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A potência política do ato de fotografar: “Cabanagem”, de André Penteado

Moacir dos Anjos Publicado em: 19 de abril de 2016

Cabanagem, de André Penteado (Editora Madalena/Terceiro Nome, 2015), é um ensaio visual dedicado a um evento ocorrido em lugar e tempo específicos: a então Província do Grão-Pará, em meados do século XIX. Seu real foco, contudo, parece ser o Brasil inteiro em um difuso momento presente. Segundo informa o autor, é o primeiro de uma série de trabalhos genericamente intitulada Rastros, traços e vestígios, nos quais pretende identificar as marcas que atam, política e socialmente, espaços e momentos supostamente distantes no país. Para desincumbir-se dessa tarefa, André Penteado tece relações sutis, por meio de fotografias, entre sinais e fatos, entre gentes e lugares, entre transparência e opacidade de significados. Faz confluir e confunde, em seu trabalho, gesto artístico e reflexões sobre a história do Brasil.

O evento que dá nome ao seu ensaio foi uma das mais intensas e violentas disputas por poder efetivo no Brasil Imperial, poucos anos depois da Independência formal do país. Não se identificando com a nova ordem política instituída no Brasil, negros, índios e mestiços se rebelaram, em 1835, contra a elite da Província do Grão-Pará, dando início a um levante que reivindicava o fim da escravidão e maior autonomia local, numa complexa afirmação de identidade frente aos antigos colonizadores europeus e seus aliados nacionais, incluídos entre aqueles não somente os portugueses, mas também os ingleses e holandeses que os antecederam como ocupantes da região. Em um primeiro instante, o movimento de origem popular foi apropriado por opositores ao Regime melhor situados na hierarquia social, tais como burocratas, religiosos e comerciantes – não por acaso, majoritariamente brancos –, há muito interessados em assumir o controle de postos e cargos públicos. Ao fim de sangrentas idas e vindas, contudo, foram os cabanos – como eram chamados os moradores pobres da região, por conta de suas modestas habitações – os principais protagonistas dessa revolta, enunciando aos donos do poder local, por vezes de modo violento, danos que por séculos lhes foram impostos impunemente.

A Cabanagem acontece, portanto, como resposta à construção de uma nova hegemonia política no Brasil, marcada, como seria quase uma constante na história do país, por um pacto de elite que ignorava seus habitantes mais destituídos. Foi um movimento de insubmissão a um arranjo de poder novo e excludente que provocou dura e prolongada repressão das autoridades. Até o extermínio completo dos revoltosos pelas forças da ordem chegadas da capital do Império, cinco anos após o início dos conflitos, mais de 30 mil pessoas foram mortas em toda a Província.

Não se espere das imagens contidas na publicação que abriga e dá forma ao ensaio referências diretas a esse levante ocorrido há tanto tempo no Grão-Pará. Informações sobre o contexto que o gerou são, porém, disponibilizadas a quem as queira ou necessite: estão em extenso texto impresso em papel dobrado que é parte, junto a dois volumes de fotografias, do sóbrio e adequado projeto editorial de Cabanagem, que insere as três peças em envelope do tipo encontrável em qualquer escritório. Elaborado pela historiadora Magda Ricci, a peça escrita estabelece, em linguagem informada e clara, os principais fatos e consequências do conflito; sugere, ademais, que suas causas estruturais continuam em vigor, tornando as demandas dos cabanos por condições menos aviltantes de vida ainda escandalosamente legítimas no Brasil.

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Embora fique patente ser essa a tese que anima o projeto iniciado com a publicação de Cabanagem, é importante destacar que ela não serve de roteiro conceitual rígido para a criação e edição das fotografias contidas nos livros. Afinal, já é por demais sabido o quão desigual e violento permanece sendo o país e, com particularidades próprias à Amazônia, o atual estado do Pará. A publicação não pretende confirmar uma situação que já se conhece, a despeito da importância de sempre renovar a declaração de perdas que, não reparadas, persistem causando dores. Inscreve-se, ao contrário, em uma tradição artística que esboça, por meio de imagens articuladas, uma política do olhar endereçada a qualquer um que se deixe afetar por elas. Uma política do olhar que não pretende ilustrar visualmente o que já se sabe, mas instituir, ao contrário, uma pedagogia de desaprender significados já assentados sobre os assuntos que pauta.

É quase certo, entretanto, que o texto historiográfico que acompanha as imagens de Cabanagem seja tomado, por alguns, como indício da impossibilidade daquelas tecerem, por seus próprios meios, a narrativa intertemporal que seu autor manifestadamente pretende sugerir com seu trabalho fotográfico, na qual insurgências e violências de lugares e tempos apartados são avizinhadas. Um amparo escrito que, mesmo sendo de natureza obviamente distinta da produção imagética de André Penteado, tornar-se-ia de tal forma indispensável para conferir sentido àquela que enfraqueceria, inapelavelmente, uma alegada ou desejada autonomia do campo da fotografia. Embora esta seja uma crítica legítima para quem espera das imagens a capacidade de prescindir do convívio ruidoso com outras maneiras de tentar representar o real (todas, incluindo a fotografia, sempre inapelavelmente parciais ou falhadas), é razoável entender o ensaio textual de Magda Ricci como um disparador de associações visuais que não compromete a potência fotográfica do projeto, funcionando quase como legenda ampliada e conjunta do trabalho. Ou, ainda, como estratégia para estabelecer um chão contextual para as imagens contidas nos dois livros que é amplamente legitimada no campo da produção simbólica contemporânea, onde não mais existe a pretensão moderna de separação entre arte e vida ou entre cognição visual e escrita.

Considerando-se apenas os dois volumes tomados por fotografias, é ainda curioso notar que, apesar de possuírem tamanhos distintos, não há indicação, explícita ou sugerida, que exista uma hierarquia de conteúdo entre eles. Evocando, em sua materialidade gráfica modesta, antigos cadernos de tomar notas ou de fazer contas, eles parecem, ao contrário, operar em conjunto, reforçando mutuamente seus possíveis significados. No menor dos dois livros, de capa vermelha onde nada está escrito, há uma sucessão de 26 retratos de pessoas encontradas durante o processo de pesquisa do fotógrafo em várias cidades paraenses: Acará, Barcarena, Belém, Cametá, Ilha de Tatuoca, Vigia e Vila de São Francisco Xavier. Conforme indicam as breves informações associadas a cada imagem, entre os retratados incluem-se o descendente de um personagem central no desenrolar da Cabanagem, historiadores que estudam o conflito, um político que se considera herdeiro dos cabanos, agricultores, religiosos, funcionários públicos de ocupações diversas, trabalhadores do comércio, um policial, um segurança, entre mais mulheres e homens com quem o autor travou contato. São fotografias que, feitas no ambiente de trabalho ou caseiro de cada um dos ali figurados, formam, à medida que se percorre o livro, uma galeria de tipos em torno dos quais perduram e se articulam questões sociais que, pela gravidade, ecoam as existentes à época da Cabanagem.

O volume maior – em dimensões e número de páginas –, de capa verde que também não traz qualquer escrito, chama logo a atenção por sua oposição radical de conteúdo em relação ao outro, posto que neste não há retrato de pessoa alguma, mas uma sucessão de mais de uma centena de cenas de exteriores e interiores feitas por André Penteado. As poucas imagens com presença humana ali contidas não são de sua autoria, tendo sido apropriadas e inseridas, com parcimônia, no corpo do ensaio. Após uma sucessão de imagens de vegetação típica de mata com que abre o livro – umas feitas durante o dia, outras durante a noite –, o fotógrafo promove corte abrupto e introduz a cena de um interior com piso e paredes pintados de vermelho intenso, bloqueando qualquer possibilidade de leitura celebratória das imagens que faz dessa parte do mundo. A partir daí, sucedem-se fotografias de ambientes vazios de gente e quase sempre inutilizados ou decaídos, seja pela ação natural do tempo ou pela intervenção humana. Em planos frequentemente fechados, nos quais fragmentos ou detalhes dos lugares são preferidos à sua descrição panorâmica, é possível reconhecer escritórios disfuncionais ou desocupados, igrejas com imagens de santos danificadas ou encobertas em papel ou pano, porções de floresta devastadas, edificações em ruínas.

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São fotografias que parecem operar como vestígios de acontecimentos devastadores, entre eles, talvez, o esquecimento. É razoável que possam ser entendidos como evocações de aspectos conhecidos e violentos da Cabanagem, tais como os embates constantes envolvendo os políticos e servidores públicos fiéis ao Império e aqueles outros que desafiavam a autoridade do poder central. Ou como lembranças da recusa, com frequência por meios duros, de os cabanos acatarem os dogmas e ritos da igreja católica trazidos pelos colonizadores europeus, ainda que já então os tivessem incorporado, misturados a heranças simbólicas indígenas e africanas, às suas maneiras de expressar religiosidade. São muitas as associações passíveis de serem feitas entre essas imagens de desmanche social e a brutalidade que marcou o conflito da Cabanagem. Vistas em seu conjunto e em edição vertiginosa que alterna e mistura os tons e as composições das fotografias, o resultado é de desolação e confinamento, o qual é ainda ampliado pelas pontuais inserções de imagens que exibem a figura humana.

A primeira dessas situações, repetida algumas poucas vezes ao longo do tomo, refere-se à inclusão de registros fotográficos de pessoas mortas de maneira violenta, publicados originalmente na seção policial do jornal Diário do Pará. Imagens que preservam as identidades dos retratados através da prática, comum a muitos jornais, de ocultar, por meios gráficos, a região em torno dos olhos inertes dos mortos. A segunda e rara presença explícita do corpo humano no livro é uma imagem composta pelos rostos de dois homens apresentados lado a lado e frontalmente – aparentemente, o fragmento de uma pintura –, editada pelo autor do livro de modo a que seus olhos não pudessem ser vistos. A terceira, que como as outras exceções é também uma imagem feita por outros, exibe o rosto de uma senhora negra que ri, mas cujos olhos são “vendados” por uma mancha de luz intensa. São, em todos os casos, imagens que tratam da impossibilidade de enxergar.

Da narrativa claustrofóbica e fragmentada que emerge da publicação, fica a impressão forte de que o passado de algum modo espreita o tempo de agora, afirmando uma incômoda continuidade na trama de fatos que constitui a história do país. Sem alarde e valendo-se de uma estética quase forense na feitura e na apresentação de imagens, André Penteado parece buscar evidências de um acontecimento distante para interpretar melhor o que está bem próximo. Toma a Cabanagem como lente privilegiada para acercar-se de conflitos correntes e ativa, a partir desse lugar de investigação que inventa, a potência política que existe no ato de fotografar.///

 

Moacir dos Anjos é curador, crítico de arte e pesquisador. É coordenador de arte contemporânea da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, e foi curador da 29ª Bienal de São Paulo em 2010. Publicou ArteBra Crítica: Moacir dos Anjos (2010) e Local/global: arte em trânsito (2005), entre outros volumes e ensaios em livros.

 

A revista ZUM publica em seu site resenhas de livros de fotografia e novidades do mercado editorial no Instagram. Os livros podem ser enviados para Revista ZUM / IMS – Av. Paulista, 2439, 6 andar – CEP 01311-936 – São Paulo, SP. A equipe da revista seleciona as publicações e encaminha para resenha. Todos os livros, inclusive os não resenhados, são depois enviados para a Biblioteca de Fotografia do IMS Paulista.

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