Livros

O arquivo como conhecimento amoroso

Lucila Penedo & Marina Feldhues Publicado em: 5 de outubro de 2023

Los órdenes del amor (As ordens do amor) é um livro composto por fotos (instantâneos e retratos) e documentos familiares. Ao folhear o livro, vou aos poucos me aproximando da história de uma família atravessada por duas ordens: o amor, como lei de conexão; e a ditadura cívico-militar argentina, como comando de separação. Proponho então descrever essa aproximação prestando atenção a três aspectos que considero críticos para a apreensão da obra: o arquivístico, o narrativo e o afetivo. Aspectos que se manifestam nas qualidades materiais, documentais e fictícias na combinação dos elementos visuais e textuais que compõem o livro e que se entrelaçam ao longo deste ensaio.   

Folhear Los órdenes del amor me fez recordar os “álbuns de família”.  Um tipo de arquivo que afirma a sua própria existência e a das pessoas retratadas nas fotos que guarda em termos de pertencimento e/ou vínculo afetivo a um grupo familiar.  Em geral, ao menos um membro da família atua como autoridade responsável pela produção desse arquivo, consignação dos materiais sob sua guarda e narrador de suas histórias.

Para criar esses álbuns, realizamos uma curadoria afetiva dos materiais aos quais atribuímos valor e cuja preservação desejamos. Como matéria desse arquivo, fotos e documentos excedem, em termos de duração, o efêmero dos acontecimentos dos quais participam e parcialmente registram. E, desse modo, esses materiais compõem no álbum uma ponte temporal que possibilita a transmissão de memórias, valores e informações entre aqueles vinculados afetivamente à família.

Como um arquivo, portanto, um álbum de família sempre expressa um desejo de futuro. Faz isso ao tornar possível que certas histórias sejam contadas em um outro espaço/tempo. Quando mostramos um álbum para nossos parentes, amigos, amantes, quase sempre produzimos oralmente histórias a partir das fotos escolhidas. Normalmente são narrativas sobre genealogia familiar, momentos felizes do cotidiano, cerimônias e/ou sobre os membros da família. Essa é a vocação narrativa desse arquivo privado.

Ao folhearmos um álbum, nos detemos por mais tempo naquelas fotos que nos demandam respostas emocionais e/ou nos evocam lembranças. A relação entre a função afetiva das – e a recordação evocada por – fotografias e documentos é a tônica de criar, folhear um álbum de família e contar suas histórias possíveis. Essa me parece também ser a tônica do livro Los órdenes del amor.

Com isso não quero dizer que o livro é um álbum. Trata-se de um livro para circulação comercial, não está restrito ao ambiente familiar, privado. Mas, sem dúvida, sua criação se dá numa zona de porosidade com os álbuns de família: o livro é composto por fotos e documentos do grupo familiar da própria autora, Lucila Penedo, e permite contar ao menos uma história sobre sua família. História a qual ressoa em experiências vividas por muitas outras famílias cis-hétero-brancas de classe média durante a última ditadura cívico-militar da Argentina e também do Brasil.

Contudo, ao folhear o livro, não apenas entrei em contato com essa história particular, ou refleti sobre outras, parecidas e/ou não contadas. Me senti convocada a lembrar dos álbuns de família e do seu fazer tátil com fotos e documentos. Espalhar fotografias sobre uma mesa, segurar uma foto e se lembrar daquela época; reler cartas e documentos, sentir o cheiro típico das coisas guardadas e pouco manuseadas; escolher o que pôr no álbum. Los órdenes del amor me recordou como pode ser prazeroso criar um arquivo afetivo, contar as histórias vividas e/ou imaginadas e, por meio desse álbum, reconhecer-se como parte de um grupo familiar cujo elo de união seja mais duradouro do que regimes políticos ditatoriais: o amor.

É um livro grande, em formato retrato, de cerca 32x24cm, bom para folhear sobre uma mesa, composto por 103 páginas, cujas legendas estão dispostas ao final da obra. A foto de capa se repete na terceira página, iniciando propriamente o livro. Me atento às pessoas figuradas na imagem: no centro, um homem branco adulto olha diretamente para a câmera. Ao seu redor, estão quatro crianças brancas de idades variadas usando pulôveres com gola parecida; duas olham para a câmera, uma sorri amplamente, enquanto as outras duas olham para locais distintos fora do quadro.  Todos estão sentados, seus corpos estão relaxados e muito próximos, a aparente intimidade entre os sujeitos fotografados me indica tratar-se de um retrato familiar. A legenda ao final do livro confirma minha percepção.

O retrato, talvez mais do que o instantâneo, me permite observar o caráter performativo das fotografias domésticas.  Assim, inicio o livro olhando para uma foto que me diz como essas pessoas queriam ser vistas e o senso que fazem de si mesmas. Percebo essa imagem como um local de articulação que projeta um grupo afiliativo e afetivo enunciado pela legenda como uma unidade familiar: “retrato de família”, complementada pela informação de que os pulôveres foram enviados de Buenos Aires. A foto, portanto, não foi realizada nessa cidade. O pulôver e a legenda fornecem o primeiro indício do desenrolar da narrativa do livro.

Com o passar das páginas vou descobrindo mais detalhes sobre as pessoas dessa primeira foto, folhear o livro é acompanhar os momentos de união da família e, em especial, entre Julieta, Lucila e Carmen. As três irmãs que aparecem na página dupla 4/5 do livro (acima). Bem como os momentos de separação familiar em decorrência da ditadura civil-militar argentina (1976 – 1983). Julieta, filha mais velha e fruto do primeiro casamento de Augusto Penedo (o homem que aparece na primeira foto), ficou na Argentina com a mãe. Enquanto o pai se exilou com sua atual esposa, Graciela Novoa, e a filha do casal, Lucila, no exterior. Carmen é a caçula e nasceu no exílio. A família voltou a Buenos Aires em 1984.

Esse é um breve resumo do que consigo contar a partir do que li nas imagens: do Cartão de Assistência Social para Refugiados da Cruz Vermelha; da nota de reconhecimento do estatuto de refugiado de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR); das cartas enviadas por Augusto Penedo –  assinadas em sua maioria como papi –  à Julieta ou Pichi (seu apelido); do caderno de anotações de Graciela Novoa; e da proposta de programa de assentamento da família Augusto Penedo e Graciela Novoa com o fim da ditadura, em sua busca por retornar à Argentina. As imagens desses documentos foram inseridas no livro em escalas variadas, de modo que alguns documentos são mais legíveis que outros.

O livro ainda nos mostra uma coleção de imagens: de um envelope de correios, dos desenhos feitos pelas irmãs e pelo pai, dos papéis de carta e dos inúmeros cartões postais que indicam os lugares por onde a família exilada passou. Sem esquecer, é claro, dos instantâneos e retratos de família, bem como de seus versos, que ora são expostos no livro com textos informativos sobre imagens que apenas podemos imaginar. Foi por meio do verso de uma das fotos que soube que o menino que aparece em muitas das imagens é Diego, amigo de Lucila.

Como um quebra-cabeça, fui juntando os textos e as imagens que apareciam no livro e recompondo uma história possível de ser contada sobre a família de Lucila: um trabalho de ficção que me exigiu ir e vir no livro em movimentos horizontais e verticais, prestando atenção aos detalhes. Ou seja, um trabalho de relacionar elementos ora próximos, ora distantes no livro, ora pequenos, ora grandes, com a leitura dos textos das cartas e documentos, com as paisagens dos cartões-postais e o que vem escrito no verso, com os detalhes dos móveis e vestimentas nas fotos domésticas. Explico um pouco desse movimento de atenção demandado pelo livro com alguns exemplos.

A página 12/13 (acima) mostra 51 fotos dos membros da família, em alguns momentos posando, em outros em seus afazeres cotidianos e três imagens que suponho serem de cartões postais. Estou acostumada a ver as fotografias de família dessa época no tamanho 10x15cm, aqui elas aparecem diminutas, algumas próximas ao tamanho das imagens de monóculos. Tal como uma constelação, a junção de todas as essas imagens pequenas cria uma imagem composta, maior: “Pienso que las flores son lo mejor quando uno está feliz”.

Concordo com a legenda que nomeia a constelação criada na página 12/13. Sinto uma certa alegria e leveza diante dessas fotos, algumas das imagens me remeteram imediatamente às de meu próprio álbum de família. De tal modo que se torna indiscernível se o afeto sentido se relaciona às fotos do livro ou às memórias evocadas.  Apenas sei que a constelação de imagens dessa página não me representa, mas ressoa em meu corpo, ativando lembranças boas.

Sigo adiante nessa leitura detalhada, prestando atenção às fotografias e procurando ler os documentos. A página 43 me mostra a frente de um envelope endereçado à Julieta Penedo. Os selos informam que a carta foi remetida da Espanha. Da página seguinte à 59, entre postais, cartas e desenhos, estão as correspondências enviadas à Julieta por papi. Cada página dupla é legendada pelo ano das correspondências. 1977, página 44/45, só um cartão postal do Rio de Janeiro. Mesmo ano que consta na nota de reconhecimento do estatuto de refugiado de acordo com o estatuto do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) da página 19.

1978, página 46/47 em branco, questiono se o vazio da página significa que não houve correspondências nesse ano ou se as correspondências se perderam com o passar do tempo. Sobre 1978 nada posso contar, é uma gaveta vazia no arquivo que é Los órdenes del amor. E isso me recorda que: (1) assim como o esquecimento faz parte da memória, a pulsão de morte faz parte do arquivo; (2) sem lembrar, eu não consigo contar, não consigo transmitir valores, memórias, informações, não crio pontes com o futuro; (3) sem transformar o vivido em experiencia partilhada, crio condições para que violências do passado tornem a se repetir.

E aqui situo a importância de Lucila Penedo escolher partilhar com um público amplo a experiência vivida do exílio, a dor da separação imposta por um governo autoritário e a insistência e continuidade das conexões amorosas: ações de cuidado, responsabilidade e comprometimento mais fortes do que um regime ditatorial. Essa partilha possibilita que aqueles que não tenham tido essa vivência, como é o meu caso, possam aprender com a experiência dela, autora. Como um arquivo, Los órdenes del amor estabelece uma ponte de conhecimento intergeracional.

1979, página 48/49, várias cartas e postais. Tenho certeza de já vi um desses postais antes. Volto a página 30/31 e lá está ele, num tamanho maior, participando da constelação de imagens legendada por “No sé qué puede hacer uma jirafa en Polonia”. Volto a página 12/13, “Pienso que las flores son lo mejor quando uno está feliz”, e o encontro novamente, dessa vez num tamanho menor. E assim, esse cartão postal – em distintas escalas e posicionamento na página – compôs ao menos três constelações visuais.

Sigo adiante lendo as cartas e vendo os desenhos enviados à Julieta. E em 1983, último ano da ditadura argentina, me deparo com um postal datilografado por papi, lá está escrito: “Creo que las flores es lo mejor cuando uno esta feliz”. Imediatamente lembro de ter lido isso em algum lugar do livro, mas onde? E recomeço a leitura até reencontrar a legenda da página 12/13. 1984, página 58/59, por um postal, descubro que a família exilada está retornando à Buenos Aires. Papi escreve à Julieta: “te compramos un poco de ropita para llevarte…”, o desenho de uma casa me confirma que o retorno está próximo. A página 60 encerra o período de exílio com o verso do envelope da página 43. Fim de um capítulo na história dessa família e de muitas outras exiladas.

Ainda sobre essa história, o livro mostra que a família teve condições materiais e sociais de vir ao Brasil e conseguir o reconhecimento como refugiados junto ao escritório brasileiro da ONU no Rio de Janeiro em 1977, algo que sequer era possível a todas as famílias perseguidas pelo regime autoritário em curso no Brasil naquele mesmo ano. Os documentos inseridos no livro contam ainda que os pais de Lucila são arquitetos e puderam exercer a profissão no exílio. Na proposta de programa de assentamento, pós-ditadura, os pais inclusive demandaram do governo argentino condições materiais para a continuidade de suas atividades profissionais no apartamento que possuíam em Buenos Aires, herança de família de Graciela Novoa.

Essas são informações importantes que ajudam a contextualizar as possibilidades materiais de vida disponíveis para Lucila e sua família sob ditadura argentina à época. Contudo, muitas histórias não são contadas. Fico intrigada com a vinda ao Rio de Janeiro, já que o regime ditatorial brasileiro era signatário da Operação Condor que tinha por objetivo a colaboração entre as ditaduras sul-americanas para compartilhar informações, prender e deportar aqueles manifestadamente contrários ao regime. Isso porque suponho que os pais de Lucila fossem contrários ao regime. Afinal, por que eles pediram asilo? Eram perseguidos politicamente? Provavelmente. Por qual motivo? Não nos é dado a conhecer. 

Volto para a constelação visual das três irmãs juntas na página 3/4 intitulada “te recomiendo no separar las que están juntas, así tienen más valor”. Adianto para a constelação da página 86/87: “solo nos queda esperar um poquito para que nos volvamos a encontrar”. Me detenho na única fotografia da página 99 – o aniversário do pai, as filhas já crescidas – intitulada “esta es la parte um poquitín más triste, la parte de los recuerdos”. Nesse movimento de folhear, de ver as imagens e ler os textos do livro, entre idas e vindas, fui aprendendo um pouco mais sobre a experiência fluída, capaz de contornar obstáculos políticos e sociais, de criar e cultivar vínculos afetivos de amorosidade com aqueles que estão fisicamente próximos ou distantes, ou que presentes apenas como lembrança.

Volto ao envio do pulôver, um detalhe que pode passar por banal, mas que de fato mostra uma ação de cuidado entre os familiares. É uma vestimenta que serve para proteger o corpo das crianças do frio. As roupas levadas para Julieta também são gestos de carinho. As cartas com textos e desenhos são meios de se manter fisicamente presente, pelo traço, pelo gesto de escrever e desenhar. Quando papi pergunta a Julieta como foi suas férias, o que fez, ou conta que Lucila está ganhando dentes, ou desenha os camelos que viu em viagem de trabalho, ele está criando um espaço de convívio íntimo que convida a aproximação da filha distante. Assim, Los órdenes del amor é um arquivo organizado pelo que agrupa, pelo que une, e não pelo que separa. É, principalmente, a experiência da insistência e da continuidade da conexão amorosa – apesar da imposição política de separação, da distância física, e do passar dos anos – o que o livro possibilita contar. ///

Marina Feldhues (1982) é professora, pesquisadora, artista visual, mestre e doutoranda em Comunicação pela UFPE. Sua pesquisa teórica e prática transita em questões relacionadas a existências negras, arquivos e livros fotográficos.

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