De olho no céu
Publicado em: 12 de agosto de 2022Em entrevista de 2018 sobre seu último documentário, Visages, Villages, a cineasta belga Agnès Varda disse: “Queríamos fazer um filme para fazer o público adorar as pessoas que filmamos. Queríamos compartilhar a empatia que tivemos por eles. (…) É apenas conhecer gente, compartilhar quem somos.” Impregnado por esse sentimento, hoje venho aqui escrever não somente sobre um trabalho artístico mas, principalmente, sobre pessoas que conheci e amigos que fiz.
Vamos começar pelo começo. Você sabe o que é um plane-spotter? Explico: Plane-spotter é o nome dado às pessoas apaixonadas pela fotografia e pela aviação. Que se dedicam ao hobby de colecionar e catalogar imagens das mais variadas aeronaves de acordo com a data, local, companhia, modelo, pintura e matrícula, entre outras variáveis.
Eu também não sabia quando me joguei numa feira de aviação no Campo de Marte (SP) após ver um anúncio em um jornal. Mas, no meio de um formigueiro de gente que esperava pela exibição da Esquadrilha da Fumaça, esbarrei com um animado grupo uniformizado com uma camisa azul escrita “Bra Spotters”. Meio sem jeito, me aproximei e, procurando me enturmar, falei sobre meu interesse em compreender melhor o universo da aviação. Zeca, Guva e Bia me encararam com um olhar de curiosidade, mas quem decretou foi o Caio: “Olha mais um louco aí, vamos colocar ele no grupo!”. E assim entrei no grupo de WhatsApp dos Bra Spotters.
De início, tive uma postura mais de escuta, quase me fazendo de invisível, num estado de aprendizado silencioso. Aos poucos, conforme me familiarizava com os assuntos, as expressões, as gírias e a ética de ser um spotter, fui tentando diminuir a distância e começando a interagir. Percebi que eles tinham muitas dúvidas técnicas sobre fotografia e que praticamente ninguém do grupo havia tido a chance de estudar o assunto. Ali se trocava conhecimento e cada um colaborava como podia. Como definiu Caio, falando sobre o aprendizado sem ter acesso a cursos técnicos: “tem que catar bituca de cigarro no chão pra poder fumar”. Com duas décadas de fotografia aplicada nas costas, achei que era uma boa oportunidade e comecei a dar alguns palpites, o que me renderia por um breve período o apelido de “professor”.
Além disso, pude perceber também que o grupo, composto por quase 90 homens e mulheres de todo o Brasil (na sua maioria bem jovens, entre 14 e 25 anos de idade) era também um lugar de se criar laços, fazer amizades e, acima de tudo, de acolhimento e de apoio mútuo. Essa receptividade não se dava somente em relação aos comentários sobre as imagens compartilhadas que eram, quase sempre, recebidas com o olhar generoso daqueles que sabem que o aprendizado é um processo em eterno andamento. Mas também para situações da vida particular de cada um, onde os mais experientes davam conselhos aos que compartilhavam suas angústias no grupo. Quantas vezes não vi o Zeca, ponderado e generoso, apaziguar os corações e mentes de quem pedia ajuda?
Enfim, durante um ano e meio li, todas as noites, uma média de 300 mensagens trocadas. Dessa maneira fui criando os meus próprios laços e comecei a frequentar os encontros, primeiro nos locais próximos aos aeroportos e, depois, nas próprias casas dos spotters.
Um dos primeiros e mais icônicos lugares que conheci para fotografar aviões foi o Morrinho de GRU. Atravessando vários bairros e comunidades carentes para dar a volta no aeroporto, chega-se ao Jardim São João, onde uma rua de asfalto se transforma em terra e, lá no fim, já sem saída, uma pilha de entulhos parece fazer às vezes de um sinal de “não entre”. Mas, já a pé e contrariando o aviso, Zeca e Caio contornaram o obstáculo e me guiaram até uma grade com um buraco recortado de forma a facilitar a passagem de uma pessoa. Por ali, nos esgueiramos em fila indiana e caminhamos pela trilha de terra, desviando das vacas e atento ao alerta que me fizeram sobre os escorpiões que habitavam o matagal alto. No fim, chegamos a um platô de onde se tinha uma ampla e privilegiada vista das pistas e do terminal 3 do aeroporto internacional de Cumbica. A sensação era haver ultrapassado um portal para uma outra dimensão que se abria somente para os iniciados.
As “morrinhadas” aconteciam quase que mensalmente. A ideia era sempre madrugar lá e passar o dia, às vezes sob um sol de quase 40º, num terreno baldio sem nenhuma estrutura. Alguns traziam água, sanduíches e até um assento portátil de casa, outros, que se intitulavam “spotter raiz”, passavam 12h em pé, na alegria, fotografando e conversando nas pausas entre a aparição de uma aeronave e outra. Para as necessidades fisiológicas duas opções: se arriscar no tal matagal com seus aracnídeos ou caminhar de volta até o terminal de ônibus São João. O importante era não perder nenhuma das estrelas do dia que, normalmente, aterrissavam bem cedo e decolavam novamente no final de tarde.
Em algumas ocasiões, a “morrinhada” se tornava um evento ainda mais especial: plane-spotters de outros estados se programavam para vir e confraternizar ao vivo com aqueles que só conheciam pelo WhatsApp. Camila veio do Rio, Alex de Belo Horizonte, Jorgin de Montes Claros, Jeff de João Pessoa, Franklyn e JG de Campo Grande, BC de Sorocaba. Celso, 14 anos, de Cabo Frio, e Rafinha, 13, de São José do Rio Preto contaram com a solidariedade dos pais para fazer o bate e volta.
Aos poucos fui entendendo que, para muitos, o hobby havia se iniciado sob e sobre o teto da própria casa. Brasilândia, Vila Nova Cachoeirinha, Tucuruvi, Vila Hulda, Jardim Presidente Dutra, Vila Nova Bonsucesso, Vila Santa Catarina e Diadema são alguns dos bairros próximos às cabeceiras das pistas (ou logo abaixo das rotas de aproximação), locais onde os futuros spotters nasceram e passaram suas infâncias. Talvez pela falta de um lazer democrático oferecido pela cidade, talvez pela impossibilidade de deixar de notar toneladas de aço e alumínio passando diariamente alguns metros acima de suas cabeças; olhar pra cima tornou-se uma diversão e, porque não, uma válvula de escape. Esses privilegiados plane-spotters podiam clicar sem sair de casa, prática batizada de “home-spotting”.
Frequentei alguns aniversários, churrascos e até um chá revelação (do Ícaro, afinal, que outro nome poderia ter o filho do Zeca?) nas casas dos amigos. Assim como Zeca, Caio, Gisele, Jeff e Léo, sempre levava minha câmera para aproveitar as oportunidades em novos “spotting-points”. Aplicativo do Flight-Radar no celular para monitorar a aproximação das aeronaves e, entre um momento de confraternização e outro com amigos e familiares, todas as câmeras apontadas para o alto para não perder o registro. Com uma única exceção: a minha câmera, que acabava focando o olhar no olhar dos outros, fotografando quem estava fotografando e seu entorno, como um voyeur dos voyeurs. Não por acaso ganhei um novo apelido: “o historiador”, e esse sim carrego até hoje comigo.
Conheci o GG no dia em que o Antonov, avião de carga Ucraniano que responde pelo recorde de maior do mundo, faria uma escala em São Paulo. O Morrinho e o Terminal estavam apinhados de gente se acotovelando para tentar ver e fotografar o gigante. GG estava lá, com seus 20 e poucos anos, fala mansa e tranquila, tentando achar espaço no janelão do terminal 2. Talvez também pela minha própria fala mansa e tranquila, a simpatia foi mútua e conversamos bastante aquele dia.
Nos meses seguintes acabei me aproximando ainda mais e cheguei a visitá-lo algumas vezes para assistir ao Barcelona do Messi jogar, paixão comum a ambos. Ao entrar em sua casa, uma prateleira decorada por sua coleção de maquetes dividia o espaço com outro que já ascendeu aos céus, Jesus Cristo, em forma de estátua. Antes e depois do jogo, da janela da sua cozinha no quarto e sala alugado em Diadema, observávamos os aviões que desciam para pousar em Congonhas. Numa das visitas ele me apresentou seus álbuns onde colecionava as fotos impressas das aeronaves. De maneira sistemática e metódica, os aviões eram organizados por companhia e pela matrícula em ordem alfabética. Quando faltava a imagem de algum avião da frota, ele colocava no lugar um papel em branco apenas com o nome da matrícula, como num álbum de figurinhas que um dia viria a ser completo. Além disso, ele tinha muito bem definido na cabeça o ângulo e o momento exato para captar as imagens, de modo que a asa não encobrisse a cauda e ainda ficasse alinhada com parte da fuselagem. Seu rigor na forma e a obsessão em catalogar me fizeram imediatamente lembrar da dupla de artistas Hilla e Bernd Becher e suas “esculturas” industriais.
Navegando por um grupo de spotters no Facebook me deparei com algumas fotos de maquetes de avião que me chamaram a atenção. Com um acabamento meio rudimentar, pareciam serem feitos de uma maneira original e artesanal, longe de algo feito de forma industrializada. Entrei em contato com o Maurício pela rede social e perguntei se poderia conhecer os aeromodelos que ele fazia. No dia seguinte estava indo para Pirituba, bairro próximo à rota de aproximação dos vôos que se dirigem para Guarulhos. Quando cheguei lá, ele me explicou que realmente os fazia a mão, misturando madeira com massa epóxi. Para fuselagem, utilizava cabos de enxada que estavam em promoção numa loja próxima e, com muita paciência, torneava a peça até conseguir dar a forma desejada. Fiquei fascinado por aqueles aviões esculpidos e pintados manualmente, feitos praticamente sem recursos e com muita criatividade. De início pedi para fotografar um no próprio chão da casa dele. Era um A330 da TAP com pintura comemorativa da década de 70, que de vez em quando vinha para o Brasil. Era sempre um alvoroço no grupo quando corria a notícia de que a matrícula CS-TOV estava vindo. No fim, Maurício me disse que estava desempregado e que vender as miniaturas ajudava a ele e a família a passarem por aquele momento difícil. Acabei saindo de lá com minha primeira maquete.
Entre os milhares de vídeos compartilhados que pude ver no grupo de WhatsApp, um me deixou alucinado. Numa rua de comércio agitado as pessoas, repentinamente, param de caminhar e começam a olhar pra cima e falar: “olha ele aí, olha ele aí!”. E eis que surge, gigantesco sobre a loja de roupas A Preciosa e o Shopping Braz, conhecido pelo slogan “Aqui seu Real vale mais!”, o A380 da Emirates, maior avião comercial do mundo, fazendo os cabelos voarem e calando a força a agitação do bairro com o ruído do seu motor. Quem me elucidou o mistério foi o Higor, que morava no Jardim São João, próximo ao morrinho. Segundo ele, o vídeo havia sido gravado no Jardim Presidente Dutra, uma comunidade carente que ficava entre a Rodovia e cabeceira da pista de Guarulhos, um pouco abaixo de onde ele próprio morava. Pedi algumas indicações e parti para lá, seguindo o alerta do amigo de não passar da Rua 100, pois podia ficar perigoso para mim. Estacionei e caminhei pelas ruas tentando achar o melhor ângulo para a foto. Depois de muito bater perna observando a aproximação de outras aeronaves achei, numa das últimas ruas antes de o avião chegar à pista de aterrissagem, uma ilha de concreto onde eu poderia ficar sem correr risco de atropelamento. Sempre com um olho no Flight-Radar, fiquei observando a vida do bairro enquanto o monstrengo não vinha. Por conta das calçadas para lá de estreitas e acidentadas, as pessoas circulavam pela rua mesmo, disputando o espaço com carros e caminhões, desviando dos obstáculos pelas duas mãos. Para completar o xadrez urbano, crianças se divertiam jogando futebol e andando de bicicleta, indiferentes à circulação caótica ao seu redor. Muitas das casas ainda com os tijolos aparentes e sem pintura e muitos, mas muitos postes e fios formando uma grande teia que a tudo envolvia.
Quando o aplicativo mostrava que o A380 já se aproximava, apontei a câmera para o fim da rua e aguardei com o dedo no obturador e alguma ansiedade. Primeiro veio o som. Depois o avião, numa altura que eu não esperava. Estava também mais lento do que imaginei. Reenquadrei rápido e cliquei novamente aquela imagem surreal: contrastando com um multimilionário Sheik árabe, sorrindo alegremente e acenando para os moradores a partir do céu, estavam as crianças que tentavam tirar algum lazer de um bairro que não tinha muito a oferecer aqui na terra.
Técnico de manutenção de elevadores, faxineiro de ônibus rodoviários, taxista, motoboy, zelador, corretor de imóveis, atendente de balcão, editor de vídeo, cadete do exército, aspirante à polícia militar e vários estudantes: estas eram algumas das várias ocupações dos amigos que fiz. Muitos, porém, têm declaradamente o sonho de trabalhar com aviação, seja voando, como comissário/a ou piloto/a, seja em terra, como atendentes, mecânicos, etc. Hoje sei que GG e Anselmo conseguiram fazer essa transição e estão trabalhando diariamente com o que mais amam.
Por vezes tentei entender o que levava os spotters ao seu hobby. A vida dinâmica, sempre em trânsito, da aviação civil? A admiração pela tecnologia daquelas máquinas? Uma obsessão por colecionar e catalogar? Uma terapia ocupacional contra o stress do dia a dia? Uma busca por um lazer democrático em bairros que não tem muito a oferecer? Ou quem sabe apenas o simples sonho de voar? Quem me deu a melhor resposta foi Jorgin: “só entende quem nasce com querosene nas veias.”
Hoje, já em 2022 e prestes a embarcar para a 15º Documenta, uma das maiores e mais importantes exposições de arte do mundo, começo a pesquisar sobre o coletivo indonésio Ruangrupa, encarregado de fazer a curadoria dessa edição. Na busca, encontro mais uma peça que parece se encaixar nesse quebra cabeça onde arte e vida se mesclam com tanta naturalidade, como Agnès Varda nos fez ver em toda sua obra-vida. Impresso em faixas e paredes pela cidade de Kassel, uma frase que resume as práticas e um slogan do Ruangrupa: “Faça amigos, não arte”. É o desejo que deixo por aqui para todos nós. ///
Fotos da série SDDS 3404, de Marlos Bakker, 2017-2020
Marlos Bakker é carioca e descobriu a fotografia através da Comunicação Visual na UFRJ. Recentemente foi o vencedor dos prêmios Brasil Fotografia e Gávea Fotografia. Foi finalista dos prêmios Conrado Wessel, Diário Contemporâneo, Transatlántica Photo España AECID, Descubrimientos Photo España, além de premiado com uma bolsa para participar da Bienal Fotofest em Houston. Seu ensaio fotográfico Com que sonham os peixes? foi exposto em na Casa das Américas, em Madri, como parte da seleção oficial do Photo España.
Tags: Avaiação, documentário, Spotter