Livros

Blue favela: armadilhas da inundação em “Sharkification”, de Cristina De Middel

Walter Costa Publicado em: 18 de novembro de 2016
<em>Sharkification</em>, de Cristina de Middel. Editora Madalena, 2016

Sharkification, de Cristina De Middel. Editora Madalena, 2016

Se a política é a arte do possível, os trabalhos artísticos com um viés político também não devem excluir nenhuma possibilidade, menos ainda o uso da mentira. Trabalhando na imprensa por uma década, Cristina De Middel experimentou na própria pele a impossibilidade da fotografia documental de provocar mudanças. Submersos num enorme fluxo de imagens cada vez mais duras, desenvolvemos uma casca que poucas fotos conseguem penetrar.

Cansada de não gerar repercussão alguma fotografando a “verdade”, De Middel abandonou os jornais e se libertou ao descobrir o poder de contar as verdades que as mentiras têm. O livro Os afronautas chegou em 2012 demonstrando para o mundo que ela tinha escolhido o caminho certo. Sem sair da Espanha, seu país natal, Cristina ficcionalizou um curioso e falido programa espacial no Zâmbia de 1964, jogando na cara do público ocidental sua própria visão pós-colonial do “bom selvagem”. Outra arma do arsenal de Cristina é sem dúvida o humor, no sentido que Luigi Pirandello deu a essa palavra, em seu livro O humorismo: se a risada do cômico tem sua raiz na percepção do contrário, o humorístico nasce do sentimento daquele contrário, torna a risada mais amarga e produz uma tomada de consciência da condição humana. Os afronautas teve um impacto muito além do esperado: entre duras críticas e grandes elogios, o livro tornou-se um marco nos fotolivros contemporâneos, virou objeto de desejo para muitos colecionadores (a segunda edição, lançada este ano, está prestes a esgotar) e catapultou De Middel ao olimpo da fotografia mundial.

<em>Sharkification</em>, de Cristina de Middel. Editora Madalena, 2016

Sharkification, de Cristina De Middel. Editora Madalena, 2016

No meio de um turbilhão de projetos, livros, exposições e festivais, em 2014 Cristina foi convidada pela Fundação Inclusartiz para participar de uma residência no Rio de Janeiro. Sobrevivente das polêmicas da Copa do Mundo e ainda canteiro de obras para os Jogos Olímpicos, a cidade recebia os olhares da mídia mundial, apontados especialmente para os morros, que seguem sofrendo com a violência mesmo após a implantação das UPPs. Fiquei sabendo dos planos cariocas da artista quando li a entrevista que ela concedeu a Daigo Oliva, do blog Entretempos. Caçadora de clichês a serem desafiados, Cristina tinha encontrado na favela – hiperfotografada porém nunca plenamente compreendida – seu foco de atenção. Confesso meu primeiro ceticismo ao saber da dicotomia que iria marcar o projeto: habitantes da favela como peixes de arrecife de um lado, policiais da UPP como tubarões de outro. Morando há três anos no Brasil, sei como o olhar estrangeiro pode pregar peças em quem se aproxima pela primeira vez a uma realidade tão complexa. Entendi que é o tempo que faz sumir o caos visual dos postes de luz e superar o mero choque das desigualdades sociais, tornando-se ele mesmo um estímulo para entender mais profundamente as causas. “O que é melhor: entorno violento ou entorno continuamente vigiado? Ainda não sei a resposta… Ainda não tenho uma opção, só sei que esta é a pergunta essencial”, disse Cristina, à época, e essa afirmação me devolveu o otimismo, por conter a dúvida como motor criativo.

<em>Sharkification</em>, de Cristina de Middel. Editora Madalena, 2016

Sharkification, de Cristina De Middel. Editora Madalena, 2016

Pouco mais de um ano se passou e o projeto voltou à tona em forma de livro – Sharkification, publicado pela Editora Madalena. Com papéis e acabamento primorosos, o livro chega às mãos como algo misterioso a ser decifrado. A atenção é capturada por um mapa no qual uma mancha azul transforma uma pequena área numa espécie de lago. O que é isso? Eis o primeiro convite para seguir a leitura. O mapa abraça o livro, deixando descobertas as bordas da capa e da contracapa, em que uma indistinta imagem azul-escura emerge. Como um iceberg visto da superfície, o leitor intui que deve haver muito mais coisa escondida nas profundezas: o segundo convite está feito. Uma sucessão de mapas mais ou menos “inundados” se alterna com recortes de jornais sobre vítimas de balas perdidas da polícia e enfrentamentos com os habitantes das favelas. O primeiro mistério é revelado: as manchas nos mapas são as comunidades cariocas. As páginas menores acabam, aquele azul confuso agora é apenas a borda de uma imagem em que a ladeira de uma favela se tornou um arrecife. Melhor colocar os pés de pato e o colete à prova de balas, o mergulho vai começar.

<em>Sharkification</em>, de Cristina de Middel. Editora Madalena, 2016

Sharkification, de Cristina De Middel. Editora Madalena, 2016

Descendo entre telhas de amianto, antenas parabólicas e caixas d’água, percebe-se a tensão da iminência de algo. Habitantes da comunidade observam os 4×4 da Tropa de Choque do outro lado da rua. Inicia assim esse jogo de perseguição e fuga, onde os moradores achatam-se pelas esquinas, correm pelos becos, refugiam-se em suas próprias casas. A edição flui entre interiores e exteriores, a claustrofobia das imagens é potencializada pela vinheta e pela densa frieza do filtro azul. O leitor nada entre vidros quebrados, medalhas de São Jorge, bolas de futebol e bolhas de sabão. A narrativa oscila entre violência e repouso, religião e futebol, sossego e alarme. Na última página do miolo, do alto de uma “ilha”, o Cristo observa essa anormal normalidade acontecer debaixo d’água. Mapas e recortes de notícias voltam a aparecer, encerrando simetricamente a contracapa e reiterando o ponto de vista da artista: “A polícia é boa ou má, dependendo de onde você se situa, e o que pode parecer uma solução se converte em um novo problema”, disse, na entrevista citada anteriormente.

Nadando de volta à superfície, algumas dúvidas se adiantam mais rápido que as bolhas de ar. Não é por ter encontrado apenas um tubarão em todo o livro (esperava cruzar mais vezes com eles), nem porque as imagens referentes à polícia desaparecem após as primeiras trinta páginas. Há algo no desenvolvimento da edição que vai prendendo a narrativa a uma dimensão mais documental da que Cristina costuma utilizar no desafiante jogo da “realidade aumentada”, nessa “exploração da fronteira fluida entre os fatos e a ficção”. O tratamento azul das imagens parece ter ficado quase sozinho na difícil tarefa de sustentar a fantasia, sobrecarregado pelos chumbos do real. Lembrei-me que na descrição prévia do site da Inclusartiz, Cristina iria “trabalhar com os fabricantes de traje e com escolas de samba locais com coreografias”. Ali estavam imagens de moradores disfarçados de sereias e peixes que pareciam incorporar essa alma pulsante do samba, que usa a alegria para exorcizar a tristeza. Fiquei com vontade de ver este humor materializado nas páginas do livro. Talvez, com mais tempo para ser desenvolvido, o trabalho teria adquirido essa dimensão mais lúdica e provocativa que desde Os Afronautas se tornou tão marcante na obra da fotógrafa.

<em>Sharkification</em>, de Cristina de Middel. Editora Madalena, 2016

Sharkification, de Cristina De Middel. Editora Madalena, 2016

Falta aquela ficção embebida de humor, que provoca o leitor fazendo-o mergulhar no mundo que todo bom fotolivro encerra entre suas páginas. Em Sharkification, as notícias reportadas são tragicamente reais, não se deixam abordar por aquele sentimento do contrário, porque quem lê tem pudor de rir, mesmo amargamente, antes de empatizar com uma situação tão grave e complexa. O líquido que inundou as comunidades não é denso o suficiente para gerar difração; o canudo não “quebra” ao entrar na água e tudo acaba sendo o que realmente é.///

 

Walter Costa é fotógrafo e editor independente italiano com base em São Paulo. Pesquisador na área da edição, criou o projeto The Rising Card e é um dos fundadores do grupo de discussão sobre fotolivros TRAMA e coordenador do grupo de estudos LOMBADA-Laboratório de Fotolivros.

 

A revista ZUM publica em seu site resenhas de livros de fotografia e novidades do mercado editorial no Instagram. Os livros podem ser enviados para Revista ZUM / IMS – Av. Paulista, 2439, 6 andar – CEP 01311-936 – São Paulo, SP. A equipe da revista seleciona as publicações e encaminha para resenha. Todos os livros, inclusive os não resenhados, são depois enviados para a Biblioteca de Fotografia do IMS Paulista.

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