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Arquitetura e identidade: a extravagância neo-andina nas fotografias do nipo-brasileiro Tatewaki Nio

Guilherme Wisnik & Tatewaki Nio Publicado em: 21 de agosto de 2017

Série Neo-andina, de Tatewaki Nio, 2015.

Edifícios extravagantemente coloridos, coroados por chalés com telhados pontiagudos, em meio a paisagens pobres e monocromáticas, característica de áreas suburbanas do chamado Terceiro Mundo. Essas edificações, projetadas e construídas por Freddy Mamani Silvestre – arquiteto autodidata que começou a carreira como trabalhador da construção civil –, são os protagonistas da série Neo-andina, de Tatewaki Nio, feita na localidade de El Alto, no altiplano boliviano. Tive a felicidade de acompanhá-lo em uma de suas viagens de trabalho, e assim pude tanto observar de perto o seu processo de investigação, estabelecendo diálogos com ele, quanto conhecer a realidade complexa desse lugar, com sua geografia, história e cultura muito singulares.

Nio é japonês, mas vive no Brasil há quase duas décadas. Pesquisando na internet, seu atento radar captou esse interessantíssimo fenômeno cultural recente da Bolívia, cujo fundamento histórico se assenta em uma inesperada conexão entre aspectos profundamente identitários do lugar, por um lado, e novidades trazidas pela globalização, por outro. Por isso, duas advertências, aqui, são importantes logo de saída. Em primeiro lugar, não é a avaliação estética dessa arquitetura – isto é, a intenção de elogiá-la como genuína, ou de condená-la como vulgar – que move o interesse da pesquisa. Em segundo, o olhar do fotógrafo não mira El Alto, ou a arquitetura de Freddy Mamani, por um ângulo exótico. Quer dizer, não se trata de apenas exponenciar os contrastes ali presentes, como se esses edifícios constituíssem uma aberração terceiro-mundista. Mas sim de se aventurar a fundo na trama complexa que torna aquele fenômeno cultural possível, expandindo o campo de reflexão em torno dele.

Do ponto de vista do imaginário visual, as paisagens urbanas de El Alto lembram algo do oeste norte-americano: rarefeita, desolada, carente de espaços públicos. Com a diferença importante de que são mais pobres e, a todo momento, revelam a proximidade do universo rural, nas comidas, nas roupas das pessoas, na presença de animais. Mas quando olhamos para os estridentes Salões de Eventos projetados e construídos por Freddy Mamani e sua equipe, lembramos também de Las Vegas e de toda a paisagem comercial kitsch que se alastrou pelo mundo a partir do exemplo dessa cidade de cassinos perdida em meio ao deserto de Nevada. Analisando o aparato de signos plugados sobre as fachadas dos edifícios comerciais da cidade norte-americana, na virada dos anos 1960 para os 70, Denise Scott Brown, Robert Venturi e Steven Izenour cunharam o termo “galpão decorado”, que define uma tipologia de arquitetura banal revestida de ornamentos com alto poder de comunicação. Assistia-se então à decadência da forma arquitetônica em prol da ascensão do signo, da comunicação urbana, segundo a profecia dos autores de Aprendendo com Las Vegas (2003).

Nio realiza uma foto que potencializa o seu realismo fantástico, o seu aspecto ao mesmo tempo lúdico e sinistro, que aponta a falta de profundidade das coisas, sua superficialidade agressivamente colorida.

Muito do aspecto assumidamente cenográfico dessa arquitetura de “galpão decorado” aparece no ensaio feito por Tatewaki Nio em El Alto, focalizando os edifícios de Mamani. Um exemplo claro é a foto do Salão “El tren”, que ostenta um diamante na fachada. Ali, com o rígido enquadramento frontal conseguido pelo fotógrafo, que valoriza o encontro coincidente de arestas entre o edifício e o seu vizinho, incluindo suas partições térreas, ficamos com a impressão de que se trata de uma montagem bidimensional, uma colagem, e não de uma imagem real. Pois parecem improváveis as leituras de continuidade entre o volume lateral de blocos de tijolos aparentes, à esquerda, em perspectiva, e a fachada frontal do edifício, à direita, bruscamente interrompida, e que parece feita de papelão, isopor ou algo do gênero. Isto é, explorando a artificialidade própria à cena, Nio realiza uma foto que potencializa o seu realismo fantástico, o seu aspecto ao mesmo tempo lúdico e sinistro, que aponta a falta de profundidade das coisas, sua superficialidade agressivamente colorida – a recorrente paranoia pós-moderna –, na imagem de uma espécie de “cidade Potemkin” dos Andes [O termo “cidade Potemkin” se refere à lenda de que Grigory Potemkin – amante de Catarina II, conhecida como “a grande”, e governador da região da Crimeia – haveria construído uma falsa cidade desmontável de fachadas vazias, feita para impressionar a imperatriz russa em sua viagem à região, em 1787].

Série Neo-andina, de Tatewaki Nio, 2016.

Penso que a emergência dessa arquitetura chamada “neo-andina” é um fenômeno cultural do mais alto interesse hoje. São construções aberrantemente coloridas, feitas muitas vezes com cores complementares e elementos com transições em degradê, e com espelhos e motivos ornamentais de gesso, que ficaram conhecidas como “cholets”. Isto é: os chalés do “cholos”, camponeses indígenas que habitam a cidade. São grandes salões de eventos, alugados para festas, incluindo térreos comerciais, e coroados com a casa do dono do imóvel no topo, feita com telhados inclinados, em forma de chalé. Uma arquitetura kitsch e exibicionista que contrasta fortemente com a paisagem do entorno: ruas de terra, e construções precárias de alvenaria de tijolo, que ostentam o desagradável aspecto de obras não terminadas. Mas, afinal, o que haveria de tão especial dos pontos de vista histórico e cultural nesse fenômeno arquitetônico e urbano, para além de um contraste sedutor do ponto de vista visual?

El Alto é uma cidade nova, situada ao lado (ou acima) de La Paz, que nasceu como um subúrbio daquela, na área plana e alta onde foi instalado o seu aeroporto, em 1965. Precário desde a origem, o assentamento urbano cresceu de forma desordenada e totalmente autoconstruída pelas pessoas pobres – “cholos”, de etnia predominantemente Aymara – que foram lá se instalando e vivendo do comércio informal que liga o altiplano (e, com ele, o Chile, o Oceano Pacífico e o Oriente) às áreas mais baixas e ricas da Bolívia, que chegam a Santa Cruz de la Sierra e ao Brasil. Muitos desses habitantes de El Alto são ex-mineiros, que perderam o trabalho com a onda de privatizações e o fechamento das minas (de prata, estanho e carvão) nos anos 80 e 90. E, por isso, trouxeram com eles uma forte consciência política para a cidade, baseada em uma profunda tradição sindical. Forma-se, aí, um novo fenômeno urbano de grande interesse.

Com a economia globalizada das últimas décadas, houve um importante deslocamento econômico dos setores da produção para os de serviços, favorecendo o surgimento de uma nova burguesia Aymara, que justamente controla o transporte de bens (incluindo a folha de coca) nesse grande “hub” geográfico do continente que é El Alto. É justamente essa nova classe social, que tem livre trânsito comercial com a China e a Índia, que adotou, ao menos em parte, a arquitetura de Freddy Mamani como símbolo de afirmação identitária e de status social, construindo seus imponentes Salões de Eventos – o que se fundamenta na prática indígena, de origem rural, de se oferecer festas cotidianamente, implicando aos convidados a necessidade de se retribuir o convite oferecendo novas festas, segundo o modelo de imbricamento cultural entre dívida e dádiva analisado por Marcel Mauss. O resultado é uma arquitetura que combina motivos locais – certas geometrias ornamentais próximas às das construções e cerâmicas pré-hispânicas de Tiwanaku, combinadas às fortes cores dos tecidos locais – com uma estética pós-moderna semelhante às de Bollywood e de Las Vegas.

Série Neo-andina, de Tatewaki Nio, 2016.

Com essa mistura explosiva entre forte organização camponesa, tradição sindical, identidade indígena e grande entrada de capital internacional, El Alto se tornou um importante centro de resistência às políticas urbanas neoliberais, liderando as revoltas da chamada “guerra do gás” em 2003, que levaram à queda do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, e à ascensão de Evo Morales, eleito dois anos depois.

Misto de aldeia rural com grande subúrbio genérico de beira de estrada, El Alto fermenta uma experiência importante para a esquerda latino-americana nos sombrios dias atuais.

Com pouco apoio do Estado, a sociedade manteve sua organização comunal, com “juntas de vizinhança”, e uma forma de fazer política distante das relações tradicionais entre o público e o privado. Trata-se de um verdadeiro ensaio contemporâneo daquilo que alguns autores chamam de “a esfera do comum” (Commons), distinta da ideia mais tradicional de “esfera pública”, tal como apontado por David Harvey, baseando-se nas pioneiras pesquisas de campo feitas por Sian Lazar.

Voltando ao ensaio fotográfico de Tatewaki Nio, há, no mínimo, uma graça irônica em se transpor a frontalidade solene das fotos de arquitetura do casal Becher para a realidade aberrante e periférica do Altiplano andino, trocando-se o heróico vernáculo industrial europeu pelo desinibido pseudo-vernáculo pós-industrial latino-americano surgido em tempos de globalização. Contudo, a série fotográfica de Nio não se restringe à documentação frontal das fachadas dos Salões de Eventos, evitando essa simples transposição irônica de contextos pela manutenção de uma linguagem.

As referências de Mamani a Tiwanaku são fabulações, mais do que citações reais e precisas. Nem a própria relação de continuidade entre os Aymara e a civilização tiwanacota está demonstrada historicamente. Massacrada por séculos, essa população de origem indígena busca agora formas simbólicas de afirmação identitária, no momento em que, dadas as condições políticas e econômicas recentes, puderam ascender socialmente. Mais uma vez, aqui, o ensaio fotográfico de Tatewaki Nio é revelador, quando mostra cenas internas de festas nesses Salões de Eventos, bem como cenas posadas com mulheres que reafirmam a vestimenta tradicional indígena: a chamada “mujer de pollera” [pollera é o nome que se dá à saia tradicionalmente usada pelas índias e cholas bolivianas].

Série Neo-andina, de Tatewaki Nio, 2016.

Série Neo-andina, de Tatewaki Nio, 2016.

 

Série Neo-andina, de Tatewaki Nio, 2016.

Série Neo-andina, de Tatewaki Nio, 2016.

Focalizando grandes aglomerações nas ruas, em que se misturam multidões de pessoas, carros, vans, micro-ônibus, caminhões, barracas, e produtos expostos no chão, o fotógrafo registra com potência a sufocante experiência de proximidade que marca a vida cotidiana em El Alto. Uma proximidade promíscua, criada pela hipertrofia da informalidade, e que se mistura aos costumes festivos das populações Aymara e Quetchua. Como bem observou Nelson Brissac Peixoto, em artigo para a revista ZUM, o ensaio visual de Tatewaki Nio não fetichiza a arquitetura “neo-andina” de Mamani. Ao contrário, inclui a visão peripatética de um observador que olha esses edifícios caminhando pelas ruas da cidade, e portanto situando-os em relação ao contexto no qual se implantam, e do qual emergem. Uma relação tanto de contraste em relação à paisagem pobre e monocromática do entorno, quanto de diálogo com a rica cultura ornamental do lugar, presente nas roupas ou nas decorações dos micro-ônibus que aparecem recorrentemente em suas fotos.

Abstraído o referente externo da paisagem periférica de El Alto, o ambiente interno desses salões é de pura fantasia delirante, em meio a uma parafernália de cores, lustres, lajes e sancas curvas, capitéis em forma de cogumelo, e um céu artificial de pequenas lâmpadas por toda a parte. Mas engana-se quem pensa que os bons costumes do folclore local estão sendo conspurcados pela invencionice nada ortodoxa do arquiteto. Não é possível retrocedermos um modelo original do que seja o “tradicional” ou o “autêntico” nesse caso. O próprio chapéu das “cholas” bolivianas, tão característico de sua identidade, é o borsalino italiano, trazido pelos conquistadores europeus, e muito bem apropriado localmente desde então. Significativamente, nas fotos internas de Nio as cenas pulsam entre o real e fantasia – palavra tomada em seu duplo sentido –, não nos deixando nunca confortáveis para nos decidirmos por uma coisa ou por outra. Flutuando em meio a uma ambiência anti-tectônica que afronta toda ideia de solidez e de permanência histórica, nos deixamos levar pelo clima inebriante de uma espécie estranha de cassino no qual não há apostas, apenas dança. Entre o local e o global, no coração da América do Sul, uma nova forma de sociabilidade parece estar sendo agressivamente forjada. Precisamos ter olhos para vê-la.///

 

Tatewaki Nio (1971) é um fotógrafo nascido no Japão que vive em São Paulo há cerca de 20 anos. Formado em sociologia pela Universidade Sophia (Tóquio), estudou fotografia no Senac-SP. Recebeu o Prêmio Funarte de Arte Contemporânea em 2011 e foi contemplado com a residência fotográfica do Museu de Quai Branly em 2016 para realizar o projeto Neo-andina. Participou de exposições coletivas como a Confluências – Transatlântica 10 anos (2017), 18º Festival Sesc-Videobrasil (2013), X Bienal de Arquitetura de São Paulo (2013) e Esquizofrenia Tropical – Photoespaña (2012).

Guilherme Wisnik é arquiteto, crítico e professor da FAU-USP. Foi curador da décima edição da Bienal de Arquitetura de São Paulo, em 2013.

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