O lado humano da guerra
Publicado em: 10 de agosto de 2023Esse final de semana abre na cidade de Campinas, interior de São Paulo, uma exposição dedicada ao premiado fotógrafo brasileiro Yan Boechat. Há mais de 20 anos testemunhando conflitos armados, desastres ambientais, desigualdade e violência, em países como a Síria, Iraque, Afeganistão, Palestina, Ucrânia, Congo, Angola, Tunísia, Venezuela, Nepal, Etiópia e Brasil, a mostra destaca imagens de Boechat realizadas na cobertura de conflitos recentes no Iraque, Síria, Etiópia e Ucrânia.
Boechat iniciou sua carreira como repórter de texto. A fotografia era uma paixão e ganhou protagonismo mais tarde quando, cerca de uma década atrás, decidiu sair das redações tradicionais e fazer matérias por conta própria. Segundo ele, a ‘colunização do jornalismo’ tirou o foco – e o dinheiro – da produção de informação primária em favor da secundária. Ou seja, se investe atualmente mais em comentaristas do que em repórteres e correspondentes. Para contornar esse cenário um tanto adverso, Boechat começou a oferecer fotografias, e mais tarde também vídeos, junto com suas reportagens.
As guerras de Yan Boechat
É atribuída a Robert Capa, um dos mais conhecidos fotógrafos de guerra do século 20, uma famosa frase que resumiria, para ele, o seu ofício: se uma fotografia não é boa o suficiente, é porque o fotógrafo não estava perto o suficiente. Essa frase pressupõe muitos dos elementos que constituíram a ideia que fazemos hoje de um fotógrafo de guerra: que ele (geralmente sujeito masculino) é não só destemido, mas comprometido com o que reporta a ponto de voluntariamente arriscar sua segurança para obter a foto.
Mas poderíamos nos perguntar perto de quê esse fotógrafo tem que estar? A resposta óbvia é: perto da ação. Mas o questionamento persiste, qual ou quais ações constituem o evento guerra? Seria o tiro ou o lançamento da bomba? O general que assina a ordem de dar o tiro ou de lançar a bomba? O lugar ou corpo que recebe o tiro ou o que é destruído pela bomba? Ou seja: o que qualifica uma fotografia como ‘fotografia de guerra? Em nosso mundo imerso em imagens, essa pergunta parece ainda pertinente.
É inegável que Yan Boechat está sempre perto de alguma ação. Suas imagens, por vezes, realmente mostram o momento em que o tiro sai do armamento ou o momento em que a bomba explode (como em Mossul, no Iraque – na foto acima). No entanto, mais do que isso, podemos ver no trabalho de Boechat um alargamento da noção de ‘guerra’, que inclui principalmente o aspecto humano das pessoas comuns que sofrem em cada momento de suas vidas os efeitos dos diferentes conflitos. Seja com as histórias pessoais de alguns voluntários brasileiros que ele encontrou lutando na Ucrânia em 2015, numa guerra que continua até hoje; seja com as crianças em Mossul, que são forçadas a conviver com um conflito também prolongado, e que por vezes o reproduzem em suas brincadeiras; seja nas histórias dos que perderam tudo e se viram forçados a abandonar suas vidas e recomeçar em campos de refugiados, como os tigrinos fugidos do conflito na Etiópia. Segundo ele, esta é “a verdadeira face da guerra”, a população destes lugares em conflito, os seus feridos.
Ainda hoje, grande parte do fotojornalismo comprometido mantem certos pressupostos da fotografia produzida na década de 1930, que se desenvolveu e internacionalizou após a Segunda Guerra Mundial – e que tem alguns de seus maiores representantes fotojornalistas congregados na agência Magnum. Pensada a partir da escala humana, esta fotografia singularizou indivíduos anônimos, fazendo assim uma contraposição destes homens e mulheres à sociedade estruturada em massas e também uma apologia da tecnologia. Os grandes atores – generais, políticos e armamentos sofisticados – são visíveis apenas por meio da destruição que promoveram. Ao mesmo tempo, são tais indivíduos anônimos que fornecem um rosto para a guerra, na figura do refugiado, do desabrigado, do ferido, do órfão, dos que precisam conviver com os efeitos da guerra a todo momento de suas vidas.
Quando apontei para Boechat a proximidade da visão dele com esta fotografia de valores humanistas, o fotógrafo assentiu, mas com reservas. Para ele, o que mais fascina e empolga no fotojornalismo é a capacidade de rascunhar a história, de ser um observador privilegiado da história, e não tentar buscar justiça. Para ele “é impossível encontrar justiça na guerra. A guerra não é o lugar de procurar justiça, ou de denunciar as atrocidades de um lado ou de outro”. Ele continua: “Claro, a gente precisa denunciar, mas a gente sempre está de uma lado, é sempre influenciado por um lado, e sempre usado como instrumento de propaganda de um lado. Por isso é difícil se arvorar em busca de justiça, porque o outro lado também sofre. Eu tendo a enxergar os atores quase todos como vítimas, e procuro ter empatia com todos eles, inclusive com os soldados que estão atirando, com o outro lado. Porque a tendência nesse processo todo é desumanizar o outro, essa é a ideia da guerra, essa é a narrativa da guerra.”
Ele usa como exemplo a Ucrânia. “A imprensa tem comprado essa narrativa, essa propaganda ucraniana que é desumanizar os russos. E a gente, quando está lá, precisa tomar muito cuidado para não abraçar essas ideias. Porque elas são fáceis de serem abraçadas quando você vê uma mulher sem uma perna, uma criança com a cabeça estourada. Se a gente não entender que essa é a natureza da guerra, a gente tende a aceitar a ideia de que o outro lado não é humano, de que o outro lado é o mal, porque essa é a maneira que você conta uma guerra: é o bem contra o mal, uma visão maniqueísta de mundo muito profunda. E as vezes eu vejo colegas abraçando essas ideias de uma forma pouco crítica. E no caso da guerra da Ucrânia é muito fácil abraçar essa ideia porque ela é uma ideia hegemônica no Ocidente – uma ideia hegemônica inclusive para os veículos que estão pagando para você estar lá. É difícil.”
Os perpetradores e as vítimas
É interessante então ver nas fotos de Boechat a presença de perpetradores como vítimas humanitárias, como em um campo de refugiados no norte da Síria, controlado por curdos, que recebeu mulheres e crianças fugidas dos últimos enclaves do Estado Islâmico naquele país. Muitas dessas refugiadas são treinadas em combate e fervorosas adeptas da ideologia do grupo extremista. Mas, mesmo assim, na reportagem de Boechat os curdos que gerenciam o campo pedem ajuda internacional para manter um mínimo de dignidade na vida destes refugiados – do contrário eles afirmam que as crianças de lá vão crescer e perpetuar o conflito.
O fotógrafo faz nesse ponto uma observação sobre a própria noção de perpetrador, ligada ao Estado Islâmico. Relembrando uma fotografia que se tornou muito famosa de um menino com o rosto transtornado, coberto de poeira e sentado em uma ambulância em Aleppo, que levantou a indignação mundial contra o regime sírio por bombardear a população civil, Boechat ressalta que essa população era de, ou estava, em território controlado pelo Estado Islâmico. Era portanto uma população semelhante à de Mossul, que foi dizimada por bombardeios norte-americanos e britânicos, no entanto sem levantar indignação nenhuma. Ou seja, as noções de perpetrador e de vítima também são sujeitas à propaganda e aos pontos de vista maleáveis da guerra.
Com sua câmera, Boechat constrói centenas de micro-histórias. São pequenos arquivos dos dramas humanos que podem ser unidos e recombinados (como no caso da Ucrânia, para onde o fotógrafo retornou em diversos momentos desde do início dos anos 2000, por vezes reencontrando as mesmas pessoas depois de anos) para montar uma narrativa multifacetada. Esse foco nos indivíduos anônimos e suas histórias remete à fotografia de valores humanistas, o exato oposto da guerra dos grandes equipamentos bélicos, das grandes personalidades, e dos negócios (como deixou escapar o líder militar cossaco entrevistado em 2015 na Ucrânia, ao admitir que “essa guerra ainda vai durar ao menos três anos, você sabe, houve muito investimento e é preciso esperar para que o lucro retorne aos investidores”).
E as fotografias realmente revelam que essas centenas de pessoas querem se mostrar e contar suas histórias. Penso especificamente em dois casos diferentes. Um homem que, apesar de cobrir o rosto com suas mãos, ainda assim posa para Boechat em uma Mossul destruída. E um homem tigrino fotografado de perfil, mostrando uma enorme cicatriz que cobre todo o lado de sua cabeça e corta a parte de cima de sua orelha. Esse homem claramente posou para Boechat. O fotógrafo não roubou nada dele – ao contrário, ele parece querer mostrar, e bem de perto, o sofrimento pelo qual passou e do qual é sobrevivente.
Pela sua experiência, Boechat me conta que narrar ajuda as pessoas a dar sentido para a dor. Para ele, as duas fotografias são muito diferentes, mas em alguns aspectos são semelhantes. Ele afirma que “para muitas dessas populações o senso de justiça se dá pelo reconhecimento externo da violência que ele sofreu”. A interpretação do fotógrafo é a de que a vítima não tem outro modo de retomar esse senso de justiça: “o estado de direito não funciona naquele momento onde ele está, ele tem dois caminhos na cabeça dele pra resolver a violência da qual ele foi vítima. Pela barbárie, que é um caminho, ou pelo reconhecimento de uma instância que ele julga ser superior ao estado das coisas. Muita gente entende que a imprensa é essa instância superior, porque ela pode dar voz a ele.” Essa é uma reação comum, que ele encontrou em outros lugares. “Se você vai a Gaza, por exemplo, quando uma criança é morta eles pegam o corpo da criança e enfiam na sua cara. Porque de certa forma isso ajuda a dar sentido, a pessoa encontra uma razão torta para aquele sofrimento. E as pessoas querem contar sua história. É raro encontrar quem não queira contar sua história, mesmo um criminoso quer contar sua história. Mas para essas pessoas vítimas de injustiça, contar a história dá um pouco de sentido para a situação enlouquecera que elas viveram.”
Boechat então reflete sobre a sua responsabilidade frente a estas vítimas. Ele entende que para as vítimas é importante ter esse registro, “de certa forma eu estou mostrando que tem alguém olhando aquilo. Mesmo em situações terríveis. Em geral as pessoas querem que eu mostre. E em geral eu não tenho nenhum limite pra fotografar, eu fotografo tudo.” Ele detalha: “Eu procuro não estabelecer ligações afetivas, e delimitar de forma bem clara o meu papel: eu não sou ativista, eu não vou te ajudar, a sua vida não vai melhorar, a única coisa que eu estou fazendo é contar a sua história.”
Aqui é importante ressaltar que embora neste artigo estejam incluídas imagens fortes, para a exposição idealizada pela Cátedra Sérgio Vieira de Mello, da UNICAMP, houve a opção por evitar fotografias de violência mais explícita. Essa opção curatorial veio do diálogo com a presidenta da cátedra, Ana Carolina de Moura Delfim Maciel e alunos envolvidos no trabalho de mediação e educativo.
Entre jornalismo e propaganda
A exposição das fotografias de Boechat não tem a pretensão de analisar na totalidade os conflitos abordados, ou contar uma história única e coesa sobre estes complexos eventos. Nenhuma fotografia é capaz disso. É próprio da imagem fotográfica ser uma fatia de espaço-tempo, que pode ganhar inúmeras interpretações diferentes, dependendo do contexto e de quem as vê. Como afirma Laurent Gervereau, “nenhuma imagem tem valor por si só. Cada imagem testemunha as condições em que foi produzida. Nisso, elas fornecem percepções diversas e complementares”.
O fotógrafo sabe disso, e é muito claro quando assume as condições de produção das suas fotografias, em especial o seu olhar estrangeiro, que necessita ser mediado em vários níveis – desde especificidades culturais, passando por tradutores, até as permissões oficiais. Ele repete em várias conversas que “a gente tem de pensar que o jornalista, em um ambiente de combate, é sempre visto pelas duas forças como um instrumento de propaganda. É por meio da gente (jornalistas) que as narrativas, as versões, que os racionais da guerra vão ser explicados para a opinião pública”. E explica melhor: “Eu tenho plena consciência que eu sou um instrumento de propaganda na guerra, que eu só chego nas pessoas que eles querem que eu ouça. Mas isso não impede que eu conte a história das pessoas que vivem a guerra. Sem necessariamente dizer que há heróis e bandidos. E a minha estratégia pra fazer isso é evitar ao máximo falar com quem tem poder. Se você olhar minhas reportagens, eu não falo com quem tem poder. Eu não quero ouvir o político, eu não quero entrevistar o Zelensky, eu não quero falar com o general x, y, z.”
“Eu quero falar com as pessoas que estão ali vivendo essa realidade brutal. Ao fazer isso eu já estou alimentando a propaganda ucraniana, ou tigrina, iraquiana, etc. Porque eu estou dando voz a uma vítima de um ataque e todo ataque tem um executor, que é o vilão dessa história. Mas eu procuro contar o que é viver naquele lugar, como é essa experiência humana de estar em uma guerra. Essa é uma tentativa que eu faço de escapar disso, mas eu sei que todo esse material vai ser usado de certa forma como propaganda para um dos lados”, comenta Boechat. São, afinal, os dramas e histórias destes indivíduos sem poder político, tirados por alguns instantes do anonimato pelas lentes de Boechat, que formam a maior parte – e a mais real – da ‘ação’ e do que passará na história a ser conhecido de cada uma dessas guerras.
Na condição de correspondente internacional, o olhar de Yan Boechat é o olhar de um estrangeiro que busca traduzir o que vê para o seu público leitor brasileiro (e mais recentemente também o norte-americano). Essas sucessivas mediações são também próprias da imagem fotográfica, pois ela se constrói histórica e culturalmente, nunca é algo neutro. Como afirma Caroline Brothers, “simplesmente ao olhar, o espectador é envolvido em um padrão altamente estruturado de visão e representação. O significado não é inerente à fotografia em si, mas à relação entre a fotografia e a matriz de crenças e pressupostos culturalmente específicos a que ela se refere”. A fotografia é então o lugar onde esses pressupostos, normalmente invisíveis, se manifestam. Assim, ela se constitui como um excelente ponto de partida para o diálogo e para o debate. ///
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Exposição Visíveis e Invisíveis: Guerras, Exílios, Vivências, de Yan Boechat, no saguão interno da Biblioteca Central Cesar Lattes/UNICAMP, entre os dias 10 de agosto e 05 de outubro de 2023, em Campinas.
Idealização e Realização: Cátedra Sérgio Vieira de Mello ACNUR/UNICAMP
CINERE – Trajetórias sem Fronteiras: cinemas do refúgio contemporâneo
Erika Zerwes é doutora em História pela UNICAMP. Especializada em história da fotografia, é autora do livro Tempo de Guerra. Cultura visual e cultura política nas fotografias dos fundadores da agência Magnum e co-autora de Mulheres Fotógrafas/Mulheres Fotografadas. Fotografia e gênero na América Latina e Cultura Visual, Imagens na Modernidade, finalista do prêmio Jabuti. Atualmente é fellow no programa conjunto do DfK – Paris e MIAS/Casa de Velazquez – Madri.