Corpos humanos e corpos arquitetônicos: fotografia, arquitetura e performance na obra do artista Gordon Matta-Clark
Publicado em: 19 de setembro de 2018Organizada no Jeu de Paume em Paris em parceria com o Museu de Arte do Bronx, a exposição Gordon Matta-Clark, anarquiteto é uma das primeiras a exibir um conjunto significativo de trabalhos do artista nova-iorquino, morto de câncer em 1978 aos 35 anos. De carreira fulgurante, o filho do célebre pintor surrealista chileno Roberto Matta e da designer americana Anne Clark deixou uma vasta obra composta de projetos, escritos e registros visuais de suas intervenções urbanas, acervo que agora começa a ser organizado e exposto.
Como o título indica, a espinha dorsal da mostra é a relação vital de Matta-Clark com a arquitetura. Relação multifacetada e irreverente, que pode ser resumida na fórmula “Anarquitetura”, nome do grupo formado em 1974 por ele, Laurie Anderson, Tina Girouard, Suzanne Harris, Jene Highstein, Bernard Kirschenbaum, Richard Landry e Richard Nonas para discutir formas de subverter a arquitetura moderna. Formado arquiteto pela universidade de Cornell em 1968, Matta-Clark nunca exerceu a profissão, preferindo se servir dos conhecimentos adquiridos para se engajar em uma prática artística desafiadora, centrada em intervenção urbana e em trabalhos in situ, que revelam uma inquietude política e social profunda.
Os curadores Sergio Bessa e Jessamyn Fiore escolheram, assim, uma série de obras que, dispostas cronologicamente, retraçam a trajetória do artista, evidenciam sua relação crítica com o meio urbano – fundada num princípio de interação constante – e evocam paralelos com a cultura artística contemporânea, que tende a eleger o espaço público como palco privilegiado de expressão. Entre fotografias, filmes e documentos escritos, a exposição se apresenta como um grande percurso por imagens que captam e comunicam uma manipulação criativa de construções arquitetônicas, portanto, uma atividade da qual elas não são o objeto primeiro, mas o reflexo essencial. Na medida em que a natureza ao mesmo tempo monumental e efêmera dos gestos e das obras de origem escapa inteiramente ao espaço do museu, as quase cem peças expostas aglomeram-se em torno de oito momentos ou trabalhos que elas fundamentam, documentam ou prolongam.
A esses oito trabalhos, somam-se alguns filmes, como o trecho de Relógiochuveiro (1973) situado na antessala do espaço expositivo, em que Matta-Clark é filmado realizando uma performance pública em um grande relógio. Vestido com uma capa preta e equilibrado sobre uma corda, ele realiza rituais de higiene: faz a barba, escova os dentes e toma banho. Ao se confundir com os ponteiros do relógio, ele tanto flerta com a comicidade do surrealismo, como amalgama espaço privado e público, introduzindo muitas das questões que percorrem o restante das obras, como a relação entre o corpo humano e a construção arquitetural ou o choque entre o íntimo e o coletivo.
Após essa introdução sugestiva, a primeira parte da exposição compreende as principais intervenções do artista no bairro nova-iorquino do Bronx, seu território de predileção no início da carreira: trata-se de Paredes e Papéis de parede (1972), Chãos do Bronx (1972-1973) e Grafite (1972-73). Deplorando o abandono que acometeu os que permaneceram no bairro após a partida da classe média para os subúrbios nos anos 1970, Matta-Clark busca mostrar a precariedade das condições de vida e a beleza das resistências possíveis por meio da expressão artística. Paredes e Papéis de parede respondem ao plano de urbanização que desalojou parte dos moradores. Trata-se de uma série de fotografias de dois prédios geminados cuja demolição se fez pela metade, deixando expostas as paredes internas dos apartamentos, cobertas de papel de parede coloridos. Formando um quadro geométrico de enorme dimensão, essas fachadas expõem à luz do dia, quase metonimicamente, os escombros de espaços de vidas privadas. As fotos começam como documentos evocativos feitos de um ponto de vista distanciado, para, num segundo momento, tornarem-se composições abstratas, fruto de enquadramentos aproximados de detalhes das paredes. No ano seguinte, o artista decidiu colorir algumas dessas fotografias com aquarela, imprimir tiragens em offset e expor em uma galeria, fornecendo cópias em formato de pôster para os visitantes, de maneira a provocar a reintegração dessas imagens de paredes ao espaço íntimo de uma moradia.
Em Chãos do Bronx, ele inicia a prática, determinante em sua carreira, de recortar geometricamente partes de imóveis abandonados, promovendo um encontro entre arquitetura e escultura. Ao criar aberturas dentro dos apartamentos, como diante de portas e nos tetos, a obra destaca o sentimento do vazio, a ideia de perda de funcionalidade e a pauperização das moradias populares. Em Grafite, trata-se de colocar em evidência as pichações realizadas por jovens nos muros e nos vagões de metrô, quando o conceito de street art ainda não existia e essa possibilidade de expressão artística por uma parte da população excluída do circuito da arte era vista como vandalismo. Ao recortar grafismos por meio de fotografias em preto e branco, muitas das quais ele colore com aquarela seguindo as cores originais, Matta-Clark isola imagens dessa arte em simbiose absoluta com o espaço público e a desloca para espaços onde o olhar sobre ela será obrigatoriamente diferente. Em conexão com esses trabalhos, encontramos ainda dois filmes projetados nas paredes. Criança do fogo (1971), que documenta a realização de Parede de lixo no Bronx, obra que construiu abrigos para pessoas de rua com materiais descartados recuperados no local, e O muro (1976), que registra a intervenção realizada pelo artista no muro de Berlim. Na impossibilidade de realizar o que queria, abrir uma fenda no muro, Matta-Clark veste sua superfície com grandes pôsteres publicitários de produtos vendidos do outro lado, ou seja, na Alemanha comunista, e complementa a “decoração” com grafites. Dessa forma, o conjunto de trabalhos apresentados na primeira parte da exposição investe na noção de superfície arquitetônica, seja a puxando para a escultura, seja a aproximando da pintura. Levada a cabo sobretudo pela fotografia, essa noção de superfície contribui para o deslocamento contestador operado por Matta-Clark em relação ao princípio de utilidade habitualmente atribuído às edificações.
Em seguida, temos duas obras que sistematizam e ampliam as tendências apresentadas nos trabalhos do Bronx. Primeiramente, um conjunto de fotografias que integrara a exposição Anarquitetura (1974), resultado das atividades do grupo homônimo. Para denunciar as contradições internas do programa da arquitetura modernista, sobretudo as formulações de Le Corbusier, eles realizam imagens de construções urbanas e industriais que tentam, pelo ponto de vista adotado, demonstrar a forma como essa arquitetura termina por excluir o cidadão comum. Com estruturas que não levam em conta a dimensão humana do espaço, esse tipo de arquitetura privilegia formas originadas de elaborações utópicas. A segunda obra dessa parte da exposição é Final do dia (1975), trabalho monumental e ambicioso que confere novos horizontes ao artista. Encarnado por fotografias de grande formato e por um registro fílmico de sua realização, ele atesta a maturidade do projeto artístico de Matta-Clark ao condensar problemáticas diversas em gestos simples. Após o desabamento de um trecho da Via Elevada West Side, o acesso dos moradores de Manhattan às margens do Hudson encontrava-se comprometido. O artista localizou então um galpão abandonado junto ao cais com a intenção de transformá-lo em espaço de sociabilidade e reencontro dos habitantes com essa área da cidade. Suspenso por cordas fixadas a roldanas, ele realizou enormes incisões nas paredes de alumínio do galpão, criando aberturas em formas geométricas que deixam a luz do sol passar. Dando continuidade a seu trabalho no Bronx, esses recortes na estrutura arquitetônica inspirados em questões sociais trazem outra dimensão ao cruzamento entre arquitetura e escultura já mencionado: na medida em que incluem o elemento luminoso, evocam obras de artistas como Keith Sonnier e Joseph Kosuth. Mas, infelizmente, após a festa promovida para entregar o espaço à população, um mandado de prisão foi expedido pela polícia nova-iorquina contra Matta-Clark, que foi obrigado a se exilar em Paris até seus advogados resolverem o problema.
Começa então uma outra fase da sua carreira, que ocupa a última parte da exposição, com três obras. A primeira, Interseção cônica (1976), criada para a 9ª Bienal de Arte de Paris, retoma o princípio de esculpir uma construção de grandes dimensões criando formas geométricas abstratas. A proposta de revitalização do antigo centro histórico da capital francesa, com a construção do polêmico Centro Pompidou – museu de arte moderna com projeto ousado dos arquitetos Renzo Piano e Richard Rogers – ocasiona uma demolição em massa e uma expulsão dos habitantes do local. Diante do canteiro de obras, Matta-Clark se apropria de dois prédios gêmeos abandonados, esculpindo a golpes de marreta um cone horizontal em cada, um voltado para o lado mais antigo da cidade, a metade oeste, e outro para o lado novo, no leste. Se, por um lado, o gesto corrobora a destruição, por outro, elabora uma forma feita de “ar”, que impressiona pelo contraste entre a sutileza conceitual que informa o traçado geométrico e a realidade bruta do cimento de que é feito o prédio. Mas infelizmente a obra subsiste apenas durante o tempo de sua realização, pois, assim que Matta-Clark completa sua intervenção, os prédios são demolidos, como previsto. Como em Final do dia, Interseção cônica é apresentado por um filme e por fotografias coloridas de grande formato.
A seguir, encontramos duas outras obras parisienses, ambas de 1977 e intimamente ligadas: Subsolos de Paris e Descendo degraus para Batan. Na primeira, Matta-Clark continua um projeto de exploração dos subterrâneos urbanos iniciado no ano anterior em Nova York, com o qual ambicionava estender as reflexões sobre arquitetura para esse espaço habitualmente invisível, mas que forma um só corpo com as construções aparentes, com o rosto da cidade. Em Paris, ele explora particularmente os subterrâneos do prédio da Ópera Garnier e as catacumbas, realizando um filme e fotografias em cores, que agencia em fotomontagens singulares: superpostas verticalmente, as imagens criam a impressão de um corte transversal na terra, nos permitindo percorrer com o olhar as diferentes camadas do que seria um único organismo construído pelas mãos do homem. Em Descendo degraus para Batan, ele homenageia seu irmão gêmeo, morto numa queda da janela do seu apartamento, possivelmente em um suicídio. Na galeria Yvon Lambert, na capital francesa, durante a exposição de Subsolos de Paris, Matta-Clark propôs uma obra in situ: primeiro criou uma abertura no solo que dava para o porão, depois escavou o solo do porão até atingir a terra.
As obras selecionadas pelos curadores e a forma como estão expostas destaca um traço marcante da produção de Matta-Clark: o encontro entre a volumetria da arquitetura, com sua significação social, e a planeidade da imagem, com sua plasticidade potencialmente poética. Se uma construção pode ser considerada uma imagem estruturada em relação a um espaço tridimensional, ao ser captada por uma fotografia ou filme, ela se encontra reduzida a um espaço plástico bidimensional. Gordon Matta-Clark, anarquiteto ressalta, assim, o encontro inaudito promovido pelo artista entre preocupações formais caras às vanguardas do início do século 20 e os princípios de ação física no espaço e performance que alimentam a arte americana nos anos 1960 e 1970, representados sobretudo pelas atividades do grupo Fluxus.
Em seu caráter multimidiático avant la lettre, o trabalho gráfico de Matta-Clark a partir de suas intervenções anarquitetônicas poderia ser dividido entre obras propriamente visuais, nas quais há uma simbiose profunda entre imagem fotográfica e arquitetura, e em registros documentais de performances. De obra em obra, vemos se desenhar os temas essenciais da passagem do tempo, da memória e da relação do corpo humano com o espaço, que é simultaneamente espaço físico e espaço social. É uma relação de negociação constante, que oscila entre integração e expulsão de pessoas, e estabelece o modelo da arquitetura como uma interface entre o humano e a paisagem, entre a esfera privada e a pública. A anarquia, portanto, nada mais é do que uma postura de contestação sistemática quanto à natureza desse projeto. Ou, em todo caso, uma postura crítica quanto aos usos que prevemos, em relação a nossos sentidos, para o que seria o mais natural de um ponto de vista fenomenológico: as construções, corpos inanimados que constituem o nosso espaço de vida, o nosso habitat. Habitat que, é claro, nunca foi propriamente natural, pois desde sempre se banhou da cultura e da técnica.///
Tatiana Monassa é crítica de cinema e pesquisadora, com doutorado em curso na Universidade Paris 3-Sorbonne Nouvelle. Foi editora da revista eletrônica Contracampo de 2007 a 2011 e editou, entre outros, os catálogos das mostras As muitas faces de Jece Valadão (CCBB, 2006) e Clint Eastwood, clássico e implacável (CCBB, 2011). Foi também curadora de Assim canta Bollywood (CCBB, 2005) e Mohammad Rasoulof e Jafar Panahi (Caixa Cultural, 2013).
Tags: arquitetura, exposições internacionais, performance