drama existencial, os cenários urbanos, além de enveredar pelo político, a partir de imagens simbólicas”.

 

O viaduto, da série Viagem pelo fantástico, de Boris Kossoy, São Paulo, SP, 1971 © Boris Kossoy. Cortesia do artista

O primeiro desses “contos fotográficos” é intitulado “A mulher e a cidade” e tem três partes. A primeira é uma fotomontagem composta por um fragmento de um nu deitado diante de um horizonte urbano, uma paisagem de moradias, escritórios e paredes repletas de janelas e varandas. A paisagem é feita de planos que se sucedem. No primeiro, resplandece a beleza do corpo em toda sua plenitude, apesar da ausência da cabeça. Depois há a escuridão que recorta o primeiro plano e o costura ao seguinte. O terceiro é a cidade, longínqua e talvez inacessível, salpicada por torres. O fundo que encerra a paisagem é a claridade celeste, que destaca os perfis urbanos como se fossem fortificações de um castelo medieval que deve ser conquistado após um longo cerco. O mesmo poderia ser dito da beleza.

A dupla de páginas seguinte exibe o fantasma do início, que agora se revela um objeto cotidiano: um berço de recém-nascido, em um quarto no qual há uma cama feita, um armário fechado e uma janela gradeada. Seu par é um depósito de despojos urbanos, uma montanha de janelas e grades quebradas. Para terminar o conto, a quarta e última imagem exibe um edifício industrial abandonado, no qual há corpos humanos desmembrados, pernas sem torso e bustos sem os membros. Corpos desmontáveis e olhos de vidro que surgem detrás de janelas rotas. Esculturas fugidas do museu. Manequins que sobreviveram ao calor das luzes e ao frio dos olhares nas vitrines. Carne de papel machê que sabe sorrir, porém não consegue falar.

A introdução desse conto em quatro fotos e um título é poderosa e tem antepassados ilustres como La tempesta, de Giorgione da Academia de Veneza, outro nu com uma cidade atrás. Mostra uma mulher sem roupa, um soldado, árvores, ruínas e um relâmpago entre nuvens tempestuosas. É uma pintura enigmática, interpretada de múltiplas formas, nenhuma delas definitiva ou convincente o suficiente. Muitas perguntas e muitas respostas mais. Uma obra aberta, tanto quando foi pintada como hoje. Nesse ponto, há um dormitório e uma ruína, um lar e seus restos de escombro. É outra vanitas, como uma viagem sem passagem de volta. Por fim, o desfecho nos remete aos quadros metafísicos de Giorgio de Chirico, que levou os manequins para a praça pública. Os manequins nem sempre viveram atrás das vitrines. Por séculos foram os companheiros silenciosos dos artistas, que a eles prestaram homenagens em quadros assinados por De Chirico, Carrá, Ernst ou Grosz.

O filme de Kubrick, A morte passou por perto – um triângulo amoroso sem futuro formado por uma prostituta, seu cafetão e um boxeador –, acaba com uma briga de galos num depósito de manequins, cujos braços e pernas são as armas de uma luta macabra até a morte, diante de uma multidão de espectadores inertes, tão surdos e cegos quanto mudos e nus. Os habitantes das ruínas que encerram “A mulher e a cidade”.

“Cenas num parque”, o conto seguinte, vai na linha do anterior. Começa com quatro nus femininos – dois deles feitos de uma pedra que parece pele, e dois, de uma carne dura e polida como o mármore. A estátua e a vestal albina vivem nas fontes e têm os “gestos lastimosos e olhares tristes de semáforos à chuva” que tanto excitavam Blaise Cendrars. Nesse momento, o conto termina – por ora, pois pode começar de novo ou reaparecer em outro episódio, se o leitor assim o desejar – com um homem sentado em um banco de um parque. Ele abraça o torso de um manequim e segura um jornal para esconder ao mesmo tempo os seios da jovem e suas próprias calças abaixadas. Ele olha assustado, pego em flagrante, prestes a dizer não é o que parece, policial. Para ela, tanto faz. Não sente nada, é incapaz de ter vergonha. É bela e ponto.

A viagem continua seu movimento em um aeroporto e depois em uma estação de trem. No canto de uma dupla de páginas preta, uma noiva espera com sua mala. Poderia ser Anna Kariênina, mas não é, e na cena seguinte – que é a que aparece na capa – ela sobe uma escada metálica rumo à montanha, continuando sua viagem de lua de mel a sós. A conclusão é um retrato da noiva viúva sentada diante da paisagem, com o vento dobrando os caules das plantas. Está vestida rigorosamente de branco, as luvas vão até os cotovelos, e segura uma gaiola vazia. Embora não haja pombas, chapéu, bengala nem manto, a memória logo encontra O terapeuta, um dos quadros mais enigmáticos de Magritte, que também pintou nus de carne trêmula com os olhos sem pupila das estátuas de pedra. A viagem da noiva, que se revela menos agradável do que se esperava, prossegue. De volta à cidade, a história se detém em um viaduto, do qual as pessoas admiram a buliçosa e irrefreável circulação lá embaixo, um mundo subterrâneo de duas direções, pelo visto fascinante apesar de sua contínua repetição. Em um rápido zoom, Kossoy se detém na expressão atônita de outra moça, agora vestida de preto, que talvez pense ou deseje conhecer em primeira mão a vertigem.

 

Outros tempos, da série Viagem pelo fantástico, de Boris Kossoy, Praia Grande, SP, 1971 © Boris Kossoy. Cortesia do artista

Sem chegar ao final, que nunca se deve contar, essa glosa termina com um conto que trata de uma casa em que se alugam quartos a moças que também talvez queiram conhecer vertigens menos perigosas e mais privadas. Em outra das “Cenas numa casa”, surge um quarto mais espartano que um morto, que tem um único móvel: um homem sentado, sério e formal, que espera sem se desesperar. Mas no cômodo seguinte, Kossoy apresenta uma pietà surpreendente, um T invertido em que a vertical é ocupada por um estranho minotauro no lugar da habitual Nossa Senhora das Dores, e na horizontal, em vez de Nosso Senhor de corpo presente, há uma exuberante donzela que o leitor já conhece de vista, ao menos em parte, pois já se deparou com ela no primeiro conto.

A pintura que mais se aproxima dessa foto é The Nightmare [O pesadelo], um óleo de Johann Heinrich Füssli que exibe uma mulher voluptuosa sobre a qual se senta uma figura demoníaca. Por entre as cortinas, uma égua noturna de olhos arregalados presencia a cena. É um coquetel de beleza, terror e sexualidade que parece com a experiência que os românticos qualificavam como a mais alta, o sublime. A pista do quadro de Füssli seguiu adiante, sempre viva, perversa e ao mesmo tempo agradável, de Goethe a Poe, passando por Mary Shelley, de Delvaux a Balthus, de Freud – que pendurou uma cópia em uma parede de seu apartamento vienense – a Jung, de Kossoy a Helmut Newton ou Araki.

A vida das imagens é muito mais longa do que se pensa. Viagem pelo fantástico foi publicado em junho de 1971 e, portanto, completa cinquenta anos. Kossoy fez tudo, do princípio ao fim, começando pelas fotografias e pela preparação do que aparece nelas. Elaborou um roteiro a um só tempo narrativo e poético. Construiu as sequências e as intitulou. Encarregou-se do projeto gráfico, dos textos e dos demais detalhes, dos aspectos técnicos e dos artísticos.

Como costuma acontecer a tantas inovações, no começo Viagem pelo fantástico teve pouca repercussão. Muito tempo depois, era uma das maiores e melhores surpresas de fotolivros latino-americanos, uma ave rara em seu contexto e uma peça maior no conjunto da história dos fotolivros, uma obra ainda tão viva e aberta como quando começou sua longa trajetória. A merecida justiça começava a ser feita. Agora o livro é reeditado e continua sua viagem própria por estradas que não se podem conhecer, pois são imprevisíveis. É motivo de alegria para todos nós que o lemos e admiramos, além de ser uma sorte para os que ainda não o fizeram. Não sabem o quanto vão desfrutar do passar de páginas se deixarem livres sua imaginação e suas emoções. ///

 

Traduzido do espanhol por Miguel Del Castillo

Horacio Fernández (Albacete, Espanha) é professor universitário, doutor em história da arte e curador. Entre suas publicações e exposições se destacam Fotografia pública (1999) e Fotolivros latino-americanos (Cosac Naify, 2011).

 

[1] “Nomear um objeto é suprimir três quartos do prazer do poema, que consiste em ir adivinhando pouco a pouco: sugerir, eis o sonho.” Mallarmé, S. “Poesia e sugestão”. In: gomes, Álvaro Cardoso (Org.). A estética simbolista. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 98.

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Viagem pelo fantástico + Revisitando Viagem pelo fantástico
Boris Kossoy
Páginas: 96 (+ 56 do caderno Revisitando Viagem pelo Fantástico)
Editora: IpsisPUB

 

 

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