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Com fotos, áudios e DNA, livro Somos Brasil apresenta a cartografia imaginária do artista Marcus Lyon

Ana Maria Mauad & Marcus Lyon Publicado em: 17 de maio de 2017

Livro Somos Brasil, de Marcus Lyon, 2016.

A senhora que aprendeu a escrever aos 82 anos, o sambista que fala pelo pandeiro, a adolescente que já trabalha com arqueologia. A obra Somos Brasil nos revela uma comunidade que tem até representante do Brasil Imperial. Todos ganham um lugar na imaginação do artista que, provocado por sua vida pessoal, sai em busca de uma imagem que defina esse país, mas encontra a diversidade.

Movido por incontornável simpatia pelo Brasil, que nutre desde os tempos de escola, o fotógrafo, artista e cientista político inglês Marcus Lyon conseguiu dar forma contemporânea à ideia do historiador Benedict Anderson, em seu livro Comunidade Imaginada (1991). Nessa obra, as nações modernas se sustentam baseadas em um tripé: um passado, um território e uma língua comuns. Assim, ao longo do século 19, a história, a cartografia e a literatura investiram na produção da imaginação nacional.

Na perspectiva do século 21, embalado pelos deslocamentos globais e transmissão de informação em tempo real, a ideia de uma nação fixa tornou-se ao mesmo tempo um desafio e um problema, no que diz respeito à identidade nacional. Talvez por isso Lyon tenha desistido do plano original de produzir um dicionário de identidades visuais, com base em grupos representativos formados por pessoas de culturas e comunidades diversas, e partido rumo a sua comunidade imaginária revelada no livro Somos Brasil. O tripé proposto pelo artista para dar base ao seu projeto compõe-se de imagem, som e DNA. Nada mais contemporâneo do que buscar a ancestralidade no genoma humano.

Livro Somos Brasil, de Marcus Lyon, 2016.

 Somos Brasil está organizado em três partes: a primeira composta por ensaios e um texto de apresentação do autor sobre o projeto; a segunda por uma série de retratos feitos por Lyon; e a terceira apresenta a biografia do artista, os parceiros e uma explicação sobre o DNA ancestral, em que se identificam as regiões do planeta e seus troncos genéticos. Todas as três partes iniciam com um haikai de autoria do poeta Eliakin Rufino (retratado de número 69).

O primeiro ensaio, escrito por Martin Barnes, curador do Museu Victoria & Albert (Londres), insere o exercício proposto por Lyon nos percursos históricos do documentário fotográfico e define o resultado como uma conquista sociológica e artística. Em Quem tem medo da identidade?, a historiadora Lilia Moritz Schwarcz reflete sobre o fato de as ideias em torno do conceito de identidade serem cambiantes e se definirem como arenas de disputas que podem transformar o circunstancial em natural. As identidades são representações da ordem do político e da política. Processos reflexivos e cambiantes. E no texto DNA Brasileiro, a geneticista Lygia da Veiga Pereira explica o que é DNA em um saboroso texto que elucida o científico e esclarece os procedimentos relacionados a essa nova dimensão de reconhecimento das origens humanas.

O coração da obra, sua segunda parte, apresenta uma série de 104 retratos fotográficos em que a personagem, em plano médio, valoriza-se contra um fundo branco e uma luz natural que ilumina sua expressão. Junto a cada retrato incluem-se resumos biográficos, mapas e gráficos em que se identificam a região e as proporções genéticas do DNA ancestral da pessoa fotografada. Nessa parte, graças a um aplicativo de reconhecimento de imagem (que deve ser baixado e instalado em um smartphone), ao se apontar a câmera do aparelho para o retrato é possível ouvir um clipe de áudio de dois minutos em que os retratados contam um pouco da sua história de vida. Nos agradecimentos, temos a lista de indicados, os demais nomeados e os nomeadores, evidenciando-se a rede de apoio de um projeto grandioso.

Livro Somos Brasil, de Marcus Lyon, 2016.

O projeto gráfico e a estrutura da obra podem ser reconhecidos como uma boa solução para o empacotamento de uma exposição. O livro/caixa se abre para expor fotografias que, acompanhadas de textos explicativos, reflexivos e dados de identificação, valorizam o fundamental: as imagens e as falas. A portabilidade faz desse fotolivro uma exposição ambulante que transitará entre novos públicos. Uma boa ideia que se abre para outras possibilidades de utilização, sobretudo em ambiente escolar.

A escolha do retrato fotográfico como forma de expressão lança Marcus Lyon no itinerário em que a prática fotográfica estabelece estreita relação com o reconhecimento e a afirmação das identidades sociais. Do retrato burguês aos registros antropométricos da dominação colonial, no século 19;  e dos retratos de identificação e a inversão pós-colonial, no século 20, quando o estúdio fotográfico ganha papel central na experiência histórica contemporânea.  Já as selfies, do século 21, recolocam o sujeito no centro da cena e o retrato ressurge em novos circuitos e outros suportes, mas com igual força representativa dos carte-de-visite oitocentistas. No mundo da arte se reconhece hoje um novo destino aos retratos, quer sejam aqueles ordinários arquivados em séries quase descartadas pelas instituições que os produziram, quer os encenados por meio de diferentes recursos, como os adotados por Lyon.

Neste trabalho, entretanto, o documento fotográfico assume uma outra dimensão ao ser associado às histórias de vida dos retratados. Projetos de história oral e fotografia compõem uma linha de pesquisa consolidada, no Brasil e no exterior, em estudos sobre comunidades e suas memórias frente aos diferentes desafios de mudanças, em que se congrega antropologia, sociologia e história. No Brasil, o trabalho do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (UFF) se notabiliza pelos investimentos na história da memória de comunidades de sentido [comunidades que compartilham uma memória comum e um senso de pertencimento, independentemente de laços sanguíneos] com procedências diversas. Assim, por meio de fontes orais, visuais e audiovisuais, produz-se uma história para o público e com o público. Nos Estados Unidos, o historiador Michael Frisch, em parceria com o fotógrafo Milton Rogovin, acompanhou as mudanças na comunidade de trabalhadores do aço na cidade de Buffalo, no estado de Nova York, ao longo do processo de desindustrialização da região. O resultado foi o livro Portraits in Steel (Retratos no aço – 1993), fruto do diálogo entre história oral, fotografia e o trabalho colaborativo com a comunidade, em busca de compor sua auto-imagem através do retrato fotográfico e diante do aceleramento do tempo histórico.  Projetos como esses levam a publicações, exposições e o empoderamento das comunidades que participam, gerando também arquivos para futuras pesquisas.

Livro Somos Brasil, de Marcus Lyon, 2016.

Incluo o projeto artístico de Lyon na mesma linhagem dessas propostas.  A originalidade de seu empreendimento de produzir uma série de retratos fotográficos de pessoas indicadas por fazerem diferença nas comunidades em que vivem se afiança em um contrato de colaboração. O roteiro padrão que instiga a narrativa de cada entrevistado/fotografado compõe-se de perguntas como nome, data e local de nascimento, memória da infância, comunidade, sonhos, aspirações para o futuro e origens familiares. As respostas são condensadas no clipe sonoro acionado pelo aplicativo. Mesmo com as perguntas suprimidas, o tom de diálogo permanece e parece que os modelos ganham vida com suas falas diferenciadas, visto que cada um responde ao roteiro padrão do seu jeito, estabelecendo uma nova relação com o leitor – diferente daquela que o resumo biográfico de cada um sugere.

A experiência é surpreendente, pois o som reverbera a presença de cada um. O que se torna ainda mais significativo no caso de um dos entrevistados, o senhor João Najar (fotografado número 102), já falecido quando o livro foi finalizado. Acredito que mais do que dar voz aos fotografados, o que sugeriria uma atitude um tanto autoritária, o artista consegue surpreender o observador animando o retrato com histórias de vida. Cria-se um novo diálogo com base na troca de olhares e na escuta sensível.

A organização sequencial dos retratos por idade sobrepõe-se a qualquer outro princípio taxonômico, o que poderia levantar polêmicas em torno da composição da série, mas surge como vantagem ao permitir um exercício sobre as possíveis experiências e expectativas compartilhadas entre grupos de diferentes gerações. Por meio dessa estratégia de apresentação, avalia-se o impacto da vivência histórica dos últimos quinze anos em projetos efetivamente implementados pelos fotografados. E o horizonte de possibilidades que se abriu para diferentes grupos sociais, principalmente, aqueles relacionados a comunidades em situação de vulnerabilidade.

Livro Somos Brasil, de Marcus Lyon, 2016.

O elemento surpresa, entretanto, reside na potência imaginativa da ciência que multiplica a fabulação das genealogias por territórios nunca dantes explorados pelos fotografados. O registro das porções de DNA é, ele mesmo, um outro tipo de retrato, composto não mais de luz, mas de genes. O lastro histórico dessa herança biológica também é um dado de imaginação, que nos obriga a pensar sobre quando as regiões mapeadas passaram a ser identificadas dessa forma, as próprias mudanças nas paisagens e as delimitações geográficas. Assim, nenhuma tipologia é incontestavelmente objetiva. É o que observamos nos recortes de uma cartografia imaginada pelo projeto Family Tree DNA (DNA da Árvore Familiar), com a liberdade de incluir grupos que se constituíram por sua história – judeus asquenazes e sefarditas, por exemplo –  como linhagens genéticas.

Um leitor mais exigente levantaria muitas ressalvas à explicação apresentada para o DNA ancestral. Entretanto, como o artista advertiu na apresentação da obra, tal escolha não propõe explicações cientificas. Com reservas, creditamos à imaginação tais definições, ressaltando que a relevância das informações genéticas é mobilizar o debate e levantar polêmicas.  Portanto, há que se relativizar o absoluto das ciências naturais com uma boa dose de cuidados culturais.

A comunidade de retratados de Marcus Lyon nos conduz a uma espécie de cartografia imaginária, na qual as regiões do globo são redesenhadas à luz dos traços de genes que passeiam na corrente sanguínea dos habitantes do que hoje se chama Brasil. As fotografias, animadas pelas falas embaladas na inovação tecnológica da portabilidade móvel, transformam tudo isso em uma grande aventura rumo ao futuro do passado. ///

 

Marcus Lyon (1965) é um artista britânico que vive entre Londres e São Paulo. Formado em Ciências Políticas, realizou trabalhos fotográficos para Anistia Internacional e para a International Children’s Trust. Suas fotografias e publicações fazem parte de acervos importantes, como o do Instituto de Artes de Chicago, do Conselho de Artes da Grã-Bretanha e do Museu Smithsonian em Washington DC.

Ana Maria Mauad é professora titular do departamento de história da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora do CNPq e do Cientista do Nosso Estado FAPERJ. Autora de Poses e Flagrantes, ensaios de história e fotografias (Eduff, 2008) e organizadora de Fotograficamente Rio, a cidade e seus temas (FAPERJ/PPGH, 2016), entre outros trabalhos.

 

 

Somos Brasil
Marcus Lyon

Editora Madalena e ImageMagica, 2016.
312 pp., 27 × 33,5 cm
Edição bilíngue português e inglês.

 

 

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