Os percursos e as memórias de Pierre Verger nos meandros do (seu próprio) arquivo
Publicado em: 22 de outubro de 2021Toda vez que visitamos uma exposição temporária temos a certeza de que dali a poucas semanas, ou meses, encontraremos no mesmo espaço tudo e qualquer coisa, menos o que ali vimos. Essa renovação programada e efêmera, essa temporalidade circunstancial característica do evento de arte no contemporâneo, procura modos de resistir justamente ao fato de não mais existir no futuro. Semelhante à dinâmica que faz parte do funcionamento e do horizonte da fotografia: ser um registro ou uma memória de seu tempo, ao mesmo tempo ciente de sua finitude material. Cada uma à sua maneira, exposição e fotografia revelam similaridades de uma dinâmica que envolve uma transformação inerente e uma encenação acerca do fluxo do tempo, nos lembrando que a arte, assim como o mundo, está (e sempre esteve) em movimento permanente.
Nesse sentido, a exposição Pierre Verger: Percursos e Memórias, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake (SP) até o dia 21 de novembro próximo, é uma oportunidade do visitante perceber in loco as tensões existentes entre a transitoriedade do evento artístico e o duradouro reconhecimento da obra fotográfica em questão. Ainda mais em se tratando de Pierre Verger (1902-1996), francês de família belga do ramo gráfico que, após o distanciamento (e libertação) familiar, rumou ainda na França para o ofício fotográfico e publicitário de perfil documentalista e humanista. Fato que o permitiu viajar o mundo e acabou por trazê-lo ao Brasil, onde novamente se reinventou, desta vez na direção da pesquisa escrita e visual de perspectiva histórica e antropológica das tradições e manifestações da diáspora africana e da cultura afro-brasileira. Alguns desses desdobramentos são mais conhecidos do público brasileiro do que outros, e discutir seus meandros é sempre uma possibilidade de conhecer melhor o que está em jogo na sua fotografia.
A exposição é resultado de uma cocuradoria entre Priscyla Gomes, do Instituto Tomie Ohtake, e Alex Baradel, curador da Fundação Pierre Verger, localizada em Salvador. A mostra se junta às outras atividades da programação paralela da 34ª edição da Bienal Internacional de Arte de São Paulo, composta pela apresentação de trabalhos tanto na mostra central, no Parque do Ibirapuera, quanto em exposições individuais em cartaz em vários pontos da cidade. No caso de Pierre Verger, a curadoria encarou o desafio de articular, conforme o próprio título da exposição, a trajetória e a produção do fotógrafo enquanto percursos e também enquanto memórias – sintetizados logo na entrada pela presença de um passaporte e uma câmera rolleiflex. Conjugados, os dois termos atuam como eixos norteadores da materialidade exposta, comentando alguns itinerários de Verger pelo mundo entre as décadas de 1930 e 1970, utilizando para isso um conjunto de reproduções fotográficas, publicações, objetos e outros documentos preservados na fundação que leva seu nome.
Comecemos pelos percursos. A expografia dividiu uma das salas expositivas do Instituto em cinco núcleos dedicados a apresentar sete diferentes percursos de Pierre Verger por várias partes do mundo: 1) Polinésia [Francesa] (1932-33); 2) Ásia (China e Japão — 1937-38); 3) África Ocidental (Benim, Burquina, Mali e Togo — 1936-37); 4) América Andina (Peru e Bolívia — 1939-46); 5) Brasil (Bahia e Pernambuco — 1946-60); além de dois percursos temáticos: 6) Fluxo e Refluxo (1968-70) e 7) Dieux d’Afrique (1951-54). A diferença apontada entre a quantidade de salas e percursos se explica pelo fato dos núcleos da Polinésia e Ásia ocuparem a mesma sala. E também do caráter de “passagem” do percurso Fluxo e Refluxo, que interliga três salas.
A ideia da curadoria para tais percursos é de que eles contassem ou narrassem momentos centrais do deslocamento de Verger pelo mundo, como a cobertura do conflito sino-japonês, os paraísos colonizados na Oceania, ou ainda os festejos afro-brasileiros, dentre outras localidades, suas comunidades e suas produções culturais.
Nos percursos da Polinésia e da Ásia, assim como no da África Ocidental, por exemplo, percebe-se o momento em que a fotografia era o tour de force de Verger, quando sua atuação como repórter fotográfico ainda estava vinculada aos projetos individuais, ao comércio fotográfico com as agências e às encomendas da imprensa – situações nas quais a imagem cada vez mais massificada e em circulação era dependente do texto para lhe oferecer o contexto de leitura. São inúmeras as revistas e jornais em que o fotógrafo teria seu trabalho publicado, entre o começo da década de 1930 e o final da década de 1950, tanto francesas, como a Paris Soir (onde realizou seu primeiro trabalho fotográfico remunerado), a Voilà e a Diversion; quanto anglófonas, como a The Daily Mirror e a Life; e as brasileiras, com várias reportagens publicadas na revista O Cruzeiro, dentre outras.
Em primeiro lugar, o volume crescente de contratos e viagens se materializa na multiplicidade de ensaios fotográficos, com seus formatos e tamanhos próprios, e na quantidade de imagens combinadas com textos e reportagens. A imagem de Verger pertencia, ali, mais à ordem do folhear das páginas (e das mãos) do que das paredes (e dos horizontes), e entrar em contato com a sua produção e contexto significava valer-se dessa pluralidade da mídia impressa. Assim, bonecos de fotolivros, páginas de reportagens e folhas de contato com pequenas imagens evidenciam que produzir uma imagem fotográfica envolve uma variedade de dimensões, potencialidades e limitações tecnológicas, assim como o aprendizado semiótico visual da crescente população mundial.
Na exposição, tal multiplicidade texto-imagética está estruturada de uma maneira binária, ocupando ortogonalmente o espaço: nas paredes, reproduções fotográficas daquelas viagens foram ampliadas em dois principais tamanhos quadrangulares e apresentadas verticalmente ao visitante, dispostas em conjunto ou em destaques individuais; já na horizontal, mesas envidraçadas guardam os documentos de Verger, reunindo cadernos de anotações, correspondências com amigos e artistas, além de algumas das publicações acima mencionadas, abertas em uma página definida (além de cada item estar acompanhado de uma ficha explicativa). Tal proposição curatorial presente não apenas no núcleo da Polinésia e da Ásia, mas nos demais percursos da exposição, nos permite vislumbrar como elas capturam as assimetrias e as oportunidades fotográficas advindas do imperialismo oitocentista e cujas feridas coloniais, no caso francês, permaneceram irresolutas em praticamente todo o período de atuação de Verger.
Em segundo lugar, essa ortogonalidade evidencia que o sequenciamento cronológico dos percursos apresentados reforça uma narrativa bio(foto)gráfica convencional, que utiliza um arsenal diverso de itens arquivísticos – como objetos pessoais, reportagens, bonecos de fotolivros, cartas e cadernos –, para privilegiar um percurso temporal unidirecional. Quase como um didatismo às avessas, temos a impressão de que, seja na Paris de 1934, no Mali em 1937, na Nova York de 1939, na Lima de 1942, no Benim de 1953 ou na Bahia de 1960, havia uma diferenciação estabelecida entre as ampliações fotográficas para contemplação e as publicações e outros componentes disponíveis ao manuseio. Nesse fio condutor, perde-se a noção das muitas mudanças que a fotografia transcorreu. Sendo que, ao fundo, os percursos (destacando o plural) chamam nossa atenção para a multidirecionalidade da produção e da impressão de imagens, bem como a expansão nos usos da fotografia.
A cronologia dos percursos propostos pela exposição começa quando Verger ainda exercia o ofício de fotojornalista, alinhado a pautas editoriais do período entre guerras, segue percorrendo suas investigações como pesquisador no campo de estudos da escravidão e das religiões africanas e afro-brasileiras, até sua inserção enquanto personagem no cenário intelectual baiano. Nesse meandro, o fotógrafo-viajante se tornaria etnógrafo e líder religioso, metamorfoseando e reproduzindo uma transição cultural pela qual a atividade fotográfica passaria no decorrer do século 20: a fricção entre imagem e texto, ou da imagem para o texto.
Entre a Bahia e o golfo do Benim, as experiências de pesquisa levadas a cabo por Pierre Verger foram tomando maior fôlego. Exemplo disso é a investigação sobre a relação comercial da rota atlântica de escravizados durante a colonização portuguesa, de modo que o reconhecimento de Verger como pesquisador solidifica sua trajetória fotográfica de uma maneira um tanto contraditória: por um lado, a segunda metade do século 20 deslocaria a trama textual da imagem fotográfica, liberando-a em direção à aliança estética com o campo da arte (explicitando a preocupação já comentada com a verticalidade das imagens expostas pelas ampliações tableaux, ou seja, como quadros na parede, disponível para contemplação à altura do espectador garantida); por outro lado, o interesse de Verger pela escrita – e cujo livro Fluxo e Refluxo é seu exemplo-mor – fez com que a fotografia continuasse presente, mas agora coadjuvante, para que o antropólogo, pesquisador e babalaô se realize.
Esse caminho nos leva ao segundo eixo norteador da exposição, as memórias. Quanto mais se aproximou e tematizou as culturas e religiões afro-brasileira e africana, mais Pierre Verger foi abrindo mão do registro fotográfico para se envolver com a pesquisa escrita. Os relatos de Verger – registrados em entrevistas, livros e cartas – não detalharam sua relação com a fotografia, isolando-o de outros marcadores e decisões tomadas entre o começo dos anos 1930, sua chegada a São Paulo e seu destino final em Salvador. Tais relatos foram a oportunidade encontrada por ele para contar sobre o seu passado conforme sua própria vontade, a ponto de a pesquisadora Iara Cecília Pimentel Rolim, no trabalho Primeiras imagens: Pierre Verger entre burgueses e infrequentáveis (2009), referir-se a um “‘outro Pierre Verger’ que se camuflou nas entrelinhas de relatos e biografias”.
Seja falando do Verger anterior ou posterior à sua chegada ao Brasil, suas memórias configuram-se de maneira a dar conta dessa rota traçada. Nada mais propício para ser utilizado no projeto curatorial, já que, segundo o teórico da mídia Boris Groys (2021), é parte da instalação expositiva contemporânea ser “capaz de incluir todos os tipos de objeto: obras de arte ou processos duracionais, objetos cotidianos, documentos, textos, e assim por diante”, compondo uma unidade diversa a fim de incluir também os visitantes.
No que diz respeito às memórias de Verger anteriores à 1946, o visitante entra em contato principalmente com registros de campo do Verger profissional da fotografia, que se materializam na forma de cadernos de anotações, agendas, documentos e solicitações de órgãos de imigração. Aqui, as chances de encontrar sinais de reflexões, caminhos ou vulnerabilidades são poucas. Já no que se refere às memórias brasileiras pós-Estado Novo, a curadoria escolheu reunir as principais memórias no percurso Brasil, dedicado às imagens e escritos sobre a cultura popular e outras manifestações culturais e religiosas de Belém do Pará, São Luís do Maranhão e Recife, além da Bahia. Apresentados em uma fileira dupla de mesas arquivísticas, podemos nos debruçar e ler diversos itens epistolares, como textos datilografados, diários e cartas avulsas com registros de encontros com figuras como o pintor Carybé, a ialorixá Mãe Senhora – redigidas por seu filho, Mestre Didi –, o sociólogo Roger Bastide, o escritor Jorge Amado, a arquiteta Lina Bo Bardi, o músico Dorival Caymmi e tantas outras. E além das correspondências escritas, no percurso dedicado ao Brasil encontram-se três imagens de outros fotógrafos, dois deles também estrangeiros e que migraram para o Brasil – uma fotografia de Marcel Gautherot e outra de Peter Scheier – além da icônica imagem “Índio Iaualapiti”, de José Medeiros. Porém, não há informações sobre as possíveis relações ali implicadas.
Já distante da produção fotográfica, as cartas se comportam justamente como um contraponto de outro momento de Verger, em que a fotografia tinha tomado uma dimensão diferente, tanto para ele quanto para as artes em geral.
Dessa forma, tanto as questões tratadas nos percursos quanto as narrativas presentes e escondidas nas memórias de Verger parecem convergir para as implicações da noção de arquivo. Falar de arquivo, atualmente, significa considerar um espectro tão sedimentado quanto polimorfo em relação às tentativas de analisar e ler a fotografia. Não é à toa que o interesse de mostrar Verger a partir de uma imersão arquivística da fotografia traga a lembrança de outras investidas, seja em exposições como Arquivo Peter Scheier (IMS, 2020), seja em livros como História Potencial: desaprendendo o imperialismo (2020), de Ariella Aisha Azoulay – apenas para citar dois exemplos mais recentes.
O arquivo é o elo que interliga os eixos percursos e memórias na proposta curatorial. Isso se manifesta na exposição também de, pelo menos, duas maneiras. A primeira diz respeito ao arquivo presente no horizonte de digitalização dos acervos fotográficos e que gera debates não apenas em torno da preservação destes arquivos (e das culturas às quais é parte da responsabilidade a salvaguarda da memória), mas sim o arquivo das imagens de Verger, seus negativos preservados ou digitalizados, a partir dos quais a reprodução de suas imagens garanta sua presença nesta e em outras exposições. Levar em consideração o arquivo da imagem, seus dados de informação e as combinações (ampliações, ajustes e performatividades) é ainda importante para que fique clara a diferença entre a relevância do que se está expondo enquanto artefato cultural e as decisões de como realizar tal tarefa no presente e para o presente.
O segundo sentido de arquivo se manifesta no gesto de articular o arsenal de imagens e objetivos em exposição, não mais como documentos arquivísticos selecionados para confirmar a veracidade e beleza de reproduções fotográficas, mas sim como um dispositivo (nos termos de Vivian Braga dos Santos, e também nos de Azoulay, acima indicada). Algo que diz respeito a uma compreensão de arquivo ligado à disposição de, que não se limita apenas a regras de seleção, mas que se relaciona e intercepta também dispositivos de apresentação e extroversão do material arquivístico, visando novas formas de compor/contar histórias.
Por fim, a oportunidade temporária que o visitante tem de conhecer alguns dos percursos e memórias do arquivo de Pierre Verger corrobora que sua obra é, sem dúvida, multiversa, o que poderia ter permitido (e ainda pode permitir) se pensar inúmeras maneiras de compor outras curadorias. Os temas fotografados, concretizados em sua variedade material, permitem que se reflita mais profundamente, investigando a complexidade editorial, sequencial, projetiva e cultural da fotografia que certamente ultrapassa e resiste à homogeneização curatorial. ///
André Pitol é pesquisador com experiência em projetos artísticos e cursos sobre fotografia, história da arte e curadoria. Estudou na Fundação das Artes de São Caetano do Sul e na Escola de Comunicações e Artes da USP, escreveu artigos e ensaios sobre Madalena Schwartz, Claudia Andujar, Almir Mavignier, José Oiticica Filho e Alair Gomes. É integrante do Grupo de Pesquisa em Arte, Design e Mídias Digitais.
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