Livros

Fotolivros e a melancolia dos apartamentos

Bia Bittencourt Publicado em: 6 de novembro de 2017

Livro Estão preparando algo imenso na costa, de Mariana Pacho Lopes

A quantidade (e qualidade) de livros na biblioteca da Plana nos diz muito sobre o espírito de um momento. É pela repetição de temas e abordagens que entendemos melhor o que atrai os olhares de fotógrafos e artistas. E isso é cada vez mais dinâmico e verdadeiro, sobretudo quando lidamos com produções independentes, que passam rapidamente da imaginação e intenção do fotógrafo para o papel, o fanzine, o livro e as estantes. A facilidade de criar e publicar imagens na era digital acelera a circulação de livros e fanzines, o que encurta (e confunde) a distância entre quem produz e quem vê.

Foi com esse olhar que, entre tantos filtros possíveis, reparei que nossas casas, nossa intimidade, nosso pequeno espaço particular começou a ficar mais evidente. Nós, crias da metrópole, artistas de playground, andarilhos de quarteirão, estamos domesticados, em nossos poucos metros quadrados, a enxergar tudo de muito perto, sem recuo nem binóculo. Reza a lenda que os marinheiros têm visão boa porque não tiram os olhos do horizonte. Já nossa visão de alcance encurtado limita-se às paredes, aos muros e às empenas.

Encontrei algumas publicações com marcados traços de melancolia e solidão, sintomas prováveis da falta de distância e horizonte para observar a vida, coisa de gente da cidade. Nos nossos apartamentos, o que é sujeira do cotidiano vira monumento. Mínimos movimentos e gestos se transformam em poses. A revolução é doméstica, por entre cobertores, almofadas e canecas. Temos buscado a realidade ao redor com curiosidade, cautela e educação. Avisamos antes de clicar. Assim, a vida velada dentro de um apartamento pode ser tão exótica e interessante quanto a natureza. Será que passamos da fase de observar a miséria social emoldurada por uma janela?

No livro Estão preparando algo imenso na costa, a argentina Mariana Pacho López tenta dar sentido a essa intimidade doméstica de forma delicada. Isso é tão claro quanto a luz natural que entra pela janela, filtrada por cortinas de tule, e ilumina os rostos das meninas, suas mãos e o silêncio das relações. A publicação é permeada pela força de ondas quebrando na orla. As imagens remetem a apartamentos que já vimos antes: os tons de rosa claro, as peles sempre brancas, desbotadas, o cigarro e o café sem açúcar, lençóis desarrumados e olhares perdidos. Alguns psicanalistas afirmam que a solidão provoca isolamento dos outros, mas também distância e estranhamento de si mesmo.

Já em Branca, a fotógrafa brasileira Ligia Jardim não explica nada ao leitor. Mas posso contar aqui que são imagens da casa de sua falecida avó Branca. E novamente a mesma luz natural a entrar pela mesma janela coberta por cortinas de tule. Mas diferente de Mariana, que escolhe retratar meninas, Ligia olha para objetos: joias, caixas e louças. Uma memorabilia banal, doméstica, carregada de cheiros e lembranças prestes a serem encaixotadas, anuladas e catalogadas. “Muitas separações objetivas (como o luto) mostram-se retrospectivamente apenas uma ação para reintroduzir parênteses de solidão em uma vida poluída por ocupações e tormentos”, pontua o psicanalista Christian Dunker no capítulo “Solidão e solitude”, do seu livro de ensaios Reinvenção da intimidade.

Já em Aproximando-se do encapsulado, da artista de Sarajevo Sumeja Tulic, notamos mais explicitamente uma sensação de “não lugar” nesses apartamentos espalhados pelo mundo, como espaços de transição e de relações afetivas simuladas. No apartamento de Sumeja, canecas também servem de cinzeiros, lençóis bagunçados são iluminados através de tules e o naturalismo de flores falsas tem muito mais vida que mãos e rostos frágeis e juvenis.

No livro Sempiternamente, da argentina M. Virginia Molinari, amigos se reúnem em festas, viagens, em volta da Coca-Cola e do cigarro, com um sentido de solidão que é visto no olhar dessas pessoas, alheias de um convívio social. Há um fascínio que coloca o retratado não só dentro de um vazio espacial, como também existencial.

Imergir num conjunto de livros como esse nos empurra para dentro da intimidade das pessoas, das paredes de um apartamento desconhecido, dos segredos e nostalgias que não pedimos a ninguém para saber. A sensação turva de controle absoluto das cenas e o despedaçamento de nossas rotinas nas capturas fotográficas banais podem ser um reflexo nocivo, entretanto, lírico de uma geração e um tempo específico nas grandes metrópoles.///

 

Bia Bittencourt é realizadora e curadora da Plana: festival, residência, centro cultural e editora. Participa de feiras de livros de arte nacionais e internacionais representando a editoras brasileiras. Curou e produziu exposições de livros de artista. Atualmente cuida da programação diária da Casa Plana, espaço para cursos relacionados à artes gráficas, visuais e cinema.

 

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– Estão preparando algo imenso na costa (Están preparando algo inmenso en la orilla), de Mariana Pacho Lopes – Sta. Rosa Editora / Buenos Aires, Argentina
– Branca, de Ligia Jardim – Olhavê / São Paulo, Brasil
– Aproximando-se do encapsulado (Approaching the Encapsuled), Sumeja Tulic – Casa Fibra / Buenos Aires, Argentina
– Sempiternamente, de M. Virgínia Molinari – Fuerza y Possibilidad Ediciones/ Buenos Aires, Argentina

 

 

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