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As fotografias enganam: resenha de “Entre arte e ciência: A fotografia na antropologia”

Mauricio Puls Publicado em: 16 de agosto de 2016

As fotografias enganam. Ao vermos uma imagem, temos sempre a impressão de estarmos diante de uma emanação do mundo exterior, de um registro fiel da realidade e, como tal, portador de uma verdade. Tendemos a considerar que cada retrato constitui um cristal do tempo – um fragmento do passado que, por algum acaso, atravessou o nosso campo de visão. Os ensaios que compõem o livro Entre arte e ciência: A fotografia na antropologia (Edusp, 2015), organizado por Sylvia Caiuby Novaes, professora da USP, dissolvem essa ilusão e evidenciam a complexidade das relações subjetivas que estão por trás dessa aparente objetividade da imagem fotográfica.

Como explica Caiuby, a fotografia começou a despertar o interesse dos antropólogos desde o final do século XIX. Naquela época, valorizava-se sobretudo “a possibilidade de aliar a informação visual ao texto escrito” para captar aspectos não verbais do comportamento humano. Contudo, logo se constatou que essa técnica de coleta de dados produzia imagens cuja expressividade transbordava os marcos documentais aos quais ela deveria se confinar.

Emergiram então discussões sobre os limites entre a arte e a ciência. A antropóloga Margaret Mead distinguia as duas esferas argumentando que cada evento artístico é único, enquanto os registros científicos eram suscetíveis de reprodução: os objetos estéticos são singulares, as construções da razão são universais. Na prática, contudo, esse critério é de difícil aplicação: em que medida uma imagem é realmente replicável, já que as fotos captam momentos de um fluxo temporal que se transforma sem cessar?

A contraposição entre ciência e arte também precisa levar em conta outras ponderações. Os cientistas também obedecem a critérios estéticos, pois sempre buscam a simetria e o equilíbrio em suas teses. Além disso, por que razão uma imagem artística da realidade não poderia ser considerada científica, já que as obras de arte ampliam nosso conhecimento sobre o mundo?

Um exemplo dessa ambiguidade emergiu na Grande Depressão. Em 1935, o então presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, criou um programa com o objetivo de encontrar meios de ajudar os produtores rurais arruinados pela crise econômica. O governo contratou alguns fotógrafos para documentar os trabalhos, entre os quais Walker Evans, Dorothea Lange e John Collier. Os objetivos eram científicos, mas muitas imagens se tornaram clássicos da fotografia.

Dorothea Lange, "Mãe migrante", Califórnia, 1936. © Library of Congress/Getty Images

Dorothea Lange, “Mãe migrante”, Califórnia, 1936. © Library of Congress/Getty Images

Uma das figuras retratadas era Florence Owens Thompson. Personagem da fotografia Mãe migrante, hoje no Museu de Arte Moderna de Nova York, ela depois expressou seu desagrado pelo fato de a obra de Lange ter eternizado sua imagem como “pobre”. Esse exemplo mostra que um mesmo significante vai adquirindo diferentes significados ao longo do tempo (de documento científico a obra de arte) e, com isso, vai revolucionando a vida das pessoas envolvidas. Esse caso nos conduz a dois temas da coletânea: o impacto das fotos sobre os fotografados e a conversão dos “objetos” representados em “sujeitos” das representações.

A consciência sobre o poder das fotos é muito antiga. Isso surge com clareza no texto “Quando a imagem é a pessoa ou a fotografia como objeto patogênico”, de Alice Villela. Os índios Asuriní narram que o primeiro ocidental a entrar em contato com a etnia tirou a foto de um homem e aí “o homem morreu, não aguentou”: “Os Asuriní afirmam que as fotos tiradas pelos padres causaram mortes e adoecimentos por causa da captura do ynga [princípio vital] dos corpos retratados”. Existe uma identidade entre sujeito e objeto: em uma imagem não vemos a imagem, e sim a pessoa que ela representa. Assim, quando agimos sobre o retrato, atingimos o próprio retratado, pois existe uma relação metonímica entre um homem e seu duplo.

Não há razão para duvidar dos índios: a imagem da pessoa faz parte de sua personalidade, constitui a sombra de uma pessoa. Embora elas sejam imóveis, possuem o poder de agir sobre os indivíduos retratados, pois afetam a representação que a comunidade tem acerca daquela figura: um homem pode ser destruído por sua réplica cósica, tal como ocorre hoje quando uma fotografia ridícula ou comprometedora destrói o prestígio de uma personalidade pública.

Mas ele também pode ser redimido pela imagem: como diz Caiuby, muitos devotos levam à igreja de São Judas Tadeu fotografias de parentes e amigos doentes que não conseguem mais se deslocar, para que o padre lance sua bênção sobre elas. Com isso, as reproduções fotográficas se convertem em instrumentos para curar as enfermidades das pessoas reais. Estimulados pelas graças recebidas, muitos doentes de fato se recuperam: a força mágica desses objetos pode ser constatada pela quantidade de ex-votos depositados nas igrejas.

Fotos podem reviver os mortos, assim como podem preservar práticas sociais ameaçadas de extinção. No ensaio “O objeto, a arte e o artista”, Sandra Rossi de Araujo Costilhes registra minuciosamente o trabalho das tecelãs no Peru. Tais imagens permitem que outras comunidades recuperem tradições esquecidas: “O resgate dessa técnica vem crescendo nos últimos anos, seja por necessidade local, seja por incentivo de pesquisadores e órgãos governamentais”.

Sandra Rossi de Araujo Costilhes, Centro Têxtil de Chichero, Peru

Sandra Rossi de Araujo Costilhes, Centro Têxtil de Chichero, Peru

Encontramos essa mesma consciência aguda sobre o poder das imagens em todos os grupos que carregam um estigma. Em alguns casos uma foto pode acarretar um fim trágico. O ensaio de Bárbara Copque sobre as tatuagens dos presos da penitenciária de Bangu II – “Fotografar: expor (e se expor)” – só se tornou possível porque a autora conquistou a confiança dos detidos. Os presos viam as cenas produzidas e decidiam quais deveriam ser usadas e quais deveriam ser apagadas. Em segurança, eles detalharam à fotógrafa o código das marcas corporais: a cruz significa um “elemento” de alta periculosidade, a pistola representa assalto à mão armada seguido de morte, a caveira apunhalada simboliza a morte de policiais.

Bárbara Copque, 2011

Bárbara Copque, 2011

A mesma preocupação com o imenso poder da fotografia transparece no artigo de Joon Ho Kim sobre “O rúgbi em cadeira de rodas”, no qual o antropólogo tenta desconstruir o estereótipo de que os cadeirantes são seres passivos. Com esse objetivo, elegeu o rúgbi em cadeira de rodas para evidenciar todo o “contato corporal, agilidade e violência” de que são capazes os paraplégicos”. O que chama a atenção no ensaio é o esforço do pesquisador em compartilhar e discutir suas imagens com os próprios fotografados, de maneira que estes não se limitavam a desempenhar o papel de “objetos” da máquina, mas se transformavam em “sujeitos” da própria construção fotográfica: “Aqui a fotografia cumpriu o papel de tornar a reciprocidade palpável, na forma de imagens que poderiam ser apropriadas pelos retratados de acordo com seus interesses próprios”.

Joon Ho Kim, Adeacamp versos OMDA, Campeonato Brasileiro de Rugby em Cadeira de Rodas, 1 de junho de 2011

Joon Ho Kim, Adeacamp versos OMDA, Campeonato Brasileiro de Rugby em Cadeira de Rodas, 1 de junho de 2011

Talvez o ensaio mais notável do livro seja o de Ewelter Rocha, “Memória e verossimilhança nos retratos pintados da ladeira do Horto”. Nele, o autor analisa a confecção das imagens mortuárias em Juazeiro do Norte (CE). Naquela região, as famílias cedem retratos antigos de seus parentes mortos a pintores que, a partir deles, montam imagens solenes, atribuindo-lhes roupas, traços e qualidades que não possuíam de fato, mas que se ajustavam à imagem ideal que a família tinha acerca deles. Nessas montagens, familiares que nunca se conheceram eram reunidos, e imperfeições físicas desapareciam. Esses ícones são representações concretas do dever-ser: uma reparação ideal de tudo aquilo que não chegou a se cumprir no mundo real.

Assim como o anjo da história de Walter Benjamin, as fotos estão voltadas para o passado, mas são empurradas para o futuro: elas se situam num espaço intermediário entre a realidade que deixou de existir e o desejo que ainda não se realizou. Como diz Caiuby, “as imagens têm poder de agência. Elas tornam visível o que não era, subvertem o senso comum, denunciam com sensibilidade única e, por isso mesmo, agem”. Elas parecem coisas inertes, mas têm o poder de soldar relacionamentos e de destruir reputações. Por isso nos enganam tanto.///

 

Mauricio Puls é formado em ciências sociais pela USP. Escreveu os livros Arquitetura e filosofia (Annablume, 2006) e O significado da pintura abstrata (Perspectiva, 1998). É editor da revista Brasileiros e escreveu sobre o trabalho Avenida Celso Garcia, de Lucia Mindlin Loeb, para a ZUM #9.

 

A revista ZUM publica em seu site resenhas de livros de fotografia e novidades do mercado editorial no Instagram. Os livros podem ser enviados para Revista ZUM / IMS – Av. Paulista, 2439, 6 andar – CEP 01311-936 – São Paulo, SP. A equipe da revista seleciona as publicações e encaminha para resenha. Todos os livros, inclusive os não resenhados, são depois enviados para a Biblioteca de Fotografia do IMS Paulista.

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